Mania mórbida dos europeus por múmias foi obsessão durante séculos

Trituradas para produção de remédios ou expostas em ‘festas de desenrolamento’, as múmias egípcias fascinavam os europeus, dando origem ao que é conhecido como egiptomania.

Por José Miguel Parra
Publicado 21 de dez. de 2019, 09:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Fotografados no século 19, dois homens não identificados dissecam cuidadosamente uma múmia, ilustrando como as atitudes acadêmicas em relação às antiguidades egípcias estavam mudando. Afastar-se do entretenimento, desembrulhar uma múmia estava se tornando um trabalho acadêmico.
Foto de Beaux-arts, Paris, RMN Grand Palais

As múmias costumam ser uma atração central em muitos dos grandes museus do mundo. Seus gabinetes de vidro com temperatura controlada protegem e preservam seus corpos, que possuem milhares de anos. Guardada em seu interior está a história do modo de vida das pessoas que viviam ao longo do Nilo há milênios. Os estudiosos modernos as tratam com reverência e muito zelo, mas nem sempre foi assim.

Até pouco tempo, as múmias egípcias eram utilizadas pelos europeus para fins práticos e não acadêmicos. Seus corpos eram tratados como mercadoria, pois acreditava-se que possuíam características medicinais, sobrenaturais e físicas. A partir do século 15, os comerciantes passaram a tentar lucrar com o tráfico de múmias do Egito para a Europa, dando origem a um robusto “comércio de múmias”.

Remédio estranho

A mumificação era um processo complexo e demorado que ajudava a preservar o corpo em sua jornada na vida após a morte. Embora o processo tenha mudado com o passar do tempo, muitas de suas práticas básicas permaneceram as mesmas. Depois de remover os órgãos internos do corpo, os padres usavam o natrão, um sal natural, para sua secagem. Às vezes, substâncias perfumadas, como a mirra, eram utilizadas para ungir o corpo. Óleos e resinas eram aplicados ao corpo, que era depois preenchido com pedaços de linho ou serragem, fechado e envolto em bandagens.

Estudiosos não sabem exatamente como as múmias passaram a ser empregadas na medicina. Há evidências de que os europeus acreditavam que os corpos embalsamados continham poderes de cura sobrenaturais. Outros estudiosos ligam a origem da correlação com o equívoco de que as múmias continham betume, uma substância que, no mundo antigo, foi por muito tempo associada à cura.

O betume preto, pegajoso e viscoso é uma forma de petróleo encontrada em regiões ao redor do Mar Morto. Plínio, o Velho, e Dioscórides, escritores do século 1 d.C., bem como Galeno, escritor do século 2 d.C., escreveram sobre suas propriedades curativas. Dioscórides descreveu a substância como um líquido da Apolônia (a atual Albânia), conhecido em persa como mumiya. Segundo Plínio, a substância poderia curar feridas e uma série de males.

Estudiosos europeus na Idade Média associaram o betume a uma substância enegrecida encontrada nas tumbas do Egito. Constantinus Africanus, médico do século 11, escreveu que mumiya “é uma especiaria encontrada nos sepulcros dos mortos. (...) É melhor que seja preto, fedorento, brilhante e maciço.”

A Europa começou a associar múmias com remédios no século 15 em resposta a uma demanda robusta pela mumiya médicaO betume de ocorrência natural era raro e, por isso, comerciantes empreendedores partiram em busca de suprimentos alternativos nas tumbas egípcias. Quando triturados até virar pó, os corpos preservados e suas resinas, óleos e substâncias aromáticas não apenas possuíam a mesma consistência e cor que a mumiya persa original, mas ainda tinham um cheiro melhor.

Ao longo do século 19, os principais museus arqueológicos da Europa se esforçaram para reunir coleções impressionantes de antiguidades egípcias. Agora mantida no Museu Arqueológico Nacional da Espanha, em Madri, essa múmia egípcia é de uma mulher que viveu no Terceiro Período Intermediário (entre 1070 a.C. e 664 a.C.). Foi adquirida por Eduardo Toda, o cônsul espanhol no Cairo entre 1884 e 1886.
Foto de Prisma, Album

Nem sempre era fácil conseguir uma múmia, por isso, os comerciantes orientais mais inescrupulosos resolveram criar as próprias múmias. Os boticários notaram a diferença. Conforme uma reclamação de Guy de La Fontaine em 1564, após uma jornada a Alexandria para adquirir a medicação, o problema era que, em muitos casos, as múmias eram cadáveres modernos tratados para ficar semelhantes a múmias antigas. Foi então feita uma distinção entre a mumiya primária ou verdadeira e a mumiya secundária ou falsa.

O processo para transformar um ser humano falecido recentemente em uma imitação convincente de uma múmia egípcia antiga era desagradável. Luis de Urreta, monge espanhol da Ordem Dominicana, em sua obra Historia de los reynos de la Etiopía (História dos Reinos da Etiópia, em tradução livre), faz um relato detalhado do método assassino e sombrio que era empregado. O procedimento consistia em privar repetidamente de alimento uma pessoa escravizada e dar-lhe “medicamentos” especiais antes de cortar sua cabeça enquanto ela dormia. O corpo então tinha o sangue drenado, era preenchido com especiarias, embrulhado em feno e enterrado por 15 dias. Após a exumação, secava ao sol por 24 horas. Ao fim desse processo horrível, a carne havia escurecido e se transformado. O monge o descreveu como não apenas mais limpo e mais fino que o das múmias antigas, mas também mais eficaz.

