Como uma história de crises inspirou gregos a ajudar vulneráveis na pandemia
“A única diferença são as pessoas que recebem os alimentos.” Após anos de austeridade, moradores complementam a insuficiente rede de assistência social.
Konstantinos Polychronopoulos oferece uma tigela de sopa a refugiados que passam pela rua Ermou, em Atenas, Grécia. Polychronopoulos dirige O Allos Anthropos, refeitório cujo lema é “comida para todos”. O refeitório se transformou em uma rede de proteção vital a moradores de todas as origens e camadas sociais durante a pandemia.
O dia 11 de outubro foi agitado no O Allos Anthropos (A Outra Pessoa, em grego), restaurante popular no bairro de Kerameikos, em Atenas, na Grécia. A organização publicou um convite aberto no Instagram para obter ajuda. Apareceram tantas pessoas que não havia atividades suficientes para todos.
Um grupo de voluntários, usando máscaras e luvas, separou doações de roupas para Evia e Karditsa, duas regiões da Grécia duramente atingidas por grandes inundações em setembro. Outros cozinharam tortellini em um fogão a gás na calçada. A refeição era embalada em recipientes de alumínio e distribuída a pessoas famintas em Kerameikos, onde cafeterias modernas dividem espaço com ruínas históricas.
A cena é comum em Atenas: uma iniciativa transmitida de pessoa para pessoa e de rápida mobilização para atender a uma emergência. É uma responsabilidade que O Allos Anthropos tem aperfeiçoado desde sua abertura, em 2011, em resposta ao aumento generalizado da insegurança alimentar e da falta de moradia devido à crise de endividamento do país em 2010. Como condição aos resgates financeiros da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional, foram implantadas medidas de austeridade, deixando muitos gregos pobres, desempregados e desassistidos.
Para preencher esse vazio, Konstantinos Polychronopoulos, fundador do refeitório, formou uma comunidade e conquistou a confiança das pessoas cozinhando para os necessitados – muitos dos quais eram aposentados idosos. Em 2015, o refeitório voltou suas atenções a outra urgência: alimentar um número crescente de migrantes em busca de asilo no centro da cidade. A pandemia de coronavírus e suas consequências econômicas levaram outra grande crise à organização.
De uma situação devastadora para outra, Dhimitris Nora, voluntário de longa data, conta que “a única diferença são as pessoas que recebem os alimentos”.
Essas três emergências debilitaram severamente a Grécia. Na ausência de resposta suficiente por parte de instituições estatais e não estatais de ampla atuação, organizações como O Allos Anthropos passaram a integrar uma grande rede informal de grupos e indivíduos em Atenas que fornece apoio a comunidades vulneráveis.
Para muitos, essa infraestrutura da sociedade civil se transformou em uma rede de proteção crucial durante a pandemia, ainda mais agora que os picos de casos de coronavírus obrigam o país a enfrentar um segundo lockdown, iniciado em 7 de novembro. Durante ao menos três semanas, os moradores voltaram a circular menos e a contar com grupos locais para superar essa nova fase da pandemia, aparentemente sem fim em vista.
Combate à pandemia em um país debilitado
O primeiro caso confirmado de coronavírus na Grécia foi confirmado em 26 de fevereiro. Nas semanas seguintes, a população observou inquieta o aumento gradual no número de casos e as dificuldades da vizinha Itália com seu surto inicial descontrolado. O sistema de saúde da Grécia havia sofrido sérios impactos devido às medidas de austeridade implantadas na última década, e sua capacidade para testar, rastrear e atender pacientes com covid-19 era limitada.
Reconhecendo suas fraquezas, o governo grego impôs um bloqueio em todo o país em 23 de março. A medida foi basicamente preventiva: apenas 624 casos haviam sido detectados em todo o país (para fins de comparação, a Itália impôs seu bloqueio nacional em 9 de março, com 9.172 casos confirmados, e a Espanha, em 14 de março, com 6.251 casos). O governo listou seis motivos essenciais pelos quais se poderia sair de casa durante o lockdown. Além de ir ao mercado e fazer exercícios, também constava ajudar os necessitados – e eles eram muitos.
