Como a matemática pode revelar segredos das ondas gigantes e prevê-las

Antes considerados um mito marítimo, os vagalhões podem representar sérios riscos para os navios em mar aberto. Agora, os cientistas estão desenvolvendo maneiras de identificá-los antes que eles ataquem.

Por Ally Hirschlag
Publicado 7 de jun. de 2022, 18:15 BRT
A icônica xilogravura de Katsushika Hokusai, Under the Wave off Kanagawa, retrata uma grande onda muitas ...

A icônica xilogravura de Katsushika Hokusai, A Grande Onda de Kanagawa, retrata uma grande onda muitas vezes identificada erroneamente como um tsunami. A grande onda retratada é provavelmente um vagalhão.

Arte de Katsushika Hokusai The Metropolitan Museum of Art

Em 1826, o capitão Jules Dumont d'Urville, um cientista e oficial naval francês, foi apanhado por uma tempestade turbulenta enquanto cruzava o Oceano Índico. Ele viu uma parede de água subir cerca de 30 metros acima de seu navio, o Astrolábio. Foi uma das várias ondas com mais de 25 metros de altura que ele registrou durante a tempestade. Um de seus tripulantes se perdeu no mar. No entanto, depois que Dumont d'Urville voltou à terra, sua história, apoiada por três testemunhas, parecia tão estranha que foi tratada como fantasia.

Os cientistas da época acreditavam que as ondas só podiam atingir cerca de 9 metros de altura. Vários relatos do século 19 de ondas gigantes subindo em mar aberto foram amplamente descartados como mitos marítimos. Só mais tarde os cientistas perceberam que os relatos eram raros porque muitos marinheiros que experimentaram os vagalhões, ondas gigantes que aparecem repentinamente, não sobreviveram para contar história.

Os vagalhões são definidos como ondas duas vezes mais alta que as demais ao seu redor. Esses gigantes são imprevisíveis e aparecem subitamente. Com lados íngremes e uma depressão profunda abaixo, eles se assemelham a uma parede de água saindo do mar. Podem surgir durante tempestades com mar agitado, mas também já foram relatados em águas calmas – uma das razões pelas quais são tão difíceis de prever.

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    Navios de Jules Dumont D'Urville, Astrolábio e Zelee, desenhados e litografados por Louis Le Breton, em 1840. A cena mostra uma viagem entre 1837 e 1840 para investigar o perímetro da Antártica. Em uma expedição anterior, cerca de uma década antes, Dumont D'Urville encontrou o que ele descreveu como uma onda de 30 metrôs no Oceano Índico.

    Arte de Smith Archive Alamy Stock Photo (271935)
    Foto de um vagalhão no Oceano Sul tirada do quebra-gelo francês Astrolabe

    Foto de um vagalhão no Oceano Sul tirada do quebra-gelo francês Astrolabe, batizado com o nome do navio histórico de Dumont d'Urville, durante uma de suas viagens regulares entre Hobart, Tasmânia, Austrália, e a estação Dumont d'Urville na Antártica. O formato é notavelmente semelhante ao retratado por Hokusai, em Under the Wave off Kanagawa.

    Foto de Veronique Sarano

    Os cientistas reconhecem as ondas gigantes como fenômenos reais desde meados da década de 1990, mas manter os viajantes marítimos a salvo delas ainda é um grande desafio. Embora sejam relativamente raros, os vagalhões podem causar danos graves e mortes se atingirem um navio em mar aberto. Na vastidão do oceano, a interação das muitas forças que levam a ondas turbulentas pode ser difícil de desvendar. Mais recentemente, os matemáticos combinaram dados do mundo real coletados por boias de monitoramento com modelos estatísticos para entender o que forma essas ondas gigantescas. O trabalho oferece esperança de que possamos até prever os vagalhões antes que eles surjam.

    Como as ondas podem crescer

    À medida que as tecnologias de construção naval avançaram no século 20, o número de testemunhas sobreviventes de ondas gigantes cresceu. Em abril de 1966, um navio de cruzeiro italiano chamado Michelangelo encontrou uma onda de 25 metros que se elevou acima das ondas provocadas por uma tempestade. O navio sofreu danos significativos e três pessoas morreram afogadas, mas a maioria dos que estavam a bordo conseguiu voltar em segurança para a costa.

