Gigantescos enxames de gafanhotos invadem a África Oriental novamente
Nova onda de insetos pode ser ainda pior e ocorre no início do período de crescimento da lavoura, ameaçando a alimentação de milhões de pessoas.
O gafanhoto-do-deserto é uma das pragas migratórias mais destrutivas do mundo: ele pode comer o equivalente ao seu próprio peso – menos de 2 g – de vegetação por dia. O Quênia testemunha a pior invasão de gafanhotos em seu território em 70 anos. Enquanto os bichos se multiplicam e a temporada de crescimento vegetativo, quando lavouras estão mais vulneráveis, avança na África Oriental, especialistas temem que a infestação pode deixar mais de 25 milhões de africanos passando fome.
“Esses... enxames... são aterrorizantes”, disse Albert Lemasulani, sem fôlego, em um vídeo no qual aparece percorrendo um aglomerado de gafanhotos-do-deserto no norte do Quênia em abril. Os insetos, com mais de cinco centímetros de comprimento, zuniam ao redor dele em nuvens espessas, as asas batiam como dez mil baralhos de cartas sendo embaralhados em uníssono. Ele lamentou: “Há milhões deles. Em todo lugar... e eles estão devorando tudo... é realmente um pesadelo.”
Lemasulani, 40 anos, vive com sua família em Oldonyiro, onde cria cabras que se alimentam de arbustos e árvores. Ele já tinha ouvido falar de gafanhotos nas histórias contadas pela comunidade. Isso mudou no início deste ano, quando a maior invasão de insetos vorazes das últimas décadas chegou à África Oriental. Com apetite aparentemente insaciável, os gafanhotos podem causar perdas agrícolas significativas. Um gafanhoto-do-deserto adulto consegue devorar em vegetação o equivalente ao seu peso corporal, cerca de duas gramas, todos os dias. Os enxames podem chegar a 70 bilhões de insetos – o suficiente para encobrir dois terços da cidade de São Paulo – e destruir 136 milhões de quilos de plantações em um único dia. Até mesmo uma aglomeração mais modesta de 40 milhões de gafanhotos-do-deserto consegue comer em um dia a mesma quantidade de alimento que 35 mil pessoas.
Um enorme enxame de gafanhotos encobrem acácias no norte do Quênia em abril. Os enxames podem incluir até 70 bilhões de insetos – o suficiente para encobrir dois terços da cidade de São Paulo – e decimar mais de 130 milhões de quilos de plantações em um dia.
Esse é o pior “surto” – categoria de intensidade abaixo de “praga” – de gafanhotos-do-deserto já presenciado na Etiópia e na Somália nos últimos 25 anos e no Quênia em 70 anos. O período de crescimento vegetativo está próximo e, com o aumento dos enxames ao mesmo tempo em que o coronavírus dificulta os esforços de controle, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima que até 25 milhões de habitantes da África Oriental sofrerão com a escassez de alimentos no fim deste ano.
Cerca de 13 milhões de pessoas na Etiópia, Quênia, Somália, Djibuti e Eritreia já sofrem de “insegurança alimentar grave”, segundo a FAO, ou seja, podem passar um dia inteiro sem se alimentar ou ficar sem alimento nenhum.
“Temos medo do futuro porque esse tipo de enxame não deixará nada para alimentar nossos animais”, diz Lemasulani. Os agricultores estão igualmente preocupados com suas colheitas. “Oramos para que Deus retire os gafanhotos daqui. É tão aterrorizante quanto a Covid-19.”
No início
Gafanhotos-do-deserto surgem quando áreas secas ficam alagadas pela chuva, pois buscam solo úmido e arenoso para depositar seus ovos, próximo de uma vegetação que possa alimentar as ninfas de gafanhoto até que as asas se desenvolvam o suficiente para que consigam voar em busca de alimento.
