Cortes, quebras, queimas: os rituais mortuários dos primeiros brasileiros

Enterros de 10 mil anos de idade em uma caverna de Minas Gerais revelam a complexidade ritual presente entre alguns dos mais antigos habitantes do Brasil.

Por Reinaldo José Lopes
fotos de Maurício de Paiva
Publicado 12 de mar. de 2018, 16:45 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
O bioantropólogo e dentista Rodrigo Elias Oliveira exuma, com um pincel, os ossos remanescentes de um sepultamento descoberto na Lapa do Santo em 2016. O esqueleto, completo, teve idade estimada em cerca de 9,5 mil anos.
Foto de Maurício de Paiva

Leia a reportagem completa na edição de março de 2018 da revistaNational Geographic Brasil.

Não é fácil identificar os objetos guardados no saco. À primeira vista, lembram tubinhos achatados de plástico duro ou contas feitas com algum tipo de matéria vegetal. Quando pergunto o que são, o arqueólogo André Strauss explica que estou diante de falanges de dedos: ossinhos humanos cortados de um jeito estranhamente regular, feito blocos de Lego. Foram usados para montar um colar? “É possível”, diz ele, sem se comprometer muito com a ideia.

O laboratório do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), em cujo acervo ficam as falanges fatiadas, está abarrotado de enigmas desse tipo. Desde o começo da década passada, Strauss, o arqueólogo responsável pelos trabalhos, e outros pesquisadores não param de desencavar restos humanos como aqueles no majestoso abrigo calcário da Lapa do Santo, uma área de 1.300 metros quadrados no município de Matozinhos, em Minas Gerais. Até agora, as descobertas totalizam 40 sepulturas e cerca de 50 esqueletos (vários dos sepultamentos abrigam mais de um indivíduo). A Lapa do Santo foi palco de complexos rituais funerários entre 10.500 e 8.000 anos atrás, um período tão vasto quanto o que nos separa da Atenas da época de Sócrates, e o tratamento dado aos mortos naquele lugar passou por muitas transformações, como seria de se esperar. Mas o método predominante para lidar com os falecidos ali parece ter envolvido uma manipulação intensa e complicada dos restos mortais: cortes, quebras, pintura com pigmento ocre, queima controlada, “remontagens” ósseas que podiam combinar partes do esqueleto de duas ou mais pessoas diferentes. (Veja também: Sete mistérios que arqueólogos devem desvendar neste século)

Essas estranhas simbioses após a morte teriam obedecido a regras de simetria lógica que os pesquisadores de hoje conseguem entrever, revelando que as comunidades de caçadores- -coletores, supostamente o estilo de vida mais simples possível para membros da nossa espécie, habitavam, ao mesmo tempo, um universo simbólico e ritual de complexidade quase barroca.

Encontrar as dezenas de sepultamentos intactos do abrigo foi uma tremenda sorte porque a região de Lagoa Santa, onde fica a caverna, está entre as mais estudadas em todo o continente americano. Pesquisadores trabalham por lá desde o começo do reinado de dom Pedro II, quando o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801–1880) começou a desencavar restos de grandes mamíferos extintos (como dentes-de-sabre e preguiças-gigantes) e de seres humanos.

Os achados pioneiros de Lund deram o tom de boa parte das pesquisas na região, que até hoje investigam a convivência entre pessoas e espécies da chamada megafauna do Pleistoceno (a Era do Gelo). Outro tema que pontuou estudos foi o da origem dos primeiros habitantes das Américas. O formato dos crânios do povo de Lagoa Santa (assim como o de outros seres humanos muito antigos do continente) lembra mais o dos atuais nativos da Austrália e da Melanésia que o de indígenas modernos. Seriam feições vagamente “negras”, portanto – a aparência facial dos primeiros Homo sapiens que deixaram a África. Tais características se tornaram célebres com a reconstrução artística do rosto da mulher apelidada de Luzia, que morreu em Lagoa Santa há cerca de 12 mil anos. Os achados mais recentes na caverna confirmam a presença de pessoas com essa morfologia craniana de até 8 mil anos atrás.

