Como a ciência desvendou o mistério dos pés encontrados em praias do noroeste norte-americano

Entre 2007 e 2019, um total de 21 pés humanos mutilados foram encontrados em praias do mar de Salish, no litoral sudoeste do Canadá e noroeste dos EUA.

Por Erika Engelhaupt
Publicado 19 de mar. de 2021, 17:41 BRT
salish sea

Vista da enseada de Howe, no mar Salish, ao norte de Vancouver. Ao fundo, as montanhas da ilha Gambier e, no primeiro plano, a costa continental do Canadá.

Foto de John Zada, Alamy Stock Photo
Esta história é um trecho do livro Gory Details: Adventures From the Dark Side of Science (Detalhes sangrentos: aventuras do lado obscuro da ciência, em tradução livre), de Erika Engelhaupt.

Em 20 de agosto de 2007, uma menina de 12 anos avistou um único tênis de corrida nas cores azul e branco – tamanho 44 – em uma praia da ilha Jedediah, na Colúmbia Britânica. Ela olhou dentro do tênis e viu uma meia, dentro da meia havia um pé.

Seis dias depois, na vizinha Ilha Gabriola, um casal de Vancouver desfrutava de uma caminhada à beira-mar e encontrou um tênis preto e branco da marca Reebok. Dentro dele havia outro pé em decomposição, também masculino e tamanho 44. Os dois pés claramente não pertenciam à mesma pessoa; não apenas porque os calçados em si eram diferentes, mas porque ambos eram pés direitos.

A polícia ficou espantada. “Dois pés encontrados em um intervalo tão curto são bastante suspeito”, afirmou Garry Cox, da Real Polícia Montada do Canadá, ao jornal Vancouver Sun. “Encontrar um pé é como uma probabilidade de um em um milhão, mas encontrar dois é uma loucura. Brincamos que há dançarinos com dois pés esquerdos, mas isso é impossível.”

No ano seguinte, mais cinco pés apareceram nas praias canadenses próximas. As descobertas aumentaram os temores do público e a especulação da mídia. Havia um assassino em série à solta? Ele tinha algo contra pés?

Ao longo dos 12 anos seguintes, um total de 15 pés foi encontrado na costa na área ao redor da Ilha de Vancouver, em uma rede de canais denominada mar Salish. Outros seis apareceram na enseada de Puget, do outro lado da fronteira com os Estados Unidos, no extremo sul do mar. Com exceção de um pé calçando uma bota de caminhada velha, todos estavam com tênis. Os pés calçados com tênis tornaram-se famosos e até ganharam uma página na Wikipédia. E, com a notoriedade do caso, vieram as brincadeiras de mau gosto: pessoas enchiam sapatos com ossos de galinha ou esqueletos de patas de cachorro e os espalhavam ao longo da costa canadense.

Informantes ligavam para a polícia com todos os tipos de teorias sobre a origem dos pés. “Ouvimos teorias muito interessantes sobre assassinos em série ou contêineres cheios de migrantes que afundaram no oceano. E alienígenas – não posso me esquecer dessa”, conta Laura Yazedjian, antropóloga forense especialista em identificação humana do Serviço de Legistas da Columbia Britânica. “E ocasionalmente apareciam médiuns. Na realidade, em quase todos os casos um médium liga e se oferece para ajudar.”

Mas esse tipo de mistério, ao que parece, requer investigação científica, em vez de investigação criminal (ou mística). Na verdade, a ciência pode responder a todas as perguntas óbvias – por exemplo: por que os pés, e não os corpos inteiros, estão chegando à praia? E por que eles estão aparecendo nesse trecho específico da costa da Colúmbia Britânica? Mas a pesquisa que abordou essas questões é tudo menos óbvia. Para entender como os pés chegaram até onde foram encontrados, temos que seguir algumas linhas de investigação inesperadas, envolvendo tudo, desde a ciência do afogamento à decomposição de porcos e derramamentos de óleo.

Afundar ou flutuar

Primeiro, devemos entender o que acontece com um corpo morto quando está na água. Portanto, vejamos o que ocorre com um cadáver no mar.