Albert Lemasulani, pastor de animais no Quênia, tem rastreado enxames de gafanhotos voluntariamente para o governo e para a FAO desde que os insetos apareceram próximos a sua cidade, Oldonyiro, no norte do Quênia. Eles são controlados com pesticidas, mas como podem percorrer mais de 130 km por dia, encontrá-los já é um desafio.
Normalmente, quando os gafanhotos têm espaço para se dispersar, eles evitam contato entre si. Contudo, em circunstâncias favoráveis, as populações de gafanhotos-do-deserto podem se multiplicar 20 vezes a cada três meses. As aglomerações causadas devido ao aumento da taxa de reprodução desencadeiam uma mudança de comportamento. Quando não estão mais solitários, eles se transformam em criaturas sociais ou “gregárias”, formando grandes enxames.
Condições de proliferação e migração não foram somente favoráveis, mas ideais. Em 2018 e 2019, uma série de ciclones, que os cientistas atribuem a mares com temperaturas excepcionalmente quentes, chegou ao Oceano Índico e alagou um deserto arenoso na Península Arábica conhecido como Quarteirão Vazio. Em seguida, o número de gafanhotos aumentou subitamente.
“Geralmente, achamos que os desertos são ambientes inóspitos e com baixa produtividade, o que de fato ocorre na maior parte do tempo”, diz Dino Martins, explorador da National Geographic, entomologista, biólogo evolucionista e diretor executivo do Centro de Pesquisa Mpala, no norte do Quênia. O centro está trabalhando para sequenciar o genoma do gafanhoto-do-deserto e descobrir quais fatores ambientais e genéticos podem transformar os gafanhotos de solitários em gregários. “Em condições ideais [no deserto], eles podem mudar e passar a ter maior atividade biológica. É basicamente o que estamos presenciando agora”, diz ele.
Um gafanhoto-do-deserto morto em um galho de árvore. A espécie pode alcançar 10 cm e viver de três a cinco meses. O ciclo de vida consiste em três fases: ovo, ninfa e adulto. Gafanhotos costumam ser solitários, mas sob certas circunstâncias, se reproduzem exponencialmente e se transformam em criaturas gregárias, mudando de cor e formando enxames enormes e destrutivos. Até 1921, acreditava-se que gafanhotos solitários e gregários eram duas espécies diferentes.
Gafanhotos-do-deserto costumam comer vegetação verde e podem deixar plantas completamente secas, como este arbusto no norte do Quênia. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura alerta que se eles migrarem para outras áreas cultivadas, milhões de pessoas podem passar fome.
Este vale está na rota dos gafanhotos. O caminho é, em grande parte, determinado pelos ventos.
Em junho de 2019, grandes enxames foram registrados ao longo do Mar Vermelho movimentando-se em direção à Etiópia e Somália. E, com a ajuda de chuvas inesperadamente fortes que atingiram a África Oriental de outubro a dezembro, os insetos se espalharam para o sul, no Quênia, Uganda e Tanzânia.
Desde a chegada dos gafanhotos na África Oriental, as condições favoráveis de reprodução continuaram e os enxames se proliferaram. “Não sei dizer se é um número 20 vezes maior, mas [a população] está muito mais numerosa”, diz Cyril Ferrand, líder da Equipe de Resiliência da FAO para a África Oriental, que monitora a situação global de gafanhotos-do-deserto.
Gafanhotos-do-deserto congelados no Centro de Pesquisa Mpala. Cientistas desse laboratório trabalham para sequenciar o genoma do inseto. "O gafanhoto-do-deserto é uma criatura enigmática que leva uma vida dupla", diz Dino Martins, diretor executivo do centro de pesquisa. De um lado, é "um gafanhoto normal, tentando sobreviver. Mas, quando as condições permitem, [ele é] uma besta voraz de grande mobilidade."
Ivy Ngiru, gerente do laboratório, inspeciona um gafanhoto congelado. Cientistas esperam que o sequenciamento genômico do gafanhoto-do-deserto permita que se compreenda melhor quais variáveis ambientais e genéticas transformam esses animais de solitários em criaturas altamente sociáveis.