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    O bioantropólogo Walter Neves e os seus colegas revisitaram vários sítios importantes da área ao longo das últimas décadas, mas a maioria deles tinha sido muito impactada pelas técnicas de escavação menos cuidadosas do passado – e também pela mineração de calcário, comum na área. Por ter poucos exemplares de arte rupestre, a Lapa do Santo não atraiu muita atenção e, com isso, acabou sendo poupada – o que explica a riqueza do seu material arqueológico. “A Lapa pode ser vista como uma espécie de Pedra de Roseta da região de Lagoa Santa”, resume Strauss.

    A metáfora é adequada porque o solo poeirento do abrigo (resultado, em parte, do acúmulo milenar de carvão de fogueiras), além de esconder as sepulturas, abrigava artefatos de pedra e osso e restos de animais e plantas consumidos ali. Tudo indica, portanto, que a Lapa do Santo não era um cemitério no sentido estrito da palavra, mas um local onde as pessoas fabricavam instrumentos, comiam e, ao mesmo tempo, preparavam e enterravam os seus mortos – os indícios de ocupação da gruta são vários séculos mais antigos que a mais velha sepultura achada até agora, aliás.

    É possível discernir três grandes fases das práticas funerárias no sítio. O chamado padrão 1, o mais antigo, destaca-se pela simplicidade e raridade: apenas dois corpos aparentemente intactos, cada um na sua própria cova, enterrados em posição flexionada. Já o padrão 3, o mais recente, corresponde a nove sepultamentos, também individuais, nos quais os ossos estavam desarticulados e, em alguns casos, foram quebrados intencionalmente. “Chegou-se a pensar que era para fazer o corpo caber na cova, mas bastaria cavar algo mais para obter mais espaço”, diz Strauss.

    Entre essas duas fases, há o padrão 2, caracterizado pela manipulação intensa dos restos mortais – a qual parece ter acontecido, em muitos casos, logo depois da morte. É possível inferir isso porque algumas marcas de queima nos ossos são típicas do que se vê quando o fogo é aplicado numa parte do corpo que ainda está recoberta com carne. Um dos exemplos mais marcantes corresponde ao mais antigo caso de decapitação das Américas, com cerca de 9 mil anos. O crânio foi preservado junto com as seis primeiras vértebras cervicais (as do pescoço), e os pesquisadores estimam que foi preciso torcer o pescoço do indivíduo para conseguir separá-lo do resto do corpo. As mãos, também amputadas, foram cuidadosamente dispostas em cima do rosto, de acordo com um aparente sistema de simetrias: mão direita em cima do lado esquerdo da face, com os dedos voltados para o queixo; mão esquerda no lado oposto, “apontando” para o alto da cabeça.

    Esses pares de opostos se repetem, sob outros aspectos, em mais sepultamentos do padrão 2. Em alguns, crânios são separados do resto da ossada de forma que uma cova combina esqueleto de criança com crânio de adulto, enquanto outra tem crânio infantil combinado com esqueleto de adulto. Ossos longos, como os fêmures, foram cortados e reunidos de forma a separar as extremidades ósseas das suas porções centrais.

    Outro crânio, virado de boca para cima, como se fosse uma cuia, serviu de receptáculo para diversos ossos cortados e com marcas de queima. Em alguns casos, todos os dentes de mandíbulas de adultos e de crianças foram arrancados e depositados à parte. Muitos dos ossos também foram decorados com pigmento ocre. Os cortes e a queima quando ainda havia tecidos moles presentes poderiam indicar alguma forma de canibalismo? Strauss prefere ser cauteloso nesse ponto. “Para afirmar isso, é preciso fazer uma comparação detalhada entre as marcas de corte nos ossos humanos e as empregadas em restos de fauna, algo que ainda não fizemos”, explica.