Uma vez na água, o primeiro movimento de um cadáver será flutuar ou afundar. Esta é uma etapa fundamental, pois ajudará a determinar o que acontece a seguir. Um objeto flutuante será carregado pelos ventos e pelas correntes de superfície e logo poderá chegar à costa. Por outro lado, se afundar, pode permanecer no lugar ou ser puxado em uma direção diferente por correntes mais profundas. Além disso, um corpo flutuando, exposto ao ar, sofrerá uma decomposição diferente de um que afundou, com consequências que podem influenciar no que acontecerá no corpo, inclusive nos pés.

Pode-se presumir que uma pessoa afogada afundará porque seus pulmões estão cheios de água, e que os pulmões cheios de ar de um cadáver funcionariam como um dispositivo de flutuação. Mas a realidade não é tão simples. Utilizando dados coletados em 1942, E.R. Donoghue, do Instituto de Patologia das Forças Armadas dos Estados Unidos, decidiu esclarecer a questão em um artigo de 1977 intitulado Human Body Buoyancy: A Study of 98 Men (Flutuabilidade do corpo humano: um estudo de 98 indivíduos, em tradução livre). Os 98 indivíduos do sexo masculino em questão eram “homens saudáveis da Marinha norte-americana entre 20 e 40 anos”. Cada um foi pendurado debaixo d’água e pesado com os pulmões cheios de ar e, em seguida, pesados depois de expelir o máximo de ar possível. Não é uma tarefa fácil esperar para ser pesado debaixo d’água sem ar nos pulmões – mas, vale lembrar, esses homens eram oficiais da Marinha.

Com os pulmões totalmente inflados, todos os homens flutuaram. Mas assim que esvaziaram os pulmões (como seria o caso de um cadáver), a maioria deles afundou na água doce; apenas 7% flutuaram. Na água salgada, porém, as pessoas tendem a flutuar mais: 69% dos fuzileiros navais flutuariam se estivessem mortos e nus no oceano, estimou Donoghue. Mas apenas um pouco de peso a mais, como roupas pesadas ou água nos pulmões, pode fazer o corpo afundar. Por fim, os dados sugerem que, em geral, os cadáveres têm maior probabilidade de afundar do que flutuar, e quem se afoga têm uma probabilidade ainda maior de afundar.

Além disso, quando um corpo afunda, tende a ir direto para o fundo. Às vezes, um cadáver submerso pode acabar inchando, assim como um corpo em terra, fazendo com que suba para a superfície. Mas isso nem sempre acontece, observa Yazedjian, pesquisador do Serviço de Legistas. Em um lago ou oceano profundo, o corpo pode nunca emergir à superfície. O frio inibe a decomposição em águas profundas e a maior pressão da água nas profundezas também impede que os gases se expandam e façam os corpos flutuarem. Em vez disso, outros processos microbianos ocorrem e convertem os tecidos de um corpo submerso em adipocera, “um tipo de tecido ceroso, semelhante a sabão”, explica ela. A adipocera pode persistir por anos, até séculos, em um ambiente com baixo oxigênio.

E isso é exatamente o que Yazedjian observou nos pés do mar Salish examinados por ela. Eles estavam cobertos de adipocera, sugerindo que os cadáveres afundaram e permaneceram debaixo d’água enquanto se decompunham. Isso poderia explicar onde estariam as partes restantes dos corpos: afundaram e permaneceram afundadas.

Mas por que os pés não ficaram presos aos corpos?

Pés navegando

Para compreender como os pés se desprenderam dos respectivos corpos e navegaram, precisamos saber como um corpo humano pode se decompor debaixo d’água e se os pés têm propensão a se soltar e flutuar. Cientistas estudam o processo de decomposição de cadáveres humanos em diversos locais de pesquisa forense dos Estados Unidos, mas todos os corpos são estudados se decompondo sob a terra; nenhum cientista se aventurou a jogar um corpo no oceano.

