Cão selvagem pré-histórico encontrado em icônico sítio de fósseis humanos

Nova pesquisa revela que dois mamíferos bastante sociáveis se encontraram em Dmanisi há 1,8 milhão de anos: nossos ancestrais humanos e um canídeo que caçava em matilhas.

Por Michael Greshko
Publicado 5 de ago. de 2021, 07:00 BRT
Estes fragmentos de dentes e mandíbula de 1,8 milhão de anos, encontrados no sítio arqueológico de ...

Estes fragmentos de dentes e mandíbula de 1,8 milhão de anos, encontrados no sítio arqueológico de Dmanisi, na Geórgia, pertencem a um canídeo extinto conhecido como cão-de-caça-eurasiático. O fóssil é o mais antigo do tipo já encontrado.

Image by S. Bartolini-Lucenti

A vila medieval georgiana de Dmanisi é a meca da paleoantropologia. Ela contém os registros mais antigos conhecidos de ancestrais humanos fora da África, desvendando como o hominíneo Homo erectus viveu na separação entre a Europa e a Ásia há cerca de 1,8 milhão de anos.

Os restos recém-escavados parecem indicar que os hominíneos de Dmanisi encontraram no Cáucaso um viajante de quatro patas vindo do leste: um cão selvagem enorme — e bastante sociável — com dentes ideais para fatiar carne.

Os restos mortais pertencem à espécie Canis (Xenocyon) lycaonoides, ou cão-de-caça-eurasiático, que provavelmente evoluiu pela primeira vez no Leste Asiático há cerca de 1,8 milhão de anos e morreu por volta de 800 mil anos atrás. Com base nos fragmentos ósseos encontrados em Dmanisi (alguns dentes e seções de uma mandíbula), o cão primitivo pesava cerca de 30 quilos quando morreu, provavelmente na idade adulta.

Os autores do estudo afirmam que os restos de Dmanisi são os fósseis mais antigos já identificados da espécie C. (Xenocyon) lycaonoides. Alguns pesquisadores, incluindo os coautores do estudo, também argumentam que pode haver parentesco próximo entre a espécie C. (Xenocyon) lycaonoides e a espécie Lycaon pictus, o atual cão-selvagem-africano. Se confirmada a hipótese, o novo fóssil é o primeiro dessa linhagem específica encontrado em Dmanisi.

Para deixar claro, a descoberta não sugere de forma alguma a cooperação entre humanos e cães em Dmanisi há quase dois milhões de anos. As primeiras evidências de qualquer tipo de domesticação canina remontam a no máximo 40 mil anos atrás. Em vez disso, a descoberta, descrita em 29 de julho de 2021 no periódico Scientific Reports, deve adicionar detalhes importantes ao atual cenário complexo da evolução canina.

Cão com uma ampla área de distribuição

Restos mortais de Canis (Xenocyon) lycaonoides já haviam sido encontrados na Sibéria, Espanha e até na África do Sul. Considerando sua ampla distribuição geográfica, a ausência do cão-de-caça-eurasiático ou de seus parentes imediatos em Dmanisi era algo que incomodava os pesquisadores. Os sedimentos ricos em fósseis do local já revelaram restos de dezenas de diferentes espécies de mamíferos que viveram ao lado de nossos ancestrais humanos, incluindo hienas, ursos, guepardos e felinos dentes-de-sabre, bem como alguns parentes distantes dos lobos e cães da atualidade.

“Foi extremamente incomum —muito estranho mesmo — não encontrar um Lycaon em Dmanisi depois de mais de 30 anos de escavação”, afirma Bienvenido Martínez Navarro, coautor do estudo e paleontólogo do Instituto Catalão de Pesquisa e Estudos Avançados da Espanha. “Finalmente foi encontrado! Tivemos sorte.”

Até mesmo com as novas evidências disponíveis, é excepcionalmente difícil determinar onde carnívoros semelhantes a cães (canídeos) se encaixam na árvore genealógica do grupo, afirma Saverio Bartolini Lucenti, autor do estudo e paleontólogo da Universidade de Florença, na Itália.

Como grupo, a evolução dos canídeos se revela bastante conservadora, apresentando menos alterações morfológicas do que felídeos como os felinos dentes-de-sabre. Para dificultar ainda mais, linhagens de canídeos com parentesco distante algumas vezes evoluíram de forma a exibir características físicas semelhantes, tornando complexa a identificação de parentesco apenas por meio de ossos e dentes.