    A complexidade e as transformações nos rituais funerários do sítio contrastam com as relativas simplicidade e estabilidade dos instrumentos de pedra usados por milênios na região de Lagoa Santa. As escavações por lá costumam revelar uma infinidade de lasquinhas de quartzo sem grandes alterações, que podiam ser usadas para cortar ou raspar – e pouco além disso.

    Também há indícios de que se tratava de uma população relativamente “caseira”, sem muito pendor para as grandes andanças – é o que sugerem as análises da presença de variantes do elemento químico estrôncio no esmalte dos dentes. Cada região tem a sua própria “assinatura” dessas variantes de estrôncio, que são incorporadas ao organismo conforme a pessoa cresce. Comparando as proporções nos restos humanos com as existentes em outros materiais biológicos (plantas, conchas) do entorno, é possível saber se o sujeito veio de outro lugar ou se morreu na mesma área em que cresceu (o que é o caso dos habitantes de Lagoa Santa, em geral).

    Tanto Oliveira quanto Strauss não acreditam que a Lapa do Santo ocupasse uma posição única no mapa simbólico da região – não seria, portanto, uma “Cidade dos Mortos” paleolítica. “Hoje, quando a gente examina coleções arqueológicas advindas de pesquisas anteriores, como as do pesquisador britânico Harold Walter, dos anos 1940 e 50, dá para enxergar marcas de corte e outros sinais de manipulação similares ao que encontramos. Não era algo exclusivo da Lapa”, diz Strauss. A diferença teria sido mesmo a sorte de identificar um sítio praticamente intacto.

    A exemplo do que tem acontecido nos estudos sobre a pré-história do Velho Mundo, com a publicação do genoma completo de primos extintos da humanidade, como os neandertais e os denisovanos (hominídeos arcaicos que habitavam a atual Sibéria durante a Era do Gelo), é possível que as próximas descobertas sobre as sepulturas da Lapa do Santo venham dos dados genéticos. Os pesquisadores já estão analisando amostras de DNA que conseguiram extrair dos esqueletos – a duras penas, aliás, porque o nível de decrepitude do material genético milenar, sob condições climáticas tropicais, é ainda mais acentuado que o registrado em ambientes mais frios.

    Essa análise poderá indicar, por exemplo, se há continuidade genealógica entre os mortos depositados na gruta ao longo dos milênios – e talvez ajude a comparar as características genéticas dessa população antiga, de morfologia craniana singular, com as dos indígenas atuais, informação que teria potencial para encerrar de vez o debate sobre as origens do povo de Luzia.

    A equipe quer aproveitar o ímpeto desse trabalho para montar o primeiro laboratório de DNA antigo do Brasil – a primeira instalação exclusivamente dedicada a analisar amostras genômicas de milhares de anos, que trabalharia com o Instituto Max Planck Para a Ciência da História Humana, na Alemanha, hoje o principal centro dessa área no mundo. Dois cientistas do Max Planck já são parceiros da equipe da USP no estudo do DNA de Lagoa Santa. Johannes Krause coordena a iniciativa juntamente com Strauss, enquanto o italiano Cosimo Posth é o responsável por extrair o DNA antigo em laboratório.

    “Eu acho que isso é que vai assegurar que a gente mantenha o nosso ‘fossil power’, como costuma dizer o Walter Neves”, argumenta Strauss, que acaba de assumir o cargo de professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. “Os estudos de DNA antigo são uma das coisas que estão revolucionando a arqueologia no mundo, e o Brasil está muito parado nesse ponto.”

    A grande dor de cabeça de quem trabalha com esse tipo de material genético é a contaminação, ou seja, a mistura do que sobrou dos genes antigos com fragmentos de genes modernos, coisa que costuma ocorrer num grau elevado. Ninguém, óbvio, quer correr o risco de publicar dados de DNA de um esqueleto de 10 mil anos de idade que, na verdade, correspondem ao genoma de um aluno de mestrado que espirrou em cima dos ossos. Para evitar esse tipo de pesadelo, é preciso ter à disposição instalações especiais, as chamadas salas limpas, e equipamentos dedicados exclusivamente ao trabalho com DNA antigo – coisas que, obviamente, custam caro.

