Terremoto mais profundo já detectado ocorreu 751 km abaixo da superfície do Japão
Se confirmado, o abalo refuta a teoria consagrada de geólogos de que as rochas nas profundezas da Terra eram pastosas demais para rompimentos e tremores.
O terremoto, parte de uma série de réplicas profundas, atingiu centenas de quilômetros abaixo das Ilhas Bonin, no Japão, mostradas na imagem.
Em uma noite, há seis anos, centenas de quilômetros abaixo da terra, nosso planeta começou a tremer devido a diversos terremotos peculiares. A maioria dos tremores da Terra atinge algumas dezenas de quilômetros da superfície, porém esses terremotos ocorreram a profundidades onde as temperaturas e pressões são tão intensas que as rochas geralmente se deformam em vez de romper.
O primeiro abalo, de magnitude 7.9, atingiu as costas das remotas ilhas Bonin, no Japão, e foi registrado até 680 quilômetros abaixo do solo, tornando-se um dos terremotos mais profundos de sua dimensão. Então, outra peculiaridade ocorreu na sequência de réplicas que sucederam: um pequeno tremor que, se confirmado, será o terremoto mais profundo já detectado.
Estima-se que o terremoto ultraprofundo, descrito recentemente no periódico Geophysical Research Letters, ocorreu a cerca de 751 quilômetros abaixo da superfície: na camada de nosso planeta denominada manto inferior, onde os cientistas há muito consideravam ser improvável, senão impossível, o surgimento de terremotos. Embora tenha havido indícios de terremotos no manto inferior anteriormente, os pesquisadores não conseguiram localizá-los dentro dessa camada da Terra.
“Essa é de longe a melhor evidência de um terremoto no manto inferior”, afirma Douglas Wiens, sismólogo especializado em terremotos profundos da Universidade de Washington em St. Louis, que não integrou a equipe do estudo.
Alguns cientistas advertem que mais pesquisas são necessárias para confirmar a existência do terremoto e se realmente atingiu o manto inferior. Embora a fronteira do manto inferior esteja situada a uma profundidade média de 660 quilômetros, ela pode variar ao redor do globo. Sob a superfície do Japão, acredita-se que o manto inferior comece a cerca de 700 quilômetros de profundidade. A equipe detectou diversas réplicas a essa profundidade média — mas um terremoto em especial foi além.
Embora terremotos profundos não causem o mesmo tipo de devastação que seus congêneres superficiais, estudar esses fenômenos pode contribuir para que cientistas decifrem as formas enigmáticas pelas quais nosso planeta se movimenta sob nossos pés. Os abalos sísmicos estão entre as raras oportunidades para entender o funcionamento interno de nosso planeta — e cada acontecimento inesperado, como um terremoto no manto inferior, pode oferecer novos vislumbres do subterrâneo.
Esses terremotos excepcionais no manto inferior podem ocorrer sob determinadas condições, explica Heidi Houston, geofísica e especialista em terremotos profundos da Universidade do Sul da Califórnia, que não integrou a equipe do estudo. “Não se pode descartar sua ocorrência”, observa ela. “Esse é um dos aspectos que torna seu estudo interessante, animador e importante.”
Abalos das profundezas
O tremor de magnitude 7.9 já seria raro por si só. A grande profundidade e extensão desse terremoto sacudiram a Terra de alto a baixo. Populações em todas as 47 prefeituras do Japão relataram ter sentido o terremoto, o que nunca ocorreu em mais de 130 anos de registros.
Além disso, a grande maioria dos terremotos são superficiais. Dentre os mais de 56,8 mil terremotos moderados e intensos registrados entre 1976 e 2020, apenas cerca de 18% foram mais profundos do que 70 quilômetros. E apenas cerca de 4% ocorreram abaixo de 300 quilômetros, a profundidade comumente utilizada como limite para diferenciar “terremotos profundos”.
Há quase um século — desde que Herbert Hall Turner, astrônomo e sismólogo inglês, detectou o primeiro terremoto profundo em 1922 — cientistas se perguntam como esses terremotos podem ocorrer.