Mas nossa investigação não foi por água abaixo. Em meados de 2007, a cientista forense Gail Anderson, da Universidade Simon Fraser, conduzia um estudo para o Centro de Pesquisa da Polícia Canadense para entender a rapidez com que uma vítima de homicídio se decompem no oceano. Como as normas éticas impedem o uso de um corpo humano, ela usou o cadáver de um porco. Porcos costumam ser utilizados em pesquisas forenses como substitutos do corpo humano por terem tamanho e funcionamento biológico similares aos nossos.

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Pesquisa sugere que a movimentação de grupos de bilhões de krills pode ser responsável pelo surgimento de correntes marítimas.

O local onde Anderson conduziu seu estudo no mar Salish não ficava muito longe de onde o terceiro pé humano seria encontrado seis meses depois. Sua equipe jogou o cadáver do porco na água, que imediatamente afundou cerca de 93 metros até atingir o fundo do mar. O que aconteceu em seguida não foi agradável. A carcaça do porco foi rapidamente devorada por uma multidão de camarões, lagostas e sapateiras-do-pacífico em alvoroço, começando pelas “áreas esperadas, a região do ânus e os orifícios faciais”, relatou Anderson. Era como se os frutos do mar quisessem se vingar.

Desde então, Anderson jogou mais porcos em regiões mais profundas no Estreito de Geórgia, um canal principal do mar Salish, e descobriu que, em alguns casos, os necrófagos podem reduzir uma carcaça a esqueleto em menos de quatro dias.

E quanto aos pés? Os necrófagos marinhos, como crustáceos, trabalham ao redor de ossos e outros tecidos difíceis, preferindo separar tecidos mais macios. E, ao contrário das articulações ósseas que unem nossas pernas aos quadris, nossos tornozelos são compostos em grande parte por material macio: ligamentos e outros tecidos conjuntivos. Acredita-se, então, que um cadáver submerso calçando sapatos no mar Salish provavelmente será despedaçado por necrófagos e terá seus pés desarticulados do restante do corpo em pouco tempo.

E, como Yazedjian relatou, todos os pés do mar Salish pareciam ter sido dissociados dos corpos por processos naturais, como separação por animais carniceiros e decomposição. “Não devemos nos referir aos pés como ‘decepados’”, ela adverte. Decepado significa que alguém os cortou, explica, e o Serviço de Legistas nunca encontrou vestígios em nenhum dos ossos que sugerissem isso.

Ainda, pés calçados com tênis fabricados na última década quase certamente flutuariam. Cavidades cheias de gás se tornaram comuns nas solas dos tênis (e são visíveis em alguns tênis encontrados no mar Salish), mas por volta da mesma época, as espumas usadas nas solas dos tênis começaram a ser perceptivelmente mais leves, com mais ar misturado. Em outras palavras, eles passaram a flutuar.

Blowing in the wind

Portanto, agora temos um pé flutuante, usando tênis e pronto para navegar. Mas por que o mar Salish? Se é provável que os pés flutuem para longe dos cadáveres, por que eles não desembocam em praias em todo o mundo?

Possivelmente a pessoa que mais saiba sobre como e onde matérias vão parar no mar Salish seja Parker MacCready, professor de oceanografia da Universidade de Washington, em Seattle. Ele criou uma simulação tridimensional por computador da costa oceânica do noroeste do Pacífico, incluindo o mar Salish. “É tudo realista”, comenta ele, “reproduz marés, ventos, rios e condições do oceano realistas”. O simulador é denominado Live Ocean e, enquanto conversávamos ao telefone, o assistimos rodando em seu site: cores vivas destacam-se pelo mapa de acordo com o clima e as marés daquele dia.

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    MacCready utiliza o modelo para prever para onde um derramamento de óleo viaja ao longo de três dias. Enquanto observávamos, manchas pretas apareceram perto de Seattle e Tacoma, simulando um vazamento de óleo hipotético, e imediatamente começaram a fluir para o norte, em direção à enseada de Puget, navegando em redemoinhos coloridos que representam águas de diversas salinidades em movimento. Em seguida, as manchas se quebraram em finas linhas e pontos, dividindo-se e fluindo em todas as direções conforme as marés e as correntes as empurravam.

