Qual é uma das melhores maneiras de prever surtos de Covid-19?
A pandemia trouxe novas maneiras de rastrear patógenos e mitigar doenças. Descubra qual é uma das técnicas mais eficazes para detectar surtos de Sars-COV-2.
Pesquisador de análises químicas segura tubo com amostra de águas residuais.
Cicero, Illinois, Estados Unidos | Sinto um odor desagradável assim que entro no prédio de triagem no lado oeste da Usina de Recuperação de Águas de Stickney – uma das maiores instalações de tratamento de águas residuais do planeta, localizada perto de Chicago, Estados Unidos. Nesse prédio de tijolos de aparência industrial com tubulação exposta, correias transportadoras e maquinário pesado, há câmaras que transportam esgoto bruto – principalmente de residências – que são peneirados para retirar plásticos, trapos, metais e outros detritos.
Ao meu lado, o gerente de operações Joe Cummings ouve um zumbido. “É a bomba em funcionamento”, explica, pois, a cada cinco minutos, um tubo de sucção fino extrai cinco colheres de sopa de água residual turva e cinza-escura não tratada. Durante 24 horas por dia, esse amostrador automático despeja esgoto bruto em um tanque plástico de cerca de 20 litros, e os biólogos da equipe testam o conteúdo do tanque em busca de minerais ou compostos tóxicos que possam prejudicar os micróbios necessários para limpar e processar as águas residuais antes de sua emissão no Canal Sanitário e de Navegação de Chicago.
Desde o início da pandemia de Covid-19, em março de 2020, cientistas também utilizam essas amostras de águas residuais não tratadas para buscar fragmentos do vírus Sars-CoV-2 liberados nas fezes de pacientes infectados, permitindo que fossem obtidos alertas precoces de surtos virais. Os níveis de vírus geralmente aumentam em águas residuais entre quatro e seis dias antes que uma região tenha um aumento nos casos clínicos. Dessa forma, comunidades e profissionais de saúde podem utilizar dados extraídos de águas residuais para prever surtos locais e expandir a testagem e campanhas de vacinação.
O estudo inicial foi tão bem-sucedido que, em setembro de 2020, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (“CDC”, na sigla em inglês) estabeleceram um Sistema Nacional de Vigilância de Águas Residuais, em parceria com dezenas de estações de tratamento em todo o país e financiando o monitoramento de Sars-CoV-2 em águas residuais. Em fevereiro de 2022, recursos dos CDC já financiavam programas em mais de 400 unidades em 37 estados, quatro cidades e dois territórios, embora a cobertura permaneça fragmentada.
Com financiamento garantido até 2025, a meta é atingir todos os 50 estados do país, afirma Amy Kirby, líder do projeto dos CDC, além de expandir a coleta de dados para que sejam incluídos outros vírus como influenza, norovírus, a bactéria transmitida por alimentos contaminados por Escherichia coli, bactérias resistentes a antibióticos e o patógeno fúngico Candida auris.
Inicialmente, as autoridades de saúde pública estavam céticas quanto às iniciativas de monitoramento do Sars-CoV-2 em águas residuais, observa Rachel Poretsky, ecologista microbiana da Universidade de Illinois, Chicago. Alguns receavam que as substâncias químicas no esgoto degradassem o material genético do vírus, ao passo que outros duvidavam de que fosse possível sequenciar material viral distinto proveniente de águas residuais.
Poretsky e outros cientistas provaram que os céticos estavam errados. Com uma bolsa de pesquisa independente, Rachel Poretsky e seus colegas atuaram com o Departamento de Saúde Pública de Chicago para detectar e quantificar o Sars-CoV-2 em Stickney e em outras estações de tratamento de águas residuais da região. “Quando conseguimos demonstrar que os dados provenientes de águas residuais refletiam o que era observado em ambientes clínicos ou preenchiam lacunas em nossa infraestrutura de saúde pública, começou-se a haver um pouco mais de confiança”, conta ela.
Heléne Norder, virologista da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, está entre os cientistas que há anos pressionam pelo avanço da pesquisa de monitoramento de águas residuais. Com melhorias nas ferramentas de sequenciamento molecular, cientistas já haviam identificado o vírus influenza A, o rotavírus, o adenovírus, o aichivírus e o astrovírus em águas residuais. Mas Norder afirma que muitas vezes enfrentou dificuldades para que sua pesquisa fosse levada a sério ou para obter recursos – até agora.
“Infelizmente, foi necessária uma pandemia para perceberem como é importante e esclarecedor esse campo de pesquisa”, afirma Arjun Venkatesan, químico ambiental da Universidade de Stony Brook, em Nova York.
