Híbridos de mamute e elefante poderão ser criados em dez anos. Mas deveriam?

Uma nova startup, cofundada pelo geneticista de Harvard George Church, quer utilizar elefantes adaptados ao frio para recriar a tundra ártica. Uma iniciativa que provoca importantes discussões científicas e éticas.

Por Michael Greshko
Publicado 23 de set. de 2021, 13:19 BRT
Foto de obra de arte de Damian Hirst de escultura de mamute em uma rua na ...

Esta escultura de Damien Hirst, de um esqueleto dourado de mamute, em exposição em Miami Beach, na Flórida, recebeu o nome de ‘Desaparecido, mas não esquecido’. Mas se a Colossal, uma nova startup, conseguir genes do extinto mamute-lanoso, a espécie poderá ganhar vida em elefantes-asiáticos hibridizados e adaptados ao frio.

Foto de Jeffrey Greenberg, Education Images, Universal Images Group, via Getty

O geneticista de Harvard, George Church, cofundou uma nova empresa com um objetivo audacioso: projetar um elefante semelhante ao extinto mamute-lanoso. A Colossal pretende utilizar o DNA do mamute-lanoso para produzir um elefante-asiático hibridizado que possa suportar climas árticos. 

Com os animais híbridos, o objetivo em longo prazo da empresa é transformar regiões de tundras hoje cobertas de musgos em estepes formadas por gramíneas, como eram durante a época do Pleistoceno – período que abrangeu diversas eras glaciais e que foi interrompido há 11,7 mil anos. Alguns cientistas levantam a hipótese de que, em grandes proporções, essa reversão poderia reduzir futuras mudanças climáticas com a desaceleração do degelo do permafrost ártico. Ao longo do processo, a Colossal pretende criar biotecnologias inovadoras e lucrativas, como ferramentas que complementem os procedimentos tradicionais utilizados para conservação do meio ambiente.

“Estamos recuperando genes, não espécies”, afirma Church. “Na verdade, o objetivo do trabalho é criar um elefante resistente ao frio que seja completamente compatível com o elefante-asiático, que está em risco de extinção.”

A ideia de usar a biotecnologia para resgatar espécies em extinção, ou mesmo extintas, não é nova. Em 2009, pesquisadores obtiveram sucesso ao clonar uma subespécie de íbex extinta em 2000, embora o clone tenha sobrevivido apenas por alguns minutos. Em abril, o Zoológico de San Diego e a organização sem fins lucrativos Revive & Restore, sediada na Califórnia, anunciaram que a clonagem de uma doninha-de-patas-pretas – espécie em risco de extinção –, com o objetivo de restaurar a diversidade genética em projetos de reprodução em cativeiro. 

Há anos o plano de “ressuscitar” um mamute por meio do DNA sequenciado do gigante extinto aparece em manchetes de todo o mundo.

“Grande parte dos processos científicos foram concluídos; eles só precisavam desse subsídio e de foco”, conta Bem Lamm, cofundador da Colossal e empreendedor que fundou recentemente a empresa Hypergiant. “Depois de dois anos trabalhando nisso, é emocionante poder contar o que estamos fazendo.”

Não espere que os pseudomamutes surjam tão cedo. Os planos da Colossal dependem de uma série de tecnologias que ainda não foram testadas em elefantes. Mesmo no cronograma mais otimista, Church diz que o primeiro filhote híbrido da Colossal levará seis anos para ser concebido. Uma manada autossustentável, então, pode levar décadas.

Mesmo em estágios iniciais, os projetos da Colossal promovem debates relevantes sobre o real significado da extinção de uma espécie – e como a biotecnologia pode e deve ser usada nos casos de extinção hoje. Com a presença da Colossal, essas questões já não estão mais no campo teórico, observa Tori Herridge, bióloga especialista em mamutes do Museu de História Natural de Londres. “Minha primeira reação foi: agora a coisa está ficando séria”, lembra a bióloga.

Bem-vindo ao Parque Pleistoceno

O sonho de Church de criar um mamute híbrido começou depois de uma entrevista concedida por ele ao The New York Times, em 2008, sobre o projeto de sequenciamento do genoma do mamute-lanoso.

A ideia surgiu como um grande enigma intelectual. Mas, nos anos seguintes, Church começou a trabalhar com Stewart Brand e Ryan Phelan, fundadores da Revive & Restore, sediada na Califórnia. Brand e Phelan pretendem usar a biotecnologia para ajudar a proteger espécies ameaçadas e resgatar espécies extintas.