Bartolini Lucenti e seus colegas ainda não sabem se o cão de Dmanisi pertence ao gênero Canis, o dos atuais lobos e cães domesticados, ou ao gênero separado Xenocyon. É por isso que a equipe optou pela denominação de Canis (Xenocyon), deixando margem para a possibilidade de que o cão pudesse pertencer a qualquer um dos gêneros.

A designação neutra pode parecer engraçada, mas é preciso ter cautela. No início deste ano, pesquisadores descobriram que o extinto lobo-pré-histórico — há muito considerado uma espécie irmã dos lobos modernos — nem sequer pertencia ao gênero Canis.

A equipe pode determinar razoavelmente a dieta alimentar do cão. Os pesquisadores compararam as medidas dos dentes antigos com as de outros canídeos para testar a quantidade de carne provavelmente consumida pelo cão. As proporções de seus dentes corresponderam às dos “hipercarnívoros”, que englobam canídeos vivos e extintos, incluindo o cão-selvagem-africano dos dias atuais, cuja dieta alimentar era formada por no mínimo 70% de carne.

Animais sociais

O estudo também destaca paralelos intrigantes entre o C. (Xenocyon) lycaonoides e o H. erectus. Ambos conseguiram se distribuir por vários continentes: o H. erectus evoluiu na África e seguiu para o leste nas ilhas do Sudeste Asiático ao passo que o cão-de-caça-eurasiático provavelmente evoluiu na Ásia e se deslocou para o oeste, na Europa e na África.

Ambos eram mamíferos bastante sociais (até mesmo altruístas), argumentam os pesquisadores. Mas como determinar o comportamento de um cão a partir de ossos fósseis de mais de um milhão de anos? Um importante indicativo de altruísmo é a presença de patologias nítidas no crânio — como a falta de dentes e mandíbulas deformadas — que quase impossibilitariam que um animal se alimentasse sozinho. Se aquele animal claramente viveu muito após o surgimento de suas patologias, raciocinam os cientistas, deve ter recebido ajuda de outros para obter alimento.

Um sítio arqueológico na Espanha preserva esse tipo de evidências de C. (Xenocyon) lycaonoides, na forma de um crânio assimétrico com várias afecções dentárias, incluindo um dente canino ausente. O cão parece ter vivido por sete ou oito anos, sugerindo que foi ajudado na obtenção de alimentos por outros caçadores da matilha (o próprio sítio de Dmanisi possui evidências semelhantes de partilha de alimentos entre H. erectus: o crânio de um hominíneo idoso indica que o indivíduo morreu anos após perder todos os dentes, exceto um).

A ciência também demonstra que, quando a massa corporal média de uma espécie de canídeo ultrapassa cerca de 20 quilos, a matemática calórica exige o abate de presas ainda maiores, uma tarefa que favorece a caça cooperativa em matilha. As medidas do crânio e dos dentes em Dmanisi e em outros locais sugerem que o C. (Xenocyon) lycaonoides estava bem acima do limite de caça em matilha.

No entanto não há nenhuma evidência direta de que os cães-de-caça-eurasiáticos fossem sociais em Dmanisi. “Nos carnívoros modernos, a sociabilidade pode variar até mesmo dentro de uma mesma espécie”, afirma Mairin Balisi, paleontóloga, pesquisadora de pós-doutorado do Museu e Poço de Piche La Brea, na Califórnia, que não participou do estudo. “Tenho certeza de que também poderia haver variação nos registros fósseis, mas é difícil identificá-la.”

Fósseis que ainda serão descobertos em Dmanisi devem ajudar a confirmar a sociabilidade do cão no local — e novos tipos de evidências moleculares podem confirmar a localização do cão-de-caça-eurasiático na árvore genealógica dos canídeos. Em 2019, os pesquisadores conseguiram extrair e sequenciar proteínas de um dente de rinoceronte encontrado em Dmanisi. Bartolini Lucenti conta que sua equipe também tentou extrair proteínas antigas dos restos mortais do cão recém-descoberto, mas não tiveram êxito.

Balisi, por exemplo, está animada para saber o que o futuro reserva e para poder desvendar a complexa história evolutiva dos cães. “Quanto mais peças do quebra-cabeça forem encontradas, melhor”, afirma ela.

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