    “Este é o momento de trazer essa estrutura ao Brasil, porque, agora, ficou relativamente mais simples trabalhar com ela”, defende Strauss. As escavações na Lapa do Santo devem continuar por, pelo menos, mais três anos. Pode não estar distante o dia em que algum morador de Belo Horizonte descobrirá que uma tataravó sua foi enterrada naquela catedral de calcário.  

    A luz do final do dia banha um enterro no cemitério de Lagoa Santa. “É na diversidade de sepulturas e na sua localização que as histórias do passado e do presente se misturam e trazem sentido à arqueologia das práticas mortuárias”, diz a arqueóloga Márcia Hattori.
    Foto de Maurício de Paiva

    É obviamente um bocado difícil entender o significado detalhado dessas práticas, embora algumas pistas, como a mistura de ossos de crianças e adultos, tenham levado os pesquisadores a postular uma espécie de demarcação ritual do ciclo da vida humana, da união dos opostos da juventude e da velhice. De maneira mais geral, a complexidade dos rituais parece estar ligada a uma preocupação com diferentes tipos de simetria e, claro, uma proximidade física constante com a anatomia dos defuntos que pode parecer quase alienígena para a cultura do século 21.

    Essa estranheza, no entanto, precisa ser relativizada, argumenta Rodrigo Elias Oliveira, dentista que acabou desenvolvendo uma carreira paralela como arqueólogo e co-coordenador das escavações na Lapa do Santo desde 2011. “Os incas colocavam as múmias dos imperadores em meio aos seus conselhos, como se elas tomassem parte das decisões políticas”, diz ele. “Ainda hoje, em regiões do interior do Brasil, você vê os mortos sendo velados dentro de casa, com os corpos sendo lavados pelos próprios parentes antes do funeral. A gente é que se distanciou desse contato próximo com os entes falecidos e acaba achando grotesco algo que deveria ser bem mais natural.”

    Para Oliveira, embora a manipulação logo depois da morte fosse importante, as características de diversos sepultamentos indicam também interações de longo prazo com os restos mortais – é o que explicaria melhor a mistura de ossos e dentes de vários indivíduos diferentes. “As pessoas voltavam ao local ao longo dos anos”, diz ele.

    A experiência do pesquisador como dentista tem ajudado a decifrar alguns dos aspectos do cotidiano dos frequentadores do abrigo e de outros moradores da região de Lagoa Santa naquela época. Nos períodos correspondentes aos sepultamentos na Lapa do Santo, a megafauna do Pleistoceno, embora ainda existisse, provavelmente estava em franco declínio, quase extinta. Uma combinação complexa de mudanças climáticas e pressão de caça talvez explique esse sumiço, ainda que na região de Lagoa Santa não haja evidências de gente caçando esses bichos imensos. Desse modo, os seres humanos daquela época caçavam, principalmente, animais de médio e pequeno porte, como tatu, veado, porco-do-mato, lagarto e peixe. Boa parte da dieta parece ter sido composta por vegetais, conforme indicado pela presença de cáries nos dentes, num nível similar ao de grupos de agricultores.

    Os frequentadores da Lapa do Santo, entretanto, não dominavam a agricultura e não dispunham do acesso constante aos carboidratos produtores de cáries do milho ou da mandioca. Segundo Oliveira, a culpa pela saúde dentária talvez fosse de frutos do Cerrado, como pequi, marolo e jatobá. “Os frutos do jatobá ficam bastante disponíveis nos períodos de seca, quando a caça é menos abundante. São pegajosos, não muito palatáveis, mas têm grande quantidade de carboidratos”, explica. Sob outros aspectos, o estado de saúde dos sepultados na gruta parece ter sido normal, e alguns dos indivíduos tinham compleição magnífica, como o sujeito decapitado 9 mil anos atrás. “A saúde do cara impressiona, e ele não tinha nenhuma cárie na boca.”

    Essa reportagem está na edição de março da revista National Geographic Brasil.

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