Primórdios do monitoramento de águas residuais
Um dos primeiros êxitos na detecção de patógenos em esgotos ocorreu em Belfast, na Irlanda do Norte, onde houve surtos devastadores de febre tifóide, no século 19. A doença proliferou por meio do consumo de água ou alimentos contaminados com a bactéria Salmonella typhi, que estava presente nas fezes de indivíduos infectados.
Até mesmo após o declínio dos surtos, portadores assintomáticos crônicos continuaram excretando bactérias nas fezes por anos. Contudo, naqueles primeiros dias, os cientistas tiveram dificuldade para provar que a contaminação por esgoto era a responsável pelos surtos da doença.
Então, em 1928, William James Wilson, professor de higiene e saúde pública da Queen’s University, na Irlanda, empregou uma nova técnica de cultura de células em amostras coletadas do esgoto destinado aos reservatórios de sedimentação de Belfast. Ele conseguiu isolar 21 cepas de S. typhi a partir das amostras, fornecendo evidências diretas de que o esgoto continha o patógeno.
Da mesma forma, James Allan Gray, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, confirmou a presença de Salmonella paratyphi – uma bactéria que causa uma febre tifóide menos grave denominada febre paratifóide – em sete dentre 20 amostras coletadas do esgoto em Edimburgo, em 1929. E nos Estados Unidos, John Paul, virologista da Faculdade de Medicina de Yale, e seus colegas confirmaram a presença do vírus da poliomielite ao infectar macacos com amostras de esgoto coletadas em 1939 em Charleston, Carolina do Sul, onde foi registrado um número extraordinariamente alto de casos de poliomielite.
Nos anos seguintes, cientistas pesquisaram o monitoramento de águas residuais como ferramenta de vigilância em saúde pública. Israel, por exemplo, havia ficado livre da poliomielite por seis anos quando um surto, em 1988, deixou 15 pessoas com paralisia. A amostragem de águas residuais revelou que esgotos a céu aberto eram uma possível fonte de exposição ao vírus. Desde então, entre 25 e 30 locais em Israel e territórios palestinos adjacentes coletam amostras de esgoto mensalmente para detectar o vírus da poliomielite antes do surgimento de casos sintomáticos na comunidade. Essa vigilância permitiu que autoridades israelenses identificassem a “circulação silenciosa” do vírus selvagem da poliomielite nos esgotos do país em 2013, resultando em campanhas de vacinação em massa. Nas últimas duas décadas, mais de 20 países adotaram a mesma abordagem.
Os cientistas também conseguiram detectar outros surtos virais em águas residuais não tratadas antes dos sintomas de doenças. Em 2013, Norder e seus colegas registraram um pico de norovírus em amostras de esgoto na Suécia ao menos duas semanas antes da maioria dos pacientes infectados serem diagnosticados em hospitais e em centros de atendimento a idosos em Gotemburgo. Também foram detectadas algumas cepas do vírus da hepatite A em águas residuais semanas antes de serem relatados casos clínicos.
Contudo, em muitos países e regiões, o monitoramento sistemático em estações de tratamento de águas residuais ainda inexiste. Esse cenário pode mudar devido à covid-19.
Buscando o Sars-CoV-2 no esgoto
No início de 2020, cientistas chineses confirmaram a presença de material genético do Sars-CoV-2 em amostras de fezes de um paciente infectado. Logo depois, pesquisadores na Holanda relataram a presença de RNA viral em águas residuais em seu país.
Na Estação de Tratamento de Águas Residuais de Amersfoort, no centro da Holanda, eles encontraram fragmentos de RNA do Sars-CoV-2 em água não tratada seis dias antes dos primeiros casos do país serem relatados, em março de 2020. À medida que mais pessoas se infectavam com a covid-19, esses fragmentos se multiplicavam.
Por essa razão, pesquisadores propuseram o monitoramento do esgoto para fornecer evidências da presença e circulação de Sars-CoV-2 na comunidade. Essa informação é bastante valiosa porque muitas infecções podem ser leves ou assintomáticas, ou pode não haver acesso fácil a testes.
Rolf Halden, engenheiro ambiental da Universidade Estadual do Arizona, logo percebeu essa correlação. Desde 2018, Halden e seus colegas monitoravam águas residuais para rastrear o consumo de opióides em Tempe, Estados Unidos, e compartilhavam atualizações mensais com a comunidade por meio de um painel on-line.
A gripe comum seria a próxima em sua lista, mas logo passaram ao monitoramento do Sars-CoV-2 devido ao surgimento da pandemia. Em maio de 2020, sua equipe identificou um foco de infecção em Guadalupe (cidade dos Estados Unidos com predomínio de população hispânica e nativa-americana onde testes eram escassos), provocando uma rápida reação de agentes comunitários de saúde.
