Vacina contra a Covid pode desencadear zumbido no ouvido?
Cientistas investigam se há uma conexão entre as vacinas e centenas de novos casos de zumbido debilitante nos ouvidos.
Não é fácil descobrir se uma vacina causa um efeito adverso específico, como o zumbido.
Depois que Gregory Poland, médico interno da Clínica Mayo e diretor do Grupo de Pesquisa de Vacinas, recebeu sua segunda dose da vacina contra a Covid-19, em fevereiro de 2021, ele desenvolveu um zumbido nos ouvidos tão forte e repentino que quase perdeu o controle do carro enquanto voltava para casa.
“Parecia que alguém pegou um apito e do nada começou a soprá-lo no meu ouvido”, lembra, “e nunca mais desapareceu”.
Poland, um dos principais pesquisadores de vacinas do mundo e editor-chefe da revista médica Vaccine, é uma das milhares de pessoas que acreditam que o zumbido (também chamado de tinnitus) desenvolvido após a imunização contra a Covid pode estar relacionado à vacina. Esta condição é uma consequência já conhecida de uma infecção por Covid.
Evidências crescentes (de estudos científicos e relatos de casos) sugerem que pode haver uma conexão entre as vacinas contra a Covid-19 e casos raros de tinnitus severo. A Johnson & Johnson o listou como um possível efeito adverso em seu boletim informativo da vacina contra a Covid-19 nos EUA em fevereiro de 2021. Por sua vez, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aconselhou investigar se existe uma relação entre várias vacinas contra a Covid e o zumbido em seu primeiro boletim informativo de 2022. Em julho de 2022, a Agência Europeia de Medicamentos adicionou o zumbido como um possível evento adverso da vacina Astra Zeneca. A Austrália atualizou o rótulo da Novavax em 27 de janeiro para reconhecer o zumbido como um possível efeito adverso.
Nos Estados Unidos, mais de 16 mil pessoas relataram sentir um zumbido após tomarem vacina contra a Covid, algumas nas primeiras horas posteriores e outras nos dias ou semanas seguintes. Martha Sharan, porta-voz dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), informou que o órgão “não tem evidências suficientes para justificar o lançamento de um estudo epidemiológico”.
“Estamos cientes de que isso está ocorrendo, mas o zumbido é uma condição muito comum que tem muitas causas e muitos fatores de risco”, disse Sharan. “Não estamos descartando e continuaremos monitorando esta condição, mas não há nada que nos mostre que há um problema de segurança entre a vacina contra a Covid-19 e o zumbido”.
Os CDC foram criticados por Poland e outros especialistas que solicitaram que a questão fosse estudada. Na quinta-feira, Poland manifestou que estava desapontado com a resposta dos CDC. “Mostre-me os dados, qual é o impedimento, e o que você faz com todos esses relatórios? ” Com relação à decisão dos CDC de não realizar um estudo maior neste momento, ele disse que “gostaria de ver a transparência e como foi tomada a decisão”.
Mas outros especialistas expressam ceticismo de que possa haver uma ligação entre uma vacina e um evento adverso que ocorre tão rapidamente, incluindo Paul Offit, diretor do Centro Educativo de Vacinas do Hospital Infantil de Filadélfia (EUA) e co-criador da vacina contra o rotavírus.
“Como regra geral, os efeitos colaterais ligados às vacinas estão associados à resposta imune à vacina”, disse ele, explicando que geralmente leva pelo menos vários dias para ocorrer um efeito adverso. “O que está acontecendo uma hora depois de você receber uma vacina para causar o zumbido? ”, questiona.
Um som fantasma
O zumbido afeta mais de 25 milhões de adultos norte-americanos em algum momento de suas vidas, de acordo com a Associação Americana de Tinnitus, e é um sintoma de cerca de 200 distúrbios diferentes, desde resfriados comuns até condições mais graves. Também pode resultar da perda auditiva ou do uso de diferentes medicamentos. O zumbido pode ser temporário ou crônico, mas não há cura e existem poucos tratamentos eficazes.
Estudar o zumbido é difícil e há desafios específicos para investigar uma possível ligação.
“Ao contrário da maioria dos outros efeitos colaterais, você não pode medi-lo, não pode fazer estudos de imagens, não pode fazer um exame de sangue, pelo menos não atualmente. É tudo subjetivo”, disse Poland. “Isso gera maior dificuldade porque, para os médicos, os efeitos colaterais que não podemos ver, medir ou mesmo tratar são geralmente descartados e desconsiderados. E acho que é isso que os CDC estão fazendo.”