Quando a primeira onda de gafanhotos chegou à região no fim de 2019, a maior parte das plantações do ano anterior já havia atingido a maturidade ou sido colhida. Mas o momento da atual “segunda geração” – uma onda ainda mais massiva – é especialmente preocupante.
Isso ocorre porque o principal período vegetativo da África Oriental começa em meados de março e as culturas em desenvolvimento são particularmente vulneráveis a gafanhotos, explica Anastasia Mbatia, gerente técnica de agricultura da Farm Africa, uma instituição beneficente que trabalha com agricultores, pastores e comunidades florestais na África Oriental. “Quando os gafanhotos se alimentam das folhas que estão germinando, a plantação não consegue crescer”, diz ela. “Os agricultores precisariam semear novamente.” Mas um segundo cultivo nas semanas seguintes provavelmente não seria bem-sucedido, já que o melhor clima para desenvolvimento já passou.
Pulverização que alivia
Para conter a explosão de gafanhotos, os governos costumam pulverizar pesticidas – no ar ou diretamente no solo. Ferrand, da FAO, conta que o fornecimento desses produtos químicos durante a pandemia da Covid-19 é um desafio. “O fornecimento atrasou. Portanto, a gestão [dos estoques de pesticidas] hoje é uma realidade muito diferente porque há menos aviões se deslocando no mundo todo”, diz ele.
Gafanhotos-do-deserto costumam voar durante o dia e se empoleirar à noite. Lemasulani diz que ele tenta localizá-los de tarde, assim os aplicadores de pesticidas têm mais chance de encontrá-los.
Em lugares como o Quênia está ainda mais difícil, pois o país tem pouca experiência com invasões gigantescas de gafanhotos e está decidindo onde deve realizar a pulverização. Dependendo da direção dos ventos, que determinam amplamente os padrões de voo dos gafanhotos, um enxame pode percorrer 130 quilômetros em um dia. (Em 1988, foi constatado que os gafanhotos-do-deserto se deslocavam da África Ocidental até o Caribe em apenas 10 dias.)
Para rastrear esses enxames altamente móveis, a FAO depende cada vez mais das informações fornecidas por moradores locais, incluindo Lemasulani, que começou a rastrear voluntariamente os enxames de gafanhotos em janeiro.
Com base em uma extensa rede de contatos que o aciona quando são avistados bolsões de insetos, Lemasulani contrata mototáxis para levá-lo aos enxames. Ao encontrá-los, ele insere as coordenadas em um aplicativo para celular chamado elocust3m, lançado no fim de fevereiro por David Hughes e seus colegas do programa PlantVillage da Universidade Estadual da Pensilvânia, um recurso público de acesso livre para pequenos agricultores. Hughes desenvolveu o aplicativo a pedido da FAO, cuja equipe de campo utiliza um programa de rastreamento semelhante em tablets especializados desde 2014. Em seguida, os dados são compartilhados com o governo, que poderá decidir a melhor resposta.
Até recentemente, quando o programa PlantVillage começou a cobrir suas despesas de transporte e telefone, Lemasulani pagava os caçadores de gafanhotos do seu próprio bolso. (Suas viagens foram liberadas das restrições impostas pela pandemia de Covid-19, assim como as sessões de treinamento para novos voluntários do elocust3m – moradores de áreas onde há previsão de enxames –, que, no entanto, precisam utilizar máscaras e ficar a dois metros de distância um do outro.)
Enquanto Lemasulani envolve um xale vermelho em volta dos ombros para se proteger da chuva que começa a cair do lado de fora de sua casa, ele conta por meio de uma videochamada: “Sou de uma família pobre e a igreja católica em Oldonyiro bancou meus estudos no ensino fundamental e médio. Fui apadrinhado por uma pessoa que nunca conheci. Não tenho condições de reembolsar meu patrocinador, mas me sinto honrado em retribuir à minha comunidade.”