“Na verdade, a desextinção e o que chamamos de resgate genético representam esperança; é uma maneira de reparar alguns danos que os humanos causaram ao longo dos séculos”, diz Phelan. “Não é uma questão de nostalgia, é uma questão de biodiversidade.”

Brand e Phelan convidaram Church para as primeiras conferências mundiais sobre desextinção, realizadas em 2012 e 2013 na sede da National Geographic Society, em Washington, DC. (A National Geographic Partners, que produziu este artigo, é uma joint venture entre a The Walt Disney Company e a organização sem fins lucrativos National Geographic Society).

Foi nessas conferências que Church conheceu Sergey Zimov, ecologista russo e diretor da Estação de Ciência do Nordeste em Cherskiy, na República de Sakha. Zimov começou a estudar o permafrost siberiano na década de 1980 e, desde então, alerta sobre as grandes quantidades de metano e dióxido de carbono que podem vazar para a atmosfera durante o processo de degelo.

“Não é uma questão de nostalgia, é uma questão de biodiversidade.”

por RYAN PHELAN
REVIVE & RESTORE

Zimov também pesquisa como manter o carbono no solo. Desde 1996, Zimov e seu filho, Nikita, trabalharam no Parque do Pleistoceno, uma área cercada de tundra, perto de Cherskiy. Os Zimovs introduziram alces, bisões, renas, camelos-bactrianos e outros herbívoros de grande porte na região para estudar o impacto que esses animais poderiam causar no ambiente.

Há milhares de anos, durante o Pleistoceno, grande parte da Europa, Ásia e América do Norte estava coberta por estepes formadas de gramíneas densamente povoadas por diversos herbívoros. Há 10 mil anos, muitos desses herbívoros, como os mamutes, foram extintos em grande parte do mundo. Provavelmente as atividades humanas, como a caça, foram uma das causas das extinções. Com a extinção desses animais de pasto, as pastagens deram lugar a arbustos, árvores e musgos, produzindo a tundra e a taiga que vemos hoje.

Os mamutes, segundo os Zimov, eram essenciais para a manutenção das pastagens produtivas do antigo Ártico. As enormes criaturas derrubavam árvores, revolviam a terra e fertilizavam o solo com seu esterco, ajudando no crescimento das gramas. As passadas pesadas dos pés dos mamutes também abriam camadas de neve e gelo no solo, permitindo que o frio do Ártico penetrasse mais profundamente no permafrost. 

“Se o ecossistema do ártico fosse um corpo”, ilustra Nikita Zimov, “o mamute seria seu braço direito.”

Embora o Parque Pleistoceno não tenha seu braço direito, os herbívoros que ainda habitam essas regiões podem já estar transformando o solo. Em um estudo publicado no ano passado, os Zimovs constataram que, durante o inverno, os solos compactados dentro do Parque Pleistoceno podem ficar cerca de 12 graus Celsius mais frios do que os solos fora do parque.

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    O parque Pleistoceno, com seus lagos e vegetação verdejante, visto do alto. 

    Foto de Katie Orlinsky, Nat Geo Image Collection

    A perspectiva de recuperar as pastagens é “uma hipótese animadora”, diz Jacquelyn Gill, paleoecologista da Universidade do Maine, considerando o impacto que os elefantes de hoje têm em seus habitats. No entanto, ela observa que ainda não se conhece todos os detalhes de como funcionavam os ecossistemas onde os mamutes-lanosos estavam inseridos, o que complica as iniciativas para reproduzi-los hoje.

    “Usar isso como uma justificativa para um projeto como esse – que tem grandes considerações ecológicas, sociais, éticas e bioéticas – é ‘colocar a carroça na frente dos bois’”, acrescenta Gill.

    Sem economia nos gastos

    Ainda assim, o projeto dos Zimovs estimulou Church e os conservacionistas da Revive & Restore a levar a cabo pesquisas mais sérias sobre o DNA de mamutes e células de elefante. 

    Até recentemente, as pesquisas no laboratório de Church sobre elefantes e mamutes envolviam voluntários que trabalhavam meio período e que eram substituídos frequentemente. Nenhuma dessas pesquisas foi publicada em periódicos, para a infelicidade de especialistas que não fazem parte da equipe. Church diz que o laboratório está prestes a apresentar dois estudos para publicação nos próximos meses.