Professora entrega livros a um pai de aluno em uma escola de ensino fundamental fechada em Atenas em 16 de novembro de 2020. Um segundo lockdown foi anunciado na Grécia em 7 de novembro devido a uma segunda onda de casos de covid-19. Escolas de ensino fundamental, educação infantil e creches permanecerão fechadas até ao menos o fim do mês, com aulas pela TV nacional.
Rua vazia no bairro de Plaka, em Atenas, em 9 de novembro de 2020. Na Grécia, a segunda onda está se revelando mais prejudicial do que a primeira. Segundo as autoridades, mais da metade das mais das mil mortes no país ocorreram após 18 de outubro.
“Tudo mudou em questão de dois dias”, afirma Nora. “Tudo fechou. O fornecimento de alimentos do governo foi interrompido. A igreja parou de oferecer alimentação. E algumas ONGs paralisaram suas atividades. Assim, restaram apenas nós.”
A pobreza é generalizada na Grécia há anos. Em 2019, a Autoridade Estatística Helênica constatou que um em cada três gregos de uma população total de quase 11 milhões de pessoas corria o risco de cair na pobreza ou ficar sujeito à exclusão social, um número elevado para os padrões da União Europeia. As reformas de assistência social no país implementadas nos últimos anos – incluindo um auxílio de renda mínima a famílias que vivem na extrema pobreza desde 2017 e um novo benefício de habitação com verificação da renda existente desde 2019 –não se revelaram suficientes para enfrentar os crescentes desafios sociais da Grécia.
Pouco antes da pandemia, o município de Atenas (com 664 mil habitantes) servia cerca de 1,5 mil refeições prontas diariamente aos sem-teto em uma unidade no centro da cidade e distribuía mais 500 cestas básicas semanalmente a desempregados e pessoas na extrema pobreza.
Em meados de março, com a expansão das restrições ao coronavírus, alguns desses serviços foram interrompidos com pouco aviso prévio, afirma Tassos Smetopoulos, fundador e coordenador da Steps, ONG que apoia “pessoas em situação de rua” – termo utilizado pela instituição para populações sem-teto e excluídas socialmente – em Atenas. “Na minha opinião, a pandemia foi uma boa desculpa para interromper todo tipo de assistência aos mais vulneráveis”, lamenta Smetopoulos.
Em sua defesa, o município de Atenas nega a paralisação de seus próprios sistemas de assistência durante o bloqueio. Pelo contrário, foram feitas mudanças na forma de assistência, afirma Grigoris Leon, chefe do departamento de acolhimento e solidariedade do município. Comparativamente, mais refeições foram distribuídas dentro dos abrigos e centros de acolhimento do que na rua, explica Leon e, em geral, aumentou a necessidade de fornecimento de alimentos aos atenienses porque as ONGs fecharam as portas.
Em resposta ao aumento de pessoas com fome, a Steps intensificou a distribuição de refeições durante o bloqueio. O Allos Anthropos aumentou a produção de alimentos em dez vezes, de 200 para duas mil refeições por dia. Outros, como o grupo de defesa Fórum da Juventude Sírio-Grega (SGYF, na sigla em inglês), estabeleceram parcerias para produzir milhares de outras refeições, que foram distribuídas pela cidade.
Da busca de asilo ao fornecimento de ajuda
Diante da escassez de serviços institucionais, uma população diversificada de moradores de Atenas preencheu o vazio. Além de distribuir alimentos preparados e crus, indivíduos e grupos formaram redes de solidariedade nos bairros e produziram equipamentos de proteção a equipes de emergência e vizinhos.
