DNA antigo traz reviravoltas à história migratória dos neandertais

Surpresas genéticas com os ossos de 120 mil anos revelam a história repleta de nuances desse parente próximo do homem moderno.

Por Maya Wei-Haas
Publicado 27 de jun. de 2019, 20:45 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
O DNA extraído do maxilar deste neandertal encontrado na Bélgica revelou novas informações da época em ...
O DNA extraído do maxilar deste neandertal encontrado na Bélgica revelou novas informações da época em que esses parentes primitivos do homem se deslocaram pela Europa e Ásia.
Foto de J. Eloy, Awem, Archéologie Andennaise

Em 1856, foram encontrados restos mortais bastante curiosos em uma mina de calcário no Vale de Neander, na Alemanha. Embora o fragmento do crânio e os ossos lembrassem vagamente os do homem moderno, a testa era excessivamente robusta e os ossos, muito corpulentos. Os cientistas levaram oito anos para reconhecer os fósseis como a primeira evidência de uma espécie totalmente nova de um ser humano primitivo, o Homo neandertalensis.

Desde então, outras descobertas revelaram muito mais sobre os neandertais, inclusive onde viviam, como cuidavam dos filhostalvez até obras de artes criadas por eles. Agora, com a utilização do DNA antigo extraído de dois neandertais europeus, os cientistas estão conseguindo obter um retrato mais detalhado da jornada dessa espécie em nosso planeta pré-histórico.

Os antepassados dos neandertais provavelmente se afastaram dos ancestrais do homem moderno pelo menos 500 mil anos atrás e se espalharam pela Europa e sudoeste e região central da Ásia. O novo estudo, publicado na revista científica Science Advancessugere que dois desses antigos hominíneos, que viveram há 120 mil anos, apresentavam características genéticas supreendentemente semelhantes às dos neandertais que chegaram muito depois. E mais: um dos indivíduos primitivos estudados ainda possuía um pouco de DNA incomum, indicando interações com outro grupo de hominíneos ainda a ser identificado.

Essas descobertas aumentam ainda mais as incertezas relacionadas à história da migração dos neandertais e às interações dessa espécie com nossos primeiros ancestrais, e foram possíveis graças aos avanços na análise de DNA antigo, afirma Kay Prüfer, autor do estudo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva na Alemanha.

“As descobertas nos ajudaram a entender um pouco da história que não seria possível compreender de nenhuma outra forma”, afirma ele.

Enigma neandertal

Pesquisas passadas sugeriram que os neandertais pareciam ser bastante heterogêneos geneticamente em razão de cruzamentos entre raças diferentes na Europa e na Ásia. Os dados que indicam essa semelhança genética, entretanto, restringiam-se predominantemente à época em que os neandertais desapareceram há cerca de 40 mil anos.

Algumas curiosidades fizeram a equipe se questionar sobre o que estava sendo esquecido em um período anterior. Por exemplo, um neandertal de 120 mil anos foi encontrado na caverna de Denisova, na Sibéria — local que empresta o nome e onde foram encontrados os denisovanos, os primos dentuços dos neandertais. Esse indivíduo, conhecido como neandertal de Altai, tinha um genoma muito diferente do genoma dos neandertais europeus que vieram depois.

Sua genética também divergia da metade neandertal de uma menina híbrida encontrada na mesma caverna, filha de uma mãe neandertal e de um pai denisovano que viveram há cerca de 90 mil anos. Estranhamente, os genes da mãe dela apresentavam muito mais semelhanças com os neandertais posteriores. Tudo isso sugere que, em algum momento, a população neandertal dessa região foi substituída por outro grupo da mesma espécie. Mas de onde vieram esses sucessores, e essa mudança se ateve à região leste de sua área de ocorrência?

Para desvendar o mistério, a equipe recorreu a um fêmur de 120 mil anos da caverna Hohlenstein-Stadel da Alemanha, além de um maxilar de idade semelhante da caverna Scladina, na Bélgica. A seguir, extraíram o DNA mitocondrial de ambos, que é uma fração genética passada de mãe para filho, e o DNA nuclear, que é passado por ambos os pais e, portanto, geralmente capaz de contar uma história muito mais completa.