Perto da superfície, a movimentação lenta das placas tectônicas aumenta a tensão até o fraturamento e deslocamento do solo, provocando os tremores de um terremoto. Nas profundezas da Terra, por outro lado, as elevadas pressões evitam abalos semelhantes. “Tudo é fortemente comprimido em todas as direções”, observa Houston.
Além disso, as temperaturas nas profundezas são escaldantes, fazendo com que as rochas se comportem mais como uma massa do que como pedaços sólidos, afirma Magali Billen, geodinamicista da Universidade da Califórnia, em Davis, que não integrou o novo estudo. Em uma entrevista em vídeo, ela faz uma demonstração utilizando um pedaço cor-de-rosa de geleca, uma massa de brincar. Conforme ela puxa lentamente, a massa se estica e assume a forma de fios viscosos. Contudo, se sofre uma deformação repentina, “a massa se rompe”, observa Billen. Ela puxa rapidamente com força a massa cor-de-rosa e, com um estalo fraco, a massa se parte em duas.
“Por que isso acontece?”, indaga Billen.
Para explorar essa questão, Eric Kiser, sismólogo da Universidade do Arizona, e seus colegas analisaram mais profundamente o grande terremoto nas Ilhas Bonin, que agitou sismógrafos em todo o mundo, incluindo a densa rede do Japão conhecida como matriz Hi-Net.
A equipe analisou o conjunto de dados da Hi-Net em busca de tremores posteriores ao grande terremoto. Um fenômeno tão intenso repercutiria energia através do subsolo, o que pode ocultar pequenas réplicas. Para ampliar os pequenos sinais em meio a toda a interferência, os pesquisadores utilizaram um método conhecido como retroprojeção, que permite incorporar dados de diversos sismógrafos. Logo foram identificadas quatro réplicas entre 695 e 715 quilômetros de profundidade, além de outra que se destacou das demais: um terremoto 751 quilômetros abaixo da terra.
Origens misteriosas
Todos os terremotos profundos ocorrem perto de zonas de subducção modernas ou antigas, onde a colisão de placas tectônicas provoca o atrito de uma placa abaixo da outra. Deformações nas placas que afundam à medida que mergulham a profundidades subterrâneas extremas provavelmente provocam tremores bem abaixo da superfície.
Mas os cientistas ainda não sabem ao certo como a tensão intensifica o suficiente para provocar abalos nas profundezas da Terra. Uma ideia amplamente aceita faz uso do mesmo fenômeno que divide o manto em camadas.
O manto superior está repleto de olivina, mineral verde brilhante, mas, a profundidades maiores, a estrutura cristalina do mineral não é mais estável. Abaixo de 410 quilômetros, os átomos podem se reorganizar nos minerais wadsleyita ou ringwoodita, cada vez mais comuns com o aumento da profundidade. A transformação da olivina no interior da placa pode originar pontos fracos na rocha passíveis de deformação abrupta, gerando um terremoto profundo.
Contudo, a cerca de 660 quilômetros abaixo da superfície, o sistema muda drasticamente. A movimentação das ondas sísmicas perto desse limiar sugere que as rochas abaixo são muito mais densas do que as acima, marcando o início do manto inferior.
Nessa camada, há abundância de bridgmanita, mineral de coloração terrosa, e as transformações da olivina causadoras de terremotos que são comuns acima deixam de ocorrer. Por isso, se um terremoto atingiu essa camada do planeta, algo mais deve tê-lo desencadeado.
Uma possibilidade é a transformação de um mineral diferente dentro da placa tectônica que está afundando, como a enstatita, mineral marrom-claro. Mas Kiser e seus colegas também identificaram outra possível causa nas movimentações da placa.
As pequenas réplicas posteriores ao terremoto de magnitude 7.9 parecem ter ocorrido perto da base de uma placa partida do fundo do Pacífico que perfurou o topo do manto inferior. A equipe sugere que o grande terremoto pode ter provocado um discreto assentamento na placa partida — “e teria sido extremamente discreto”, reitera Kiser. Esse pequeno deslocamento pode ter sido suficiente para concentrar as tensões na base da placa ao mergulhar sob as rochas mais densas do manto inferior.