As dificuldades levantadas por Poland são problemáticas, disse a otorrinolaringologista de Stanford Konstantina M. Stankovic. “O zumbido é um som fantasma gerado pelo cérebro, que normalmente o produz quando há uma lesão no ouvido interno”, explicou. Stankovic acrescentou que a falta de indicadores objetivos é um “enorme impedimento” no campo. “Temos que confiar em relatórios dos pacientes e questionários subjetivos.”
Mas para muitas pessoas, sua própria experiência é uma evidência poderosa.
Robert Edmonds, um engenheiro mecânico de 37 anos que trabalha para o governo dos EUA em Las Cruces, Novo México, disse que o zumbido em seus ouvidos se desenvolveu após a segunda dose da vacina. Ele agora está recebendo acetazolamida (um medicamento para glaucoma utilizado para tratar outras condições, incluindo zumbido) e disse que o remédio atenuou o barulho, mas que ele ainda continua.
“Não há como escapar disso”, disse Edmonds. “É como uma prisão dentro da minha cabeça. Não há para onde ir, nem fone de ouvido resolve. Está lá o tempo todo.”
Edmonds passou dois anos conscientizando sobre a necessidade de mais pesquisas, inclusive atuando como administrador de um grupo de mídia social com quase mil pessoas que sofrem de zumbido. Ele se comunicou regularmente com a agência federal de medicamentos dos EUA (FDA, na sigla em inglês) e a divisão de segurança de vacinas dos CDC. Vasculhou pesquisas médicas e colocou suas habilidades de estatística em prática (de seu mestrado em engenharia mecânica e doutorado em astronomia).
“Só estou tentando fazer com que alguém investigue isso”, disse ele.
Um estudo da Nature Medicine com mais de 150 mil pessoas que receberam tratamento para Covid do Departamento de Assuntos de Veteranos dos EUA descobriu que o zumbido teve um impacto muito maior do que outros sintomas sensoriais, incluindo anormalidades na visão e perda do olfato ou paladar. Mesmo com estudos como este, Edmonds diz que é difícil transmitir o quão perturbadora pode ser esta condição. Ele diz que conhece duas pessoas que cometeram suicídio porque o zumbido que elas ouviam (uma após a vacina e outra após uma infecção por Covid) era muito perturbador.
Kathleen DesOrmeaux, uma mulher de 62 anos de Hampton Roads, Virgínia (EUA), ficou feliz em receber a vacina porque seu pai havia morrido de Covid e ela queria fazer sua parte para retardar a pandemia. Quinze minutos após sua primeira dose, em março de 2021, ela teve vários acessos de vertigem e, nas duas semanas seguintes, seus ouvidos começaram a zumbir sem parar.
Aos 67 anos, Poland considerou que ser infectado pela Covid ainda era um risco substancial, então, ele optou por receber uma dose de reforço da vacina – apesar de ter desenvolvido zumbido após a segunda dose. A princípio, seu zumbido diminuiu, mas depois voltou mais alto. Ele se lembra de estar sentado olhando para as estrelas, “e lágrimas vieram aos meus olhos quando percebi que nunca mais ouviria o silêncio. Isso tem um efeito profundo em você.”
Quais foram as ações dos CDC?
Em 3 de fevereiro, o Sistema de Notificação de Eventos Adversos de Vacinas (Vaers, na sigla em inglês), gerenciado pelos CDC, tinha mais de 16.350 notificações de zumbido de pacientes que o desenvolveram após uma das vacinas contra a Covid-19. Cerca de 43% desses casos ocorreram um dia após a aplicação. Este é um dos relatos mais comuns, além dos efeitos colaterais já conhecidos da vacina.
Mas o Vaers não consegue mostrar que um evento adverso é causado por uma vacina porque é um sistema de monitoramento passivo, o que significa que qualquer pessoa pode notificar um evento adverso. Os relatórios também podem ser imprecisos, não verificados, duplicados ou coincidentes. Além disso, o número de notificações não pode ser usado para estabelecer uma taxa (com que frequência ocorre o evento adverso).
Para determinar se um efeito adverso é causado pela vacina, os CDC analisam os dados do Vaers. Os CDC solicitam registros médicos para todos os indivíduos que apresentaram relatórios de eventos adversos sérios ao Vaers. Eles só fazem uma análise mais detalhada se detectarem uma taxa acima do esperado.