Sucesso análogo decorreu da análise de águas residuais em busca de Sars-CoV-2 nas universidades. Em agosto de 2020, uma equipe de cientistas da Universidade do Arizona detectou material genético do Sars-CoV-2 em águas residuais de um dormitório de estudantes, o que suscitou testes imediatos e a identificação de dois estudantes assintomáticos, que foram isolados.
Veja estas imagens microscópicas do vírus SARS-CoV-2:
Entre novembro de 2020 e abril de 2021, um estudo que analisou dados da cidade de Nova York, Estados Unidos, encontrou uma correlação semelhante entre a ascensão e redução de novos contágios com covid-19 e os níveis de vírus nas 14 estações de tratamento de águas residuais da cidade. E, em novembro de 2021, a cidade encontrou evidências da variante Ômicron em suas águas residuais dias antes do primeiro caso ser clinicamente identificado.
Quando a Ômicron ultrapassou o predomínio da variante Delta nos Estados Unidos, autoridades de saúde pública recorreram a dados de águas residuais para tomar decisões sobre a interrupção de determinados tratamentos, como dois anticorpos monoclonais sem eficácia contra a nova variante, afirma Colleen Naughton, engenheira ambiental da Universidade da Califórnia, em Merced, que acompanha iniciativas de monitoramento de Sars-CoV-2 em águas residuais em todo o mundo.
Especialistas apontam que o monitoramento de águas residuais não substitui programas de testes adequados. Um dos motivos é a dificuldade em determinar a quantidade absoluta de RNA viral em uma comunidade a partir desse tipo de amostra.
“É uma tarefa muito complexa correlacionar a quantidade de vírus ao número de pessoas possivelmente infectadas”, explica Poretsky. Para tanto, é preciso saber quantas pessoas estão disseminando o vírus e por quanto tempo o estão disseminando, o que pode divergir para cada variante, trajetória de infecções e situação local de vacinação.
“Mas até mesmo com essas limitações, o monitoramento de águas residuais pode ser bastante útil”, ressalta Kirby.
Futuro do monitoramento do esgoto
É por isso que muitos especialistas no campo ficaram entusiasmados com o compromisso dos CDC de expandir o monitoramento de águas residuais para além da busca do Sars-CoV-2. Mas detalhes sobre a iniciativa e a escala do monitoramento ainda precisam ser esclarecidos.
Por exemplo, muitas estações de tratamento de águas residuais coletam amostras duas vezes por semana para testes de Sars-CoV-2. Esse nível de testes pode ser desnecessário para patógenos sem mutações tão frequentes. Além disso, algumas doenças podem ser sazonais e não exigem testes durante o ano todo, ao passo que outras são mais relevantes em determinadas regiões do que em outras.
Alguns cientistas propõem uma abordagem abrangente, que analise toda a diversidade de vírus em esgotos urbanos em todo o mundo. O processo implicaria a amostragem repetida dos mesmos esgotos ao longo de anos para identificar vírus comuns de cada região e intervir quando essa composição for alterada.
“A depender da frequência de algumas mutações ou vírus em uma amostra em comparação com a diversidade global, é possível identificar algo que se destaque em cada região”, afirma Marion Koopmans, virologista do Centro Médico da Universidade Erasmus, na Holanda. Mas ainda não existem as ferramentas necessárias para identificar facilmente qualquer vírus desconhecido em uma amostra, pontua a especialista. Além disso, pode ser um desafio distinguir vírus humanos de vírus animais e vegetais em amostras com micróbios novos.
Além dos obstáculos tecnológicos, a vigilância de águas residuais suscita preocupações éticas e de privacidade, sobretudo se o monitoramento ocorrer em uma escala mais localizada em vez de comunitária. “É como bisbilhotar a lata de lixo do vizinho”, afirma Venkatesan.
A não ser que seja para identificar um surto grave, rastrear uma doença ou o uso de determinadas drogas até um indivíduo ou bairro pode provocar estigmatização. Além disso, conduzir esse estudo sem uma interação com a comunidade pode comprometer a confiança. “Estamos cientes das linhas éticas referentes a questões clínicas”, destaca Kirby, “mas não existem diretrizes semelhantes para amostras ambientais”.
Essa questão ganhou importância especial diante do interesse crescente por arquivar tais amostras caso haja necessidade de identificar a origem de determinados patógenos que vierem a causar surtos.
Por ora, as iniciativas de monitoramento continuam avançando. Após notícias recentes sobre a detecção de DNA viral da varíola dos macacos em uma estação de tratamento de águas residuais em São Francisco, Estados Unidos, Poretsky passou a buscar evidências desse vírus em amostras recentes de águas residuais em Stickney e outras usinas de tratamento em Illinois. A disponibilidade escassa de testes clínicos para uma doença como essa “destaca a importância do monitoramento de águas residuais”, afirma Poretsky.