Bóson de Higgs: como foi observado o decaimento da misteriosa partícula elementar da física

A impossibilidade de observar essa divisão do bóson de Higgs seria algo muito ruim para a nossa compreensão do funcionamento do universo.

Por Michael Greshko
Publicado 3 de set. de 2018, 17:16 BRT, Atualizado 10 de abr. de 2024, 16:00 BRT
O detector ATLAS no laboratório de CERN em Genebra, Suíça, foi um dos dois experimentos que ...
O detector ATLAS no laboratório de CERN em Genebra, Suíça, foi um dos dois experimentos que observaram o decaimento do bóson de Higgs.
Foto de Babak Tafreshi, National Geographic Creative

Durante décadas, os físicos procuraram o bóson de Higgs: a teórica "partícula de Deus", cujo alter ego, um campo presente em todo o universo, confere massa à matéria. Em 2012, os cientistas finalmente encontraram a misteriosa partícula e, agora, acabam de adquirir novos conhecimentos cruciais, observando sua divisão.

Em dois novos estudos, físicos mostram que os detectores presentes no Grande Colisor de Hádrons (LHC), do CERN, conseguiram capturar bósons de Higgs se dividindo em pares de pequenas partículas chamadas de quarks bottom. A descoberta é mais uma pérola no colar da física de partículas teórica, que previa esse decaimento. Os estudos também representam avanços experimentais depois de décadas em preparação.

Não tínhamos certeza de que realmente poderíamos observar isso algum dia”, afirma a física do CERN Andreas Hoecker, porta-voz substituta da ATLAS Collaboration, que administra um dos detectores. “Muitas pessoas, principalmente aquelas que estão nesse experimento há muito tempo, estão bastante animadas com os resultados”.

Está se perguntando o que é o bóson de Higgs, o que é quark bottom e por que eles são "matéria obrigatória"? Deixa que a gente explica.

(Leia também: Quem foi Peter Higgs, o cientista que descobriu a "partícula de Deus"?)

O que é o bóson de Higgs?

O bóson de Higgs é uma partícula essencial no Modelo Padrão, a teoria que descreve as partículas elementares conhecidas e a interação entre elas. Sabemos que o Modelo Padrão está incompleto; ele não leva em conta a matéria escura — a misteriosa substância que compõe até 85% da massa do universo — nem apresenta descrição do funcionamento da gravidade no nível quântico. Ainda assim, é incrivelmente bem-sucedido na descrição dos fragmentos mais básicos do nosso universo.

Nos anos 1960, físicos como François Englert e Peter Higgs fizeram uma atualização do Modelo Padrão que explicava por que algumas partículas, como os pacotes de luz conhecidos como fótons, não têm massa, ao contrário de outras. A teoria deles era de que existiria um campo de energia espalhado pelo universo que interagiria com as partículas de duas formas diferentes. Algumas partículas, como os fótons, atravessam esse chamado campo de Higgs como se ele não existisse. Outras ficam emaranhadas no campo, como se nadassem numa gosma. E é essa redução de velocidade que confere massa a essas partículas.

Na física de partículas, os campos correspondem às partículas: basta jogar uma pedra na "lagoa" do campo eletromagnético para ver um fóton ser espirrado para fora. Mais ou menos da mesma forma, o bóson de Higgs representa um animado pacote do campo de Higgs.

Após décadas de pesquisa, os pesquisadores do LHC anunciaram em 2012 ter descoberto uma nova partícula semelhante ao bóson de Higgs — descoberta que rendeu a Englert e Higgs o Prêmio Nobel de Física em 2013. Desde então, os físicos vêm comparando essa partícula nova em relação ao Modelo Padrão para ver se ela se comporta como o bóson de Higgs teórico. Até agora, sim.

E o que os quarks têm a ver com isso?

Ao contrário dos elétrons, que podem durar bilhões de anos, a vida de um bóson de Higgs é assustadoramente curta — menos de um sextilionésimo de segundo. Depois dessa transitória existência, o bóson de Higgs se divide em outros tipos de partículas. Por exemplo, os pesquisadores anunciaram em 2014 que o ATLAS e o CMS, dois detectores do LHC, haviam observado o decaimento de bósons de Higgs em pares de fótons de raio gama.

