Quem foi Bakhita? Restos mortais de escrava africana evocam a triste memória do holocausto negro no Brasil

No Dia da Consciência Negra, a National Geographic narra o surgimento do sombrio local onde milhares de negros africanos foram sepultados no início do século 19.

Por Miguel Vilela
fotos de Fellipe Abreu
Publicado 20 de nov. de 2018, 07:30 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
O esqueleto preservado de Josefine Bakhita, batizada em homenagem à primeira santa mulher africana, pode ser visto na sede do Instituto de Pesquisa e Memória Ptros novos, no bairro carioca da Gamboa. Escravizada na África, Bakhita não resistiu à travessia do Atlântico, chegou morta ou muito doente ao Brasil e foi enviada ao Cemitério dos Pretos Novos.
Foto de Fellipe Abreu

Pouco se sabe sobre Bakhita. Nem mesmo seu verdadeiro nome. Negra, foi capturada e escravizada em algum lugar da África, provavelmente na Costa Ocidental, e trazida ao Brasil no início do século 19, quando tinha entre 20 e 25 anos. Ela foi um dos mais de 2 milhões de africanos escravizados que desembarcaram no Rio de Janeiro entre 1500 e 1860. Fragilizada pela longa viagem – entre 20 e 40 dias –, Bakhita chegou ao Brasil quase morta. Talvez tenha passado alguns dias no lazareto, onde os escravos desembarcados com algum tipo de doença faziam quarentena. Talvez tenha sido levada direto para o seu destino final, o Cemitério dos Pretos Novos – como eram conhecidos os negros recém-chegados ao Brasil.

Foi ali, em um terreno quadrangular, cercado com muros baixos de aproximadamente 25 metros de comprimento em cada lado, que Bakhita foi enterrada.

Enterrada, nesse caso, é quase um modo de dizer. Quando o viajante alemão W. Freireyss veio ao Brasil em 1817 e passou pela região do cemitério, disse ter avistado "alguns pretos [...] ocupados em cobrir de terra seus patrícios mortos e, sem se darem ao trabalho de fazer uma cova, jogavam apenas um pouco de terra sobre o cadáver, passando em seguida a sepultar outro”. Segundo os registros do Livro de Óbitos da freguesia de Santa Rita, no Rio, mais de 6 mil negros foram sepultados no pequeno Cemitério dos Pretos Novos entre 1824 e 1830.

Pesquisadora analisa restos humanos encontrados no sítio arqueológico do Cemitério dos Pretos Novos, onde milhares de africanos escravizados que não sobreviveram à viagem da África ao Rio de Janeiro foram enterrados.
Foto de Fellipe Abreu

O cemitério fazia parte de um complexo que recebia e negociava os escravizados oriundos de terras africanas. Depois de desembarcarem no Cais do Valongo, os negros sadios eram encaminhados aos galpões vizinhos para serem negociados. Os convalescentes, seguiam para o lazareto, onde faziam quarentena – se não tivessem nenhum doença, poderiam certamente adquirir alguma moléstia depois de conviver com outros enfermos.

O complexo começou a ser criado depois que o Vice-rei Marquês do Lavradio mandou fechar o cemitério de Pretos Novos do Largo de Santa Rita, em 1769, e o mercado de escravos da rua Direita (atual Rua 1º de março), em 1775. Um certa pressão social, baseada na crença de que os africanos estavam trazendo uma série de enfermidades à cidade do Rio de Janeiro, levou o comércio dos escravos, e toda sua estrutura macabra, do centro aos confins da cidade, nas enseadas dos rios Valongo e Valonguinho, onde hoje são os bairros da Saúde e Gamboa.

Mas com o aumento vertiginoso do tráfico negreiro a partir de 1810 e a rápida urbanização das regiões periféricas da cidade, já não eram raras as reclamações dos vizinhos a respeito do cemitério. A situação dos mortos, que já era precária, ficou ainda pior. Na tentativa de aplacar o terrível cheiro de morte, os cadáveres eram regularmente queimados. Em 1824, o provedor-mor da saúde da cidade já pedia a remoção do lugar "por ser muito pequena a superfície do cemitério relativamente ao número de cadáveres, que ali se enterram anualmente", entre outros motivos. Já em 1829, às vésperas do fechamento da necrópole, os comentários em relação à barbárie continuavam. Em ofício enviado à Câmara Municipal, o juiz Presidente da Câmara da Corte Luiz Paulo de Araújo Bastos descreve o cemitério como "covas abertas tanto à superfície do terreno, que apenas um palmo resta para cobrirem-se os corpos que nelas se lançam aos pares”.