Nesse caso, os CDC dizem que procuraram diagnósticos de zumbido que ocorreram até 70 dias após a vacinação contra a Covid em 6,6 milhões de registros médicos de pessoas no Projeto de Segurança de Vacinas (VSD, na sigla em inglês), um banco de dados usado para examinar se uma determinada condição de saúde é estatisticamente ligada a uma determinada vacina.
A agência disse em setembro que não encontrou evidências de que os diagnósticos de zumbido foram feitos após a vacinação, mas não publicou essa análise e se recusou a compartilhar o relatório preliminar com a National Geographic.
No início de outubro, Sharan disse que Tom Shimabukuro, que dirige a equipe de segurança de vacinação contra a Covid-19, desejava adiar uma entrevista com a National Geographic porque os CDC estavam conduzindo uma análise adicional de zumbido e perda auditiva com vacinas contra a Covid. Quase quatro meses depois, Sharan escreveu que os CDC atualmente não planejam lançar um estudo epidemiológico no VSD, que novamente recusou um pedido de entrevista da National Geographic com Shimabukuro.
Se os CDC tivessem encontrado uma ligação estatisticamente significativa com o zumbido, poderiam ter tomado medidas para incluir uma advertência oficial nos rótulos das vacinas. Essas medidas dependem do efeito colateral e geralmente envolvem ações do FDA e do fabricante da vacina.
O que mostram os dados?
Muitos estudos documentaram que uma infecção por Covid pode causar zumbido. A pesquisa de Stankovic mostrou que o vírus SARS-CoV-2 pode infectar tipos específicos de células no ouvido interno. Mas essa descoberta não prova uma ligação entre a vacinação contra a Covid-19 e o zumbido.
A pesquisa sobre zumbido ou, mais amplamente, sobre perda auditiva e vacinas contra a Covid é dispersa e contraditória, baseada principalmente em relatos de casos.
O único estudo em grande escala, de setembro de 2022, comparou novos casos de zumbido após a vacinação contra Covid-19 com novos casos após vacinação contra gripe, pneumonia e tétano, difteria e coqueluche, em 2019. Esse estudo descobriu, entre quase 2,6 milhões de pessoas, que aproximadamente uma em 2600 desenvolveu o primeiro caso de zumbido dentro de três semanas após a primeira dose da vacina contra a Covid-19. Isso é menor do que novos casos de zumbido após as outras vacinas, mas maior do que após uma segunda dose da vacina contra a Covid-19.
A razão pode ser que “os pacientes com predisposição ao zumbido relacionado à vacina podem ser mais vulneráveis após a primeira dose do que a segunda, ou que a primeira dose provoca uma resposta inflamatória com maior probabilidade de causar zumbido”, especularam os autores.
O estudo não pôde, no entanto, mostrar um vínculo causal entre a vacinação contra a Covid-19 e o zumbido, e não considerou a taxa geral de zumbido na população. Os autores também observaram que o risco de zumbido após a vacinação é “provavelmente menor do que após a infecção”.
Pesquisadores da Oracle Health Sciences, uma empresa de dados de saúde e ciências da vida, analisaram os dados do Vaers até setembro de 2021 usando um método projetado para superar um dos desafios estatísticos de procurar um possível efeito colateral raro que é comum na população em geral. O estudo, publicado em junho de 2022 e cujos autores também incluem um funcionário atual da FDA e outro aposentado, “implica que há fortes evidências estatísticas que ligam as vacinas de mRNA ao zumbido”, disse o principal autor Rave Harpaz. Mas os dados do Vaers não podem mostrar uma relação causal. A National Geographic pediu aos CDC que comentassem os resultados em 29 de setembro de 2022, mas Shimabukuro disse por meio de um e-mail de Sharan que não poderia comentar um estudo realizado fora da agência.
O relatório da OMS revelou que 31 644 casos de zumbido, de 86 países, foram relatados até novembro de 2021, mais de três vezes o que seria esperado (8549). Uma taxa pós-vacinação maior do que a taxa de base em uma população é um dos vários critérios usados para determinar se um evento adverso pode ser causado diretamente por uma vacina, de acordo com Poland.
Uma análise de segurança da vacina Johnson & Johnson em 43 776 participantes de ensaios clínicos encontrou nove casos de zumbido no grupo vacinado e nenhum no grupo placebo nas quatro semanas após a vacinação, mas os autores não calcularam a significância estatística desse desequilíbrio.