Nem todos acreditavam que a mumiya atuava como medicação, fosse ela “verdadeira” ou “falsa”. Já em 1582, o francês Ambroise Paré escreveu em sua obra Discours de la mumie: “o efeito dessa medicação maligna é tal que não apenas não faz nada para melhorar a saúde dos pacientes, como já testemunhei, em numerosas ocasiões entre aqueles forçados a tomá-la, que ela ainda provoca terríveis dores de estômago, um cheiro desagradável na boca, muitos vômitos, alterações no sangue e até no fluxo sanguíneo nos vasos.”

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    Um Dicionário de Física publicado em 1657 descreve "mumiya" assim: "como piche, alguns afirmam que foi retirado dos antigos túmulos, sendo o embalsamamento de cadáveres". Museu Alemão de Farmácia, Castelo de Heidelberg.
    Foto de Akg, Album

    Marrom-múmia

    Os europeus usavam múmias trituradas como remédio, mas também as usavam na arte. Desde pelo menos o século 16, um pigmento chamado “marrom-múmia” era produzido a partir de restos mortais humanos mumificados e utilizado nas paletas de artistas europeus. Para misturar o pigmento, corpos antigos triturados eram misturados com piche e mirra. Na época, os boticários, responsáveis pela produção de medicamentos feitos de múmias, também atuavam como misturadores do pigmento, facilitando a transição do armário de remédios para a paleta de artistas.

    Registros históricos datam o primeiro uso do marrom-múmia no Renascimento. Dizia-se que os pintores valorizavam o marrom-múmia por sua riqueza e versatilidade; costumavam usá-lo para sombreamento, a técnica chiaroscuro e, apropriadamente, tons de pele.

    Historiadores da arte não conseguiram determinar quantas vezes e em que pinturas específicas foi utilizada, mas a cor permaneceu em uso até os pintores românticos do fim do século 19. Muitos artistas de fato mantinham a cor em estoque, como Edward Burne-Jones e Lawrence Alma-Tadema, pintores pré-rafaelitas. Eugène Delacroix, um dos maiores pintores da escola romântica da França no século 19, é conhecido pelas grandes áreas de sombra e escuridão em suas telas, consideradas, por estudiosos, candidatas prováveis ao uso do marrom-múmia.

    Superstições

    A demanda econômica pela mumiya corria paralelamente às forças igualmente poderosas do medo e da superstição. Embora, a partir do período clássico, alguns viajantes gregos ou romanos voltassem para casa de uma viagem ao Egito com um animal mumificado, ao que parece, antes do século 15, havia pouco interesse em transportar múmias para a Europa como lembranças ou objetos de coleção.

    As múmias eram consideradas objetos espirituais poderosos. Essa enraizada superstição sobreviveu até o século 20. A descoberta da tumba de Tutancâmon por Howard Carter, em 1922, inspirou histórias de que a “maldição da múmia” protegeu a tumba do faraó e matou vários membros da equipe de Carter.

    Esse temor tem raízes profundas na imaginação europeia e acentuou o sentimento de culpa dos ladrões de tumbas. As crônicas da era renascentista falam de Octavius Fagnola, um cristão do século 16 que se converteu ao islã. Ele tinha sido um ladrão de tumbas no Egito. Enquanto trabalhava entre as tumbas de Gizé, ele encontrou um cadáver sem órgãos internos, envolto em pele de boi e com um escaravelho, uma espécie de amuleto que se acreditava proteger o coração.

    Uma viúva egípcia vela seu marido mumificado nesta obra de 1872, por Lawrence Alma-Tadema. Apesar de seu conhecimento das origens do marrom-múmia, não se sabe se o artista usou o pigmento nesta pintura.
    Foto de Bridgeman

    Esquivar-se da alfândega e carregar a múmia a bordo de um navio com destino à Itália foi a parte mais fácil. No meio da viagem, o navio enfrentou uma violenta tempestade e o naufrágio parecia certo. “Os corpos egípcios sempre provocam tempestades”, refletiu Fagnola, e entregou sua múmia às águas naquela noite.

    Tais histórias eram comuns na Europa do século 16, quando o mundo cristão e o Império Otomano disputavam o controle do Mediterrâneo. Na Batalha de Lepanto, em 1571, a Santa Liga derrotou a frota turca. Após essa vitória decisiva, a notícia correu pelos portos movimentados do Mediterrâneo, terreno fértil para fofocas. Circulou um boato de que os turcos estavam amaldiçoados por carregarem uma múmia a bordo de um de seus navios. A derrota que se seguiu serviu apenas para reforçar a ideia de que as múmias tinham o poder de provocar desastres marítimos aos incautos.