O Modelo Padrão prevê também que o Higgs pode se dividir em partículas chamadas quarks. Os quarks têm seis categorias — up, down, top, bottom, charm e strange — e representam os tijolos que formam os prótons e nêutrons dos átomos, entre outras partículas maiores.

Os decaimentos do bóson de Higgs seguem algumas regras básicas. Por exemplo, como o bóson de Higgs não tem carga elétrica, os subprodutos de seu decaimento devem se combinar para também chegar a uma carga elétrica de zero. Portanto, quando o Higgs se divide em quarks, que têm cargas elétricas, eles vêm em pares: um quark e um "antiquark", partícula igual em todos os sentidos a não ser pela carga elétrica oposta. Dessa forma, as cargas do par cancelam uma à outra.

A massa do bóson de Higgs também limita os decaimentos possíveis. Pelo fato de os quarks bottom serem 30 vezes mais leves que o Higgs, o bóson de Higgs pode produzir facilmente um par deles durante sua divisão. O Modelo Padrão descreve que, no decaimento, o bóson de Higgs se transforma num par composto de um quark bottom e um antiquark em 58 por cento das vezes. Essa previsão foi um teste decisivo do Modelo Padrão: Se os pesquisadores nunca tivessem visto o bóson de Higgs se transformar em quark bottom, as nossas mais complexas teorias sobre os funcionamentos do universo estariam desmontadas.

"O Modelo Padrão não suportaria esse fato de maneira alguma", diz Hoecker.

Agora, os pesquisadores, por meio dos detectores ATLAS e CMS, observaram o bóson de Higgs real se dividir de forma espontânea em quarks bottom, demonstrando que a realidade bate com a teoria.

Como os pesquisadores detectaram o decaimento?

Lá pelos idos de 1980 e 1990, quando o LHC foi concebido pela primeira vez, os físicos já percebiam a dificuldade que seria detectar o decaimento de um bóson de Higgs, segundo Hoecker. O LHC esmaga pares de prótons uns contra os outros quase à velocidade da luz, criando enormes chuvas de partículas que se derramam nos interiores dos gigantescos detectores. Esses fragmentos contêm de uma só vez muitas partículas diferentes, e muitas delas se assemelham ao decaimento do bóson de Higgs.

Os físicos precisam reconstruir exatamente como se deu uma determinada colisão utilizando as partículas de decaimento por eles detectadas — mais ou menos como tentar entender um enorme acidente de carro pelos destroços e marcas de pneus deixadas.

Depois de anos de coleta de dados, as simulações e os algoritmos de máquinas permitiram às equipes do ATLAS e do CMS explicar tudo, menos o decaimento de Higgs que procuravam. Até 2017, os físicos haviam reunido dados suficientes para comprovação do decaimento. Até junho passado, tinham certeza de que os dados não eram acidentais.

"É um processo muito complicado, com uma enorme equipe de quase cem pessoas trabalhando exclusivamente na análise", afirma Hoecker. “No geral, para a coleta dos dados, operação do detector [ATLAS], calibração, tem muito mais gente trabalhando. A colaboração total chega a 3 mil autores científicos".

E por que tudo isso é importante?

Para começar, os estudos dão ainda mais certeza de que já compreendemos de que forma a matéria obtém massa. E isso não é pequeno na compreensão do universo.

E, por conta do papel essencial do bóson de Higgs no Modelo Padrão, até mesmo as menores discrepâncias entre a teoria e as observações podem dar margem a novas teorias físicas. Agora que sabem que o LHC pode detectar esse decaimento em quarks bottom, os físicos começarão a acompanhá-lo para verificar se ele quebra alguma regra.

“Com o passar de cada ano, com mais dados, procuramos possíveis desvios das previsões", afirma Hoecker. “Não tem por que os desvios serem grandes — normalmente, na física, os efeitos são pequenos e a precisão é o mais importante”.

Que tipo de leis misteriosas do universo poderemos descobrir? A menos e até que o bóson de Higgs revele outros segredos, segundo Hoecker, os cientistas não têm certeza: "Só podemos continuar humildemente nossas avaliações, e caberá à natureza nos dizer".

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