    A tripulação a bordo do MS München, um navio porta-contêineres alemão, não teve tanta sorte. Em dezembro de 1978, a embarcação deixou a cidade portuária alemã de Bremerhaven para Savannah, Geórgia, nos EUA, carregado com aço e uma tripulação de 28 pessoas. 

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        Esta imagem revela a morfologia de uma onda gigante recriada no laboratório do FloWave Ocean Energy Research Facility, da Universidade de Edimburgo, na Escócia.

        Foto de Dr Donald Noble University of Edinburg (272142), Dr Mark McAllister (272143), University of Oxford (272144)

        Depois de relatar mau tempo e enviar sinais de socorro nas primeiras horas da manhã de 13 de dezembro, o navio e toda a tripulação desapareceram. Um bote salva-vidas que estava preso ao navio a cerca de 19 metros acima da água foi recuperado, mas parecia ter sido arrancado de seu apoio, provavelmente por uma onda gigantesca de pelo menos essa altura.

        As dúvidas científicas sobre essas ondas gigantes e misteriosas não foram completamente dissipadas até 1995, quando um vagalhão atingiu uma plataforma de gás natural no Mar do Norte, na costa da Noruega. O pico da onda, medido por um detector a laser no andaime da plataforma, subiu 25 metros acima da superfície.

        Desde então, os cientistas descobriram que, ao contrário dos tsunamis, que são grandes ondas produzidas por um deslocamento repentino de água durante um terremoto ou deslizamento de terra, os vagalhões se formam devido a uma combinação casual de movimentos de ondas pelo oceano.

        Duas teorias matemáticas principais surgiram para explicar os movimentos das ondas que geram os vagalhões: adição linear e focagem não linear. A adição linear pressupõe que as ondas viajam pelo oceano em velocidades diferentes e, quando se sobrepõem, podem se fortalecer em uma onda que surge repentinamente. A focagem não linear pressupõe que as ondas viajam em grupos e podem emprestar energia umas às outras, o que às vezes gera uma onda gigante.

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          Uma boia de monitoramento operada pela empresa de pesquisa canadense MarineLabs

          Uma boia de monitoramento operada pela empresa de pesquisa canadense MarineLabs é vista em águas agitadas, a aproximadamente cinco quilômetros do local, na costa da Columbia Britânica, onde outra boia-sensor da MarineLabs mediu uma onda extrema em 2020. 

          Foto de Mary & Ed Goski

          Uma razão para a incerteza é que os vagalhões são raros. Mesmo agora, há uma escassez de dados de rastreamento de qualidade. “Geralmente, as ondas oceânicas são medidas a partir de plataformas ou boias, que registram medições de tempo em um local específico sem nenhum conhecimento do que aconteceu antes ou acontecerá depois”, diz Amin Chabchoub, físico de ondas da Universidade de Sydney, na Austrália. 

          Um estudo de 2019, liderado por Chabchoub, avaliou várias observações e modelos de vagalhões. A equipe concluiu que o mecanismo dessas ondas gigantes e traiçoeiras pode mudar dependendo dos vários fatores no mar em um determinado momento.

          Para compensar as observações limitadas das ondas traiçoeiras, os cientistas utilizam tanques de ondas. “Essas estruturas de laboratório imitam o que acontece na superfície do oceano”, esclarece  Chabchoub. Os experimentos podem até explicar correntes e ventos, mas as configurações controladas têm suas próprias limitações.

          Quando a água fica presa em um canal estreito, como um tanque de ondas, é muito mais fácil que ondas grandes se formem e sejam observadas. No entanto, esses experimentos representam um 'cenário irrealista', porque as ondas não podem se espalhar em todas as direções como no mar, diz Francesco Fedele, engenheiro oceânico do Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos EUA.