A partir disso, a análise genética não foi tarefa fácil. A delicada estrutura trançada do DNA se degrada rapidamente ao longo do tempo e as amostras se contaminam com facilidade.

“Tivemos de recorrer a alguns truques que desse certo”, afirma Prüfer, acrescentando que empregaram diversas técnicas para garantir que os resultados não fossem influenciados por contaminação.

O que descobriram os surpreendeu: os dois neandertais europeus de 120 mil anos tinham um parentesco mais próximo com os neandertais que surgiram na Europa dezenas de milhares de anos depois que o neandertal de Altai da Sibéria que tinha aproximadamente a mesma idade que os dois. Ambos os indivíduos mais antigos também tinham uma impressionante semelhança genética à mãe neandertal da menina híbrida.

A semelhança genética entre os neandertais europeus e a metade neandertal da garota híbrida insinua que esses indivíduos podem fazer parte do grupo que substituiu os primeiros residentes da caverna de Denisova. E, como ambos possuem idade semelhante à do neandertal de Altai, a substituição da população poderia até já estar em curso há 120 mil anos, afirma Adam Siepel, biólogo computacional do Centro Simons de Biologia Quantitativa do Laboratório de Cold Spring Harbor.

“Ao que parece, esses dois indivíduos são próximos às 'raízes' dessa população substituta, tendo vivido aproximadamente na época em que a substituição estava ocorrendo”, afirma ele por e-mail.

Raízes emaranhadas

Embora a análise decifre alguns capítulos da história dos neandertais, ainda restam incógnitas. Uma delas é que, apesar da semelhança do DNA nuclear dos neandertais ao longo do espaço e do tempo, o DNA mitocondrial do fêmur de Hohlenstein-Stadel é distinto do DNA de todos os outros neandertais já estudados, afirma Stéphane Peyrégne, autor do estudo, que conduziu o estudo como parte de sua pesquisa de Ph.D. no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva na Alemanha.

misterioso DNA mitocondrial já tinha sido destacado em um estudo de 2017 na revista científica Nature. Nesse último estudo, a equipe confirmou que essa análise estava correta e empregou testes numéricos que demonstraram que a variação genética não foi fruto de acaso aleatório. Contudo ainda não foi possível explicar a razão dessa variação.

Talvez sua origem seja outro grupo de neandertais ancestrais afastado do restante da população há mais tempo. Ou talvez, supõem os pesquisadores, os ancestrais dos humanos antigos tenham exercido um papel na genética dos neandertais primitivos. Embora os membros dessa duradoura linhagem europeia de neandertais tenha desaparecido há muito tempo, sabemos que eles procriaram com os humanos modernos que saíram da África há cerca de 55 mil anos, deixando para trás até 2% do DNA neandertal no homem moderno que não possui ascendência africana.

Talvez ainda tenha ocorrido o contrário: um grupo anterior de humanos modernos pode ter passado seu DNA aos neandertais. Nessa hipótese, o homem moderno teria legado ao menos dois tipos diferentes de mitocôndrias aos neandertais, explica Prüfer. Um teria se desenvolvido na sequência encontrada no fêmur de Hohlenstein-Stadel, ao passo que o outro teria originado todas as demais sequências de mitocôndrias dos neandertais já encontradas.

É surpreendente essa discrepância nos resultados entre o DNA nuclear e mitocondrial, mas talvez não devesse ser, acrescenta Qiaomei Fu da Academia Chinesa de Ciências de Pequim, especialista em DNA antigo, mas que não participou da equipe do estudo.

“Como isso também ocorreu com os denisovanos, com mais vestígios dessa natureza, acredito cada vez mais (ainda estamos estudando) que a miscigenação na história dos hominíneos é bastante complexa e pode ter ocorrido com bastante frequência”, afirma Fu por e-mail.

Embora persistam os mistérios, o último achado aperfeiçoa ainda mais a história desse parente primitivo do homem que conhecemos há pouco tempo, mas que parece mais familiar a cada nova descoberta.

“Acredito que isso altere nossa percepção em certa medida e permita entendermos que existiu de fato um primo que pode não ter sido muito parecido conosco, mas que habitou as mesmas regiões onde vivemos hoje”, conta Prüfer.

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