No entanto, mesmo que os autores a tivessem calculado, esse desequilíbrio poderia ser uma anomalia estatística, diz Offit. Os testes da Merck com sua vacina contra o rotavírus incluíram no grupo da vacina cinco casos de doença de Kawasaki, uma condição que causa inflamação dos vasos sanguíneos, e nenhum caso no grupo do placebo, diz ele.
Um porta-voz da Pfizer disse que a empresa revisou os casos de zumbido e não encontrou nenhuma relação causal com a vacina. Moderna, Novavax e AstraZeneca não responderam às perguntas até o momento da publicação.
Futuro das pesquisas sobre zumbido
Poland ficou impressionado tanto com a gravidade do seu caso quanto de outros. “Em 40 anos de prática clínica, nunca ninguém falou sobre [zumbido] nesses termos”, disse. Para ele e muitos outros ao redor do mundo, tem sido uma “consequência sem fim que transformou a sua vida para sempre”. É por isso que ele fica irritado com o fato dos CDC não planejarem a investigação mais profundamente. Sua avaliação: “Os CDC precisam mergulhar tão fundo nessa preocupação quanto fez com a miocardite. As pessoas estão sofrendo”.
Outros cientistas, no entanto, estão tomando nota e adicionando o zumbido à vigilância de eventos adversos. O ex-cientista dos CDC Robert Chen, que ajudou a desenvolver o Vaccine Safety Datalink, fundou e dirige a Brighton Collaboration, um grupo de cientistas cuja missão inclui o desenvolvimento de definições padronizadas de eventos adversos de vacinas. A Brighton Collaboration adicionou o zumbido à lista de eventos adversos de interesse no início de novembro. Anteriormente, este grupo foi responsável por caracterizar a miocardite associada à vacina quando foi identificada como um efeito colateral raro das vacinas de mRNA.
O pesquisador Shaowen Bao, professor associado de neurociência da Universidade do Arizona (EUA) que estuda neuroinflamação e zumbido em modelos animais, está analisando dados de 400 pessoas que relataram ter desenvolvido zumbido após as vacinas contra a Covid. Sua pesquisa, atualmente inédita, revela padrões que ele acredita que podem sugerir uma possível relação causal entre vacinação e zumbido. A pesquisa de Bao não tem grupo de controle e está baseada em uma amostra não aleatória de pessoas, mas ele acha que as associações são fortes o suficiente para que os CDC examinem mais de perto o zumbido.
Poland acredita que os dados oferecem pistas para uma possível ligação que merece ser estudada em maior profundidade. Uma delas é quando o momento de um evento adverso ocorre próximo à vacinação, como aconteceu em quase metade dos casos de zumbido relatados no Vaers. Só porque um evento adverso ocorreu próximo ao momento da injeção não prova que seja a causa”, disse Poland, “mas é uma hipótese que merece ser testada”.
Também é importante verificar se o evento adverso está ocorrendo em circunstâncias inesperadas. Por exemplo, disse Poland, “não esperamos que pessoas de 20 e 30 anos desenvolvam zumbido crônico na ausência de uma doença conhecida”.
Outra consideração é se há uma resposta à dose (se um sintoma aumenta ou muda com doses adicionais). Poland e outros notaram mudanças no tom ou na gravidade de seu zumbido com uma segunda dose ou dose de reforço.
Poland enfatiza que todas as vacinas têm algum risco de efeitos colaterais e, em termos de saúde pública, ele diz que o benefício dessas vacinas supera amplamente os riscos. Mas ele acha que é fundamental que o público seja totalmente informado sobre possíveis eventos adversos. “Você não pode escolher se vai ser infectado, se vai ter uma complicação ou se vai ter um efeito colateral de uma vacina”, diz ele. Tudo o que você pode fazer é analisar os riscos e benefícios e não tomar decisões baseadas no medo.
“Precisamos defender que esta hipótese é séria o suficiente para que o CDC a investigue”, disse Poland. Ele recebeu mensagens de pessoas do mundo inteiro cujo zumbido após a vacinação contra Covid é tão grave que eles pensaram em tirar a própria vida, diz ele. “É até esse ponto que isso muda profundamente a qualidade de vida de uma pessoa. ”
Nota do Editor: Este artigo originalmente mencionou erroneamente a idade de Kathleen DesOrmeaux. Ela tem 46 anos.