O que um DNA de 200 anos nos conta sobre um revolucionário francês assassinado?
Jean-Paul Marat foi esfaqueado até a morte em 1793. Sangue preservado pode ajudar a desvendar a doença que o acometeu em vida.
O que Emily Dickinson, Karl Marx e Jesus de Nazaré têm em comum? Todos eles desempenharam um importante papel em um jogo. Diagnósticos retrospectivos — experimentos mentais em que cientistas modernos usam estruturas de diagnóstico atuais para determinar possíveis causas de doenças e mortes históricas — são o jogo favorito de aspirantes a viajantes no tempo e elemento importante em conferências médicas. As teorias variam bastante, de plausíveis a excêntricas (Júlio César tinha epilepsia! Não, espera — miniderrames!). Mas, até agora, nenhuma delas contou com o DNA da figura histórica de quem estavam tentando diagnosticar.
No entanto, graças a um assassinato especialmente violento, os pesquisadores acreditam que solucionaram um