Uma das maneiras pelas quais esse aumento na tensão pode ocasionar um terremoto profundo é por meio de uma deformação discreta nas rochas, o que pode gerar calor e enfraquecê-las. O processo poderia ter originado um ciclo de retroalimentação, fazendo com que a rocha se deformasse cada vez mais rapidamente à medida que aquecia e enfraquecia, até que os blocos se deslocaram rapidamente em um terremoto. O aquecimento pode até mesmo ter causado derretimento, que agiu como um lubrificante para o deslizamento, conta Billen.
Mais análises e modelagens das estruturas da placa que afundou e das posições das réplicas do fenômeno de magnitude 7.9 poderiam ajudar a decifrar o mecanismo desse fenômeno e também de outros terremotos profundos. “Talvez não seja possível explicar por um único mecanismo”, pondera Haijiang Zhang, sismólogo da Universidade de Ciência e Tecnologia da China (“USTC”, na sigla em inglês) que não integrou a equipe do estudo.
Ricocheteando energia
Zhang, por exemplo, “não ficou surpreso” com a possibilidade de uma réplica atingir o manto inferior. Em sua pesquisa anterior, Zhang e seus colegas identificaram indícios de que o terremoto de magnitude 7.9 próximo às Ilhas Bonin, também pode ter atingido essa camada da Terra a cerca de 680 quilômetros de profundidade.
Mas um terremoto no manto inferior refutaria a teoria consagrada sobre o funcionamento interno do nosso planeta — e nem todos estão convencidos das alegações do novo estudo. Em alguns casos, os métodos empregados para ampliar os sinais de um terremoto como esse podem “produzir alarmes falsos”, escreveu por e-mail Yingcai Zheng, sismólogo da Universidade de Houston. “O diabo mora nos detalhes.”
Pode ocorrer um alarme falso, por exemplo, se ondas de um terremoto diferente rebaterem nas estruturas internas da Terra e forem detectadas pela matriz sísmica, observa a equipe no estudo. Mas John Vidale, sismólogo da Universidade do Sul da Califórnia, afirma que os sinais sísmicos parecem ser provenientes de um terremoto verdadeiro, ao menos tão profundo quanto sugerido pelos autores do estudo. “Parece inconfundível para mim”, indica ele.
Confirmação adicional do fenômeno pode ser obtida a partir da pesquisa de outro tipo de onda sísmica, conhecida como onda S ou onda de cisalhamento. O novo estudo identifica terremotos utilizando ondas de pressão, ou ondas P, que percorrem rapidamente o solo como uma mola puxada para frente e para trás. As ondas S avançam mais lentamente e fazem o solo tremer de um lado para o outro ou para cima e para baixo. Se as ondas S e P chegaram no tempo esperado com base na posição em que a equipe acredita que esse terremoto ultraprofundo ocorreu, “tem-se uma confirmação”, observa Vidale.
No entanto Vidale aponta que, ainda que a profundidade possa ser confirmada, o limite do manto inferior nesse local também é uma questão em aberto. Imagens sísmicas indicam que, conforme a placa afunda nas rochas densas do manto inferior, ela começa a se dobrar para frente e para trás “como uma massa de macarrão instantâneo molhado”, explica Houston. O acúmulo de rochas frias do fundo do mar poderia resfriar as rochas circundantes, empurrando o limite inferior do manto a profundidades maiores e tornando a interpretação do sistema muito mais complexa, prossegue ela.
Estudar o interior da Terra nunca foi fácil. “Não temos acesso ao local”, justifica Houston. “Só detectamos o que as ondas sísmicas nos revelam.” Contudo, à medida que as técnicas para localizar e estudar terremotos continuam a ser aperfeiçoadas, os cientistas têm uma oportunidade melhor de desvendar os misteriosos tremores nas profundezas — uma iniciativa que certamente revelará novas surpresas sobre nosso planeta agitado.
“Os dados sempre nos apresentam uma perspectiva diferente sobre a Terra”, conclui Billen.