    Outro obstáculo foi que o laboratório conduziu as pesquisas genéticas com um orçamento limitado, de cerca de US$ 10 mil (cerca de R$ 53 mil) por ano, contando com uma doação de US$ 100 mil (R$ 530 mil) do investidor Peter Thiel e o apoio da Revive & Restore. 

    Por outro lado, a Colossal tem US$ 15 milhões (quase R$ 80 mi) à sua disposição, arrecadados de um grupo de investidores, incluindo empresas de capital de risco do Vale do Silício e do famoso coach Tony Robbins. O financiamento da Colossal apoiará as pesquisas em andamento do laboratório de Church sobre células de elefante, bem como o próprio laboratório da empresa, que será dirigido por Eriona Hysolli, ex-pesquisadora de pós-doutorado do laboratório de Church que agora é chefe de ciências biológicas da empresa.

    Beth Shapiro, paleogeneticista da Universidade da Califórnia, na cidade Santa Cruz, diz que o modelo de financiamento da Colossal pode ser transformador para geneticistas que trabalham na área de conservação de espécies. “É uma nova e importante fonte de recursos que está sendo investida diretamente em projetos que são do interesse de todos”, diz ela.

    Para nortear as pesquisas, a empresa recrutou consultores científicos, dois deles já atuaram em pesquisas sobre elefantes ou mamutes: o geneticista Michael Hofreiter, da Universidade de Potsdam, que estuda mamutes e outros animais do Pleistoceno, e o zoólogo de Oxford Fritz Vollrath, que estuda o comportamento de aranhas e elefantes não extintos.

    Entre os consultores da empresa também estão dois grandes bioeticistas da área de edição genômica: R. Alta Charo, da Universidade de Wisconsin, na cidade de Madison, e S. Matthew Liao, da Universidade de Nova York. (O engenheiro químico da Universidade de Stanford Joseph DeSimone, membro do conselho consultivo científico da Colossal, também é membro do conselho de curadores da National Geographic Society).

    Biólogos encontram um caminho

    O objetivo final da Colossal é substituir genes-chave suficientes no genoma do elefante-asiático para criar uma espécie “substituta”, que se adapte ao frio do Ártico, como os mamutes.

    Os últimos ancestrais comuns de mamutes-lanosos e elefantes-asiáticos viveram há seis milhões de anos, explica Herridge, mas as duas espécies ainda compartilham mais de 99,9% do DNA. Porém, o genoma do elefante se estende por cerca de três bilhões de pares de bases. Isso significa que há mais de um milhão de diferenças individuais entre os genomas do elefante-asiático e do mamute-lanoso que ainda devem ser analisados pelos cientistas. 

    Até o momento, Lamm e Hysolli explicam que a equipe da Colossal pretende obter um mínimo de 60 genes de mamute, incluindo genes que informem sobre a gordura do animal, a capacidade do sangue em reter oxigênio em baixas temperaturas e seu pelo desgrenhado (sua marca registrada).

    A inserção dos genes relevantes do mamute no DNA do elefante-asiático exigiria uma série de edições genéticas de uma só vez. Mas esse é um problema que o laboratório de Church já conseguiu solucionar em outras espécies. Sua equipe utilizou a poderosa técnica de edição de genes Crispr-Cas9 para editar o genoma de porco em dezenas de pontos diferentes ao mesmo tempo, com o objetivo de produzir porcos que pudessem ter órgãos transplantados em humanos com segurança.

    Pelo menos um desses genes de mamute foi testado em ratos transgênicos de laboratório. Mas genes individuais podem ter diversos efeitos possíveis em todo o genoma, e o efeito final de um gene nas características de um organismo se resume a quando, onde e quanto esse gene se manifesta dentro do corpo. Esse tipo de regulação depende parcialmente de trechos de DNA que ainda não são bem compreendidos em mamutes extintos.

    Church diz que os pesquisadores da Colossal devem ser capazes de rastrear diversos obstáculos possíveis no início do desenvolvimento de um embrião híbrido. Dito isso, o cientista reconhece que algumas características projetadas – como as orelhas do animal, que precisam ser pequenas para evitar ulcerações – não podem ser verificadas antes de se chegar nos estágios finais do desenvolvimento embrionário.

    Mas a principal preocupação da Colossal é o processo pelo qual desenvolverá seus embriões. Os elefantes-asiáticos estão em risco de extinção, portanto, para evitar o uso de barrigas de aluguel, a empresa afirma que desenvolverá um útero artificial de elefante.