Desativado em 1830 depois da instituição da lei que proibia o comércio internacional de escravos, o cemitério e seus mortos foram pavimentados e a região urbanizada. A história ficou por muitos anos adormecida.

Primeiro esqueleto

Hoje, os restos de Bakhita – como ela foi batizada pelo técnico arqueólogo Andrei Santos, em homenagem à primeira santa mulher africana – continuam no mesmo lugar onde foram deixados há mais de 200 anos. Quem visita o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), no bairro carioca da Gamboa, ainda consegue ver Bakhita, o primeiro esqueleto encontrado inteiro por pesquisadores que escavam o sítio arqueológico desde 1996, quando o cemitério foi redescoberto, por acidente, pela empresária Mercedes Guimarães.

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    Por estarem tão bem preservados, os pesquisadores que encontraram Bakhita resolveram deixá-la no mesmo local onde a encontraram. Para Reinaldo Tavares, ela é um grito e uma denúncia de todos os horrores que foram cometidos naquele local.
    Foto de Fellipe Abreu

    Por décadas desaparecido, o Cemitério dos Pretos Novos era conhecido apenas por registros históricos e foi reencontrado quando Guimarães decidiu reformar a casa onde mora. Assim que os pedreiros contratados para a obra começaram a quebrar o piso, notaram que a terra estava coberta de ossos. No começo, pensaram se tratar de um cemitério onde o antigo dono do imóvel enterrava seus animais. Chamaram Mercedes. “Eu peguei uma ossada, era uma arcada dentária inferior. Eu falei: 'Não, isso aqui não é osso de bicho, não. É osso de gente", disse Guimarães em entrevista por telefone à National Geographic. "Eu fui catando nos entulhos mais ossadas, fragmentos de ossos. Eu fui pegando uma quantidade de entulho nas mãos e em uma dessas veio uma arcada pequena, de uma criança. Aí eu fiquei naquela agonia."

    Mercedes acionou as autoridades, que logo suspenderam as obras e iniciaram as pesquisas no local. Com reportagens na imprensa, a casa e o terreno vizinho, também de propriedade de Mercedes, chamaram a atenção do público e logo Guimarães se viu recebendo cada vez mais curiosos a respeito da história do antigo cemitério de escravos na região central do Rio de Janeiro. Convencida por amigos, Guimarães decidiu fundar o IPN em 2005, com a missão de difundir o sítio arqueológico e receber cada vez mais gente.

    Patrimônios históricos

    Desde sua fundação, o IPN já recebeu mais de 100 mil visitas e hoje faz parte do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, uma iniciativa que leva jovens estudantes e turistas em visitas guiadas a marcos da história afro-brasileira. Entre os pontos mais importantes estão o Quilombo da Pedra do Sal – frequentado por Donga, Pixinguinha, João da Baiana e considerado o berço do samba carioca – e o Cais do Valongo – considerado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2017.

    As escavações, lideradas pelo pesquisador Reinaldo Tavares, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), continuam no que o próprio pesquisador já chamou de  "o sítio arqueológico mais importante do Brasil." Depois de receberam financiamento da prefeitura e do projeto Porto Maravilha, hoje são as bolsas de pesquisa que permitem que o que as portas do IPN continuem abertas.

    Quando sua equipe descobriu Bakhita, em 2017, Tavares queria levar seus restos para estudos no Museu Nacional do Rio de Janeiro, destruído por um incêndio em 2 de setembro de 2018. A ideia de deixá-la no mesmo local e na mesma posição onde foi encontrada se mostrou acertada não só por esse motivo posterior. Convencido por Mercedes Guimarães, Tavares aceitou deixar Bakhita na sede do IPN, por acreditar que ela representa um "grito" e uma "denúncia" de todos os horrores que aconteceram naquele local. Diferentemente de outros restos mortais encontrados no sítio – em grande parte fragmentados e reduzidos a pequenos pedaços –, o esqueleto de Bakhita permanece quase intacto, seus traços reconhecíveis. Bakhita é uma prova física, real, do holocausto negro provocado pelo comércio de escravos no Brasil.

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