    O temor de tais objetos não foi suficiente para refrear a demanda na Europa por medicamentos derivados de múmias. As autoridades otomanas do século 16 que governavam o Egito promulgaram leis para controlar o comércio de múmias. Essa medida saiu pela culatra, criando um lucrativo mercado negro.

    Festas e apresentações

    No século 18, a aplicação de múmias como remédio havia caído em desuso. As atitudes europeias em relação às múmias se modificavam e os estudiosos começaram a se interessar mais pelo que havia sob os tecidos que envolviam as múmias. Desembrulhar uma múmia se tornou um evento, que podia ser realizado em uma casa particular ou, posteriormente, em um teatro público. O primeiro relato registrado de uma múmia desembrulhada ocorreu em 1698. Benoît de Maillet, o cônsul francês no Cairo, foi o primeiro europeu a se aventurar por baixo das faixas e fazer anotações extensas. No início da década de 1700, Christian Hertzog, farmacêutico do duque de Saxe-Coburg, desembrulhou uma múmia diante de uma plateia. Ele publicou suas descobertas no livro Mumiographia, um relato detalhado dos artefatos encontrados no interior.

    O estudo público das múmias continuou e atingiu um novo pico no início do século 19, após as Guerras Napoleônicas e o colonialismo inglês, despertando um novo interesse pelo antigo Egito. Ao longo do século 19, as remoções públicas de faixas de múmias se tornaram eventos muito populares na Inglaterra. Seu pioneiro foi Thomas Pettigrew, cirurgião inglês do século 19, que mais tarde se tornou conhecido como “Pettigrew das Múmias”. Ele começou sua carreira em egiptologia como assistente de Giovanni Battista Belzoni, explorador italiano que descobriu a tumba de Seti I em 1817. Uma descoberta surpreendente em que a tumba estava sem sua múmia.

    Como parte de uma exposição de relevos do túmulo de Seti, Belzoni, auxiliado por Pettigrew, desembrulhou uma múmia diante de um grupo de médicos em 1821. Pettigrew ficou fascinado e começou uma carreira dedicada ao estudo do Egito ao longo de sua vida. Em 1834, ele publicou um tratado sobre múmias que continha descrições dos objetos encontrados em seu interior.

    MERCADO DE MÚMIAS A mania de múmias deu origem a um comércio macabro de souvenires. A fotografia mostra um vendedor de múmias descansando ao lado de suas mercadorias no Egito por volta de 1877.
    Foto de Jean-Gilles Berizzi, RMN Grand Palais

    As dissecações públicas de múmias feitas por Pettigrew eram muito populares na década de 1830. Os espectadores ficavam enfeitiçados ou enjoados quando o rosto — magro e desidratado, mas que mesmo assim podia ser reconhecido como o de um ser humano morto há milhares de anos — era revelado aos poucos sob suas vestes protetoras.

    Depois de notar que um indivíduo tinha um grande tumor ósseo, Pettigrew começou a se dar conta de que uma múmia era um registro de uma pessoa de verdade. Ele entendeu que suas investigações poderiam reconstruir os detalhes de uma vida. A percepção de Pettigrew afastou o estudo das múmias do puro espetáculo público (embora em parte permanecesse assim) e passou para o campo da análise científica. Sua obra A History of Egyptian Mummies (História das Múmias Egípcias, em tradução livre) é considerada um dos textos clássicos da egiptologia.

    Entre o fim do século 19 e o início do século 20, uma série de descobertas arqueológicas importantes forneceu novos conhecimentos, transformando a egiptologia em uma ciência mais formal. Em 1881, um enorme depósito de múmias da realeza do Império Novo — incluindo o corpo desaparecido de Seti I — foi descoberto na Necrópole de Tebas, seguido, em 1898, pela descoberta da tumba de Amenhotep II no Vale dos Reis. Muitas dessas múmias foram desenroladas, mas suas aparências e os artefatos encontrados foram cuidadosamente documentados de acordo com as práticas acadêmicas da época.

    No início da década de 1900, entraram em prática novos métodos para estudar múmias. Grafton Elliot Smith, anatomista da Faculdade de Medicina do Cairo, fotografou as múmias da realeza. Seu livro de 1912, Catalogue of the Royal Mummies in the Museum of Cairo, (Catálogo das Múmias Reais no Museu do Cairo, em tradução livre) ainda é usado como referência. Smith foi o primeiro a usar raios X em múmias.

    As múmias estavam começando a ser vistas como fontes preciosas de conhecimento, além de restos mortais humanos que inspiram respeito. No entanto alguns velhos hábitos demoram a desaparecer. Recentemente em 1900, foi escavada uma tumba que se acreditava pertencer ao faraó Djer, morto por volta de 3055 a.C. Acredita-se que Djer teria sido o terceiro rei da primeira dinastia, um dos primeiros governantes a presidir o Egito unificado. No entanto, quando foi encontrado um braço mumificado, repleto de pulseiras, as joias foram cuidadosamente removidas e preservadas. Quanto ao braço, foi anotado, fotografado e jogado no lixo — um ato que encheria os estudiosos modernos de horror e indignação.

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