    Experimentos anteriores com cordeiros e camundongos mostraram que úteros artificiais podem sustentar fetos prematuros por até quatro semanas, ou sustentar embriões de cinco dias de idade por até seis dias. Mas, até agora, Church diz que nenhum útero artificial foi utilizado durante todo o período de gestação de qualquer mamífero.

    Para cumprir as metas, a Colossal precisaria primeiramente conquistar o mundo com os elefantes modernos. A gestação dos elefantes dura aproximadamente dois anos e os filhotes nascem pesando mais de 90 quilos.

    A Colossal também precisa de uma produção autossustentável de células de elefantes-asiáticos. Church explica que a empresa deve desenvolver uma linha de células-tronco pluripotentes induzidas, que foram bioquimicamente alteradas para um estado primordial que as permite se transformar em diversos tipos de células possíveis, como ovos. Esses tipos de células-tronco foram criados para outros mamíferos ameaçados, incluindo o rinoceronte-branco-do-norte, mas ainda não para elefantes.

    Pontos negativos

    Qualquer experimento que envolva animais apresenta desafios éticos. Se a Colossal conseguir criar um filhote híbrido saudável, as expectativas aumentam. Os elefantes são animais longevos e inteligentes, que vivem em sociedades matriarcais complexas e multigeracionais.

    A pesquisa sobre mamutes antigos sugere que eles compartilhavam muitas dessas características sociais. Então, como o primeiro híbrido de mamute e elefante deverá ser tratado e socializado? E como um futuro rebanho desses híbridos aprenderia a sobreviver no Ártico – e restauraria a cultura de mamutes do zero?

    “Não se trata apenas de dar vida a esses animais, mas de ter certeza de que, uma vez que existam, eles possam viver uma vida próspera”, diz Liao, bioeticista da Universidade de Nova York e membro do conselho consultivo científico da Colossal. “Caso contrário, estaríamos sendo cruéis com esses animais.”

    A Colossal e os Zimov têm um acordo não oficial de que o Parque Pleistoceno poderá hospedar alguns dos futuros mamutes da empresa. Por enquanto, esse experimento está limitado a 20 km2, com planos eventuais para preencher uma área de 144 km2.

    Entretanto os elefantes migratórios de hoje podem percorrer distâncias muito longas, assim como os mamutes-lanosos. Um estudo recente de uma presa de mamute-lanoso de 17 mil anos constatou que o jovem macho havia caminhado milhares quilômetros ao longo de sua vida útil de 28 anos, cruzando grande parte do Alasca dos dias modernos. Se os objetivos da Colossal forem alcançados, seria necessário reconstituir milhões de quilômetros quadrados de tundra ártica para causar algum impacto no clima global. 

    A extensão dessas mudanças propostas geraria grandes problemas relacionados ao uso do solo e haveria impactos sobre a vida selvagem existente no Ártico e sobre a governança global. E o que poderia acontecer com os aproximadamente 180 mil inuítes – povos que sofrem risco direto em um Ártico desgastado e em rápida mutação na Rússia, no Canadá, nos Estados Unidos e na Groenlândia?

    “Francamente, fico bastante hesitante quando os cientistas colonizadores querem criar um mundo particular”, diz Daniel Heath Justice, pesquisador de estudos indígenas e historiador de cultura animal na Universidade de Vancouver, na Colúmbia Britânica. Ele observa que a biotecnologia pode ser uma ferramenta útil para conservação das espécies, mas acrescenta que o trabalho nesse sentido, como a pesquisa da Colossal, “não pode ser liderado apenas por interesses não indígenas”.

    Em nota, a Colossal afirmou que “não haverá impacto sobre as tribos indígenas que atualmente vivem na área” e que sua “maior prioridade é o compromisso com a conservação e preservação de todas as espécies, inclusive os humanos”.

    Os defensores da empresa argumentam que, se a Colossal conseguir cumprir essa prioridade, as espécies vivas se beneficiarão, mesmo que um híbrido de mamute e elefante nunca venha a existir. Com o financiamento da Colossal, o laboratório de Church está trabalhando em uma maneira de sintetizar o herpesvírus endoteliotrópico do elefante. Esse vírus infecta e mata uma grande quantidade de elefantes-asiáticos jovens, mas não pode ser cultivado com segurança em laboratórios. Cultivar seria um primeiro passo crucial para a criação de tratamentos e vacinas.

    “A única linha de argumento realista e razoável para esses tipos de tecnologias”, diz Shapiro, o geneticista da Universidade da Califórnia, “é ajudar as espécies que estão vivas a prosperar em um ambiente em constante mudança habitado por humanos.”

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