Shafigheh Qias, costureira e estilista do Afeganistão, foi uma das diversas pessoas que tomaram a iniciativa. No início de abril, ela recebeu um telefonema do projeto Ankaa, uma ONG que normalmente oferece iniciativas de capacitação e cursos educacionais a refugiados em Atenas. Em vez de fechar as portas, o Ankaa converteu suas instalações em uma oficina improvisada de máscaras e recorreu à experiência de Qias. Ela orientou outros voluntários que estavam aprendendo a passar a ferro, cortar e costurar tecidos doados para confeccionar máscaras seguindo um conjunto de diretrizes de outros grupos da sociedade civil e organizações europeias de saúde pública.
Inicialmente, as máscaras de tecido que Qias ajudou a produzir foram distribuídas por meio de redes pessoais e profissionais de voluntários do Ankaa. Com a expansão de sua capacidade de produção de máscaras, o Ankaa fez acordos formais com ONGs maiores e embaixadas europeias, que passaram a distribuir as máscaras em uma escala maior. Ao fim do bloqueio em maio, milhares de máscaras do projeto Ankaa haviam sido distribuídas a hospitais, campos de refugiados e indivíduos.
Para alguns dos mais recentes moradores de Atenas, que fugiram para a Europa de outras regiões assoladas por crises, a resposta à pandemia significa assumir a responsabilidade por suas comunidades adotivas.
“Tudo mudou em questão de dois dias. Tudo fechou. O fornecimento de alimentos do governo foi interrompido. A igreja parou de oferecer alimentação. E algumas ONGs paralisaram suas atividades. Assim, restaram apenas nós.”
“Acredito que meu lugar é na Grécia”, afirma Kareem Kabbani, membro do SGYF, que chegou à capital em busca de asilo no início de 2016. “Não me considero um refugiado, alguém que esteja passagem. Temos uma responsabilidade para com a natureza, a comunidade e nós mesmos.”
Durante o bloqueio, Kabbani preparou refeições todos os dias da semana para distribuição em colaboração com outras ONGs de ajuda a refugiados e grupos da sociedade civil. Além da preparação de alimentos, o SGYF produziu 50 mil protetores faciais de plástico para o ministério da saúde grego, usando uma impressora 3D emprestada.
Após a suspensão do bloqueio na Grécia no início do segundo semestre, os membros do SGYF voltaram a planejar seu festival cultural, político e artístico envolvendo comunidades gregas e imigrantes. O evento A Cidade Responde estava agendado para junho de 2020 – seriam três dias mostrando a diversidade de Atenas por meio de apresentações de música, dança, poesia e teatro, bem como artes plásticas. Agora, foi adiado para maio de 2021, na esperança de que possa ser realizado presencialmente.
Comunidade no novo normal
Após o início da pandemia, alguns estabelecimentos evoluíram para atender a novas necessidades. Em uma esquina de Kypseli, bairro arborizado e multicultural, fica o steki To Mirmingi (A Formiga) – espécie de centro comunitário independente, onde “é possível socializar sem a necessidade de ir a uma magazi (loja) e comprar”, disse o membro da comunidade Gregory Tsardanidis. Mirmingi foi criado em 2013 por um grupo de ativistas políticos gregos dedicados à solidariedade social em resposta à crise econômica.
Embora Mirmingi seja aberto a todos, um grupo principal formado por entre 30 e 50 vizinhos geralmente organiza e participa de assembleias e eventos semanais, como distribuição de alimentos e roupas, exibição de filmes e reuniões de grupos de teatro. Além disso, uma “escola solidária” oferece ajuda no contraturno escolar, sobretudo às diversas crianças imigrantes de Kypseli que estão em processo de adaptação ao sistema escolar grego. É também um lugar onde os vizinhos podem aparecer a qualquer hora para um drinque (Mirmingi vende cerveja e oferece chá de graça) e um bate-papo.
“Perdemos tudo isso por causa da covid-19”, afirma Tsardanidis. Durante o primeiro bloqueio, Mirmingi fechou seu espaço interno de socialização, intensificou a distribuição de alimentos secos e começou a preparar refeições em colaboração com um refeitório local administrado por um conjunto de ativistas voluntários.