          A Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos está desenvolvendo um sistema que pode prever, a cada hora, áreas potencialmente perigosas usando um programa chamado Wavewatch III. A versão mais recente, lançada em 2019, usa uma fórmula de probabilidade que Fedele desenvolveu em 2012 para prever condições extremas no oceano em local e horário específicos. É uma ferramenta útil para ajudar os marinheiros a evitar mares perigosos, mas pode não ser suficiente para protegê-los de uma onda que aparece do nada.

          Johannes Gemmrich, cientista pesquisador da Universidade de Victoria, no Canadá, que analisou o vagalhão de 2020 perto da ilha de Vancouver, diz que essas ondas traiçoeiras são mais frequentemente geradas quando as ondas viajam em velocidades diferentes e ocasionalmente se sobrepõem, sustentando o modelo de adição linear. Mas ele acredita que a assimetria das ondas, quando elas têm picos mais altos e vales mais baixos, também desempenha um papel crucial. “Se permitirmos uma assimetria mais forte, a probabilidade de ondas extremas aumenta drasticamente”, diz Gemmrich.

          Uma fórmula geral para o mar 

          Uma escola de matemáticos diz que não importa o que causa uma onda traiçoeira, porque ainda é possível prever vagalhões com bastante precisão usando uma estrutura estatística para ocorrências raras chamada teoria do grande desvio.

          A ideia por trás desse método é modelar a maneira mais eficiente que uma onda gigante pode se formar e, em seguida, usar esse modelo para traçar o caminho de desenvolvimento de um determinado vagalhão. A teoria pode levar em consideração efeitos lineares e não lineares, dependendo do cenário. Por isso seus proponentes a consideram uma teoria unificadora, que talvez possa ser usada para prever ondas gigantes em várias condições oceânicas.

          “Se você observar a maneira mais eficiente de formar essas ondas, ela se parecerá muito bem com o observado em condições reais”, diz Tobias Grafke, matemático da Universidade de Warwick, no Reino Unido.

          Grafke e uma equipe de pesquisadores testaram essa teoria em canais de ondas, mediram resultados em comparação com observações de ondas em tempo real e descobriram que o método poderia prever vagalhões surpreendentemente bem.

          Um problema com essa estrutura, no entanto, é que é extremamente desafiador levar em conta todos os fatores de um estado do mar em um momento específico. Se você é o capitão de um navio, as informações de previsão mais úteis seriam derivadas de observações em tempo real, não de probabilidades estatísticas. Grafke diz que a fórmula de sua equipe pode explicar as especificidades de um determinado estado do mar, mas quanto mais variáveis ​​você incluir, mais difícil será resolver a questão.

          “Quanto mais complexas forem essas [equações], melhor a previsão, maior o esforço e o tempo de computação”, diz Chabchoub. “É, portanto, uma relação entre precisão e tempo para obter resultados úteis."

          Previsão em tempo real

          Os cientistas estão se movendo em direção à tecnologia de previsão de ondas em tempo real, mas as abordagens mais recentes precisam ser testadas em ambientes da vida real – um desafio, dada a raridade dos vagalhões. Em muitos casos, o processo de computação precisa ser acelerado para corresponder à velocidade das ondas.

          Ondas turbulentas podem se formar em apenas “10 a 15 segundos em mar agitado”, diz Fedele. “Ainda é difícil fazer previsões rápidas e precisas em um intervalo de tempo tão curto.”

          Para prever uma onda gigante e traiçoeira, os cientistas precisariam de um sistema de radar para medir continuamente as ondas perto de um barco, para que pudessem executar os dados por meio de um modelo matemático que desenhasse uma imagem da superfície do oceano naquele momento. Um modelo que calcula uma nova superfície a cada cinco minutos ofereceria uma previsão relativamente precisa de como as ondas evoluiriam nos próximos minutos.

          Tal sistema ainda não é uma realidade. “A tecnologia existe. A questão agora é: como você faz isso rápido?”, questiona Fedele.

          À medida que mais ondas são medidas, os matemáticos podem finalmente encontrar uma maneira de antecipar essas ondas mortais antes que elas surjam do oceano, uma tecnologia com a qual, em 1826, o capitão Dumont d'Urville só poderia ter sonhado.

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