    Acontece que o Live Ocean revela uma peça importante para o mistério – por que tantos pés estão aparecendo exatamente no mar Salish? Porque o mar Salish tem o conjunto ideal de propriedades que atraem matérias.

    É uma combinação de motivos. Primeiro, trata-se um corpo de água interior extraordinariamente grande e complexo, que atraem resíduos. Como mostra o modelo de MacCready, assim que algo entra na água, pode chegar à costa em diversos lugares – mas todos eles no mar Salish. Em segundo lugar, os ventos predominantes vêm do leste, então eles trazem resíduos do oceano, em vez de empurrá-los mar adentro. E, por fim, há algo que o modelo de MacCready não mostra, mas indica. Muitas pessoas usam tênis nas praias no noroeste do Pacífico, onde muitos fazem caminhadas entre pedras escorregadias. Juntos, todos esses fatores – somados às águas frias e profundas e as saudáveis populações de necrófagos – tornam o Salish o ímã de pés ideal.

    Mas a quem pertenciam os pés do mar Salish? O primeiro lugar que os investigadores buscaram foram nos boletins de pessoas desaparecidas. O Serviço de Legistas já comparou o DNA de cada pé com um banco de dados de mais de 500 pessoas desaparecidas na Colúmbia Britânica, e também com o novo Programa Nacional de Análise de DNA de Pessoas Desaparecidas do Canadá, lançado em 2018.

    Por meio do DNA, a equipe relacionou nove dos pés a sete pessoas desaparecidas (para duas pessoas, ambos os pés foram encontrados; a maioria estava desaparecida há um ano ou mais). A pessoa desaparecida há mais tempo havia desaparecido em 1985; seu pé foi encontrado em 2011, em um tênis de caminhada. No caso mais recente, foi documentado que o pé de um jovem desaparecido em 2016 apareceu em uma ilha na enseada de Puget em 2019.

    O Serviço de Legistas da Colúmbia Britânica relata que, até agora,  foi constatado que nenhum dos casos canadenses se tratava de homicídio. Em alguns deles, ficou evidente que a pessoa havia morrido por acidente ou suicídio, como no caso de uma mulher que havia saltado de uma ponte. Em outras ocasiões, as circunstâncias eram mais nebulosas. No caso de um jovem cujo pé foi encontrado na enseada de Puget em 2019, a polícia norte-americana salientou que não poderia descartar homicídio ou suicídio. E para aqueles que desapareceram sem testemunhas, é quase impossível descobrir a causa da morte apenas com um pé.

    Até o momento da produção deste artigo, cinco dos pés na Colúmbia Britânica permaneciam sem identificação.

    Alguns, sem dúvida, ficarão desapontados ao saber que um assassino em série não estava perseguindo pessoas nas costas rochosas do noroeste do Pacífico. Por mais que O Mistério dos Pés Flutuantes fosse um ótimo título para documentário, provavelmente não se tornaria uma produção original da Netflix – especialmente se os produtores descobrissem que a maioria das filmagens apresentaria caranguejos arrastando entranhas de porcos pelo fundo do oceano, em vez de exibir fotos de um assassino em série durante a adolescência.

    Essa é a diferença entre os fãs de séries investigativas e cientistas forenses reais: um cientista quer saber a resposta certa, mesmo que seja simples. Mas ao pensar sobre isso, percebemos que é realmente interessante que a natureza nos forneça pistas sobre algo que, do contrário, é provável que se tornasse um caso arquivado. Mesmo depois de anos, uma pessoa desaparecida pode ser encontrada e sua morte investigada, tudo devido a uma combinação peculiar da fisiologia do pé, comportamento de necrófagos e tecnologia de calçados.

    Às vezes, essas pistas inesperadas fazem com que cheguemos a conclusões que jamais imaginaríamos, se apenas estivéssemos dispostos, fôssemos pacientes e corajosos o suficiente para segui-las. E às vezes as pistas são tênis.

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