A pandemia mudou tudo: em vez de entrar para beber chá e conversar, as pessoas agora recebem cestas de alimentos pela janela do prédio – “é um pouco rude”, afirma Tsardanidis. “Mas é mais importante entregar os alimentos do que ser politicamente correto.”
Muitos dos integrantes mais velhos de Mirmingi tiveram que restringir sua participação devido à pandemia. No entanto, a crise “revitalizou” o steki, conta Tsardanidis, trazendo vários novos membros – a maioria moradores mais jovens que atenderam a pedidos de ajuda durante o bloqueio.
Em Kypseli e perto do centro de Atenas, conforme os stekia consagrados e as diktia (redes) ativistas informais nos bairros expandiram suas operações em resposta à pandemia, novos grupos também foram formados.
“O objetivo de muitos desses grupos era descartar imediatamente o tipo de narrativa que dizia apenas: ‘fique em casa e espere’”, observa Andreas Bloom, funcionário de uma ONG que iniciou um grupo no Facebook para coordenar iniciativas de ajuda mútua após o fechamento das escolas em 11 de março no país. Membros do grupo de Bloom postaram informações para facilitar a entrega de alimentos, remédios e outros produtos básicos aos necessitados. “Essa narrativa transmitia a ideia de que, em primeiro lugar, todos vivemos em condições semelhantes”, diz ele, “e, em segundo lugar, que tudo vai ficar bem. E, no fim, não estamos nada bem”.
Enfrentando a segunda onda – e o futuro
Em setembro, o número de casos de coronavírus na Grécia voltou a aumentar – e depois se multiplicou exponencialmente. De acordo com a OMS, do início da pandemia até 1º de agosto, havia 4.477 casos confirmados de coronavírus na Grécia. Em 1º de novembro, o número de casos havia aumentado para 39.251.
“Acredito que meu lugar é na Grécia. Não me considero um refugiado, alguém que esteja de passagem. Temos uma responsabilidade para com a natureza, a comunidade e nós mesmos.”
Em uma tentativa de evitar o prejuízo econômico decorrente de um segundo bloqueio, o governo impôs diversas medidas em setembro e outubro: restrições a encontros sociais, obrigatoriedade de uso de máscaras em espaços públicos internos e externos, bem como toque de recolher noturno. Mas como os casos continuam aumentando e as unidades de terapia intensiva estão cada vez mais lotadas nos hospitais, o primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis anunciou o lockdown de três semanas no início de novembro.
Kabbani tinha a intenção de conduzir pesquisas sobre os efeitos em longo prazo da pandemia em membros da comunidade de refugiados na Grécia — tanto em termos de vida social quanto em relação aos efeitos nos sistemas burocráticos de pedidos de asilo. Com o segundo bloqueio em andamento, Kabbani conta que ainda não sabe ao certo que tipo de resposta imediata poderá ser adotada pelo SGYF.
O que parece incontestável no momento é que o coronavírus não desaparecerá tão cedo. Em meados de agosto, Gkikas Magiorkinis, especialista em doenças infecciosas e assessor do governo grego, anunciou que o país havia entrado em uma segunda onda da pandemia. Hoje, essa segunda onda está se revelando mais prejudicial do que a primeira na Grécia: mais da metade das mais de mil mortes em por coronavírus no país ocorreram após 18 de outubro, segundo as autoridades.
No entanto, Atenas está preparada para prosseguir com sua tradição de resposta a crises comunitárias diante do novo bloqueio. Embora considere que redes de assistência mútua, como o grupo solidário de Kypseli, provavelmente não serão institucionalizadas em escala nacional, Bloom mantém um otimismo cauteloso.
“Espero que a colaboração das pessoas nessa emergência as torne também mais sensíveis – de modo que utilizem essas experiências posteriormente em suas vidas para inspirar uma sociedade melhor”, afirma ele. “É, de certa forma, um primeiro passo.”
Sharon Jacobs é jornalista e antropóloga pela Universidade da Pennsylvania e conduz pesquisa sobre o movimento de solidariedade a refugiados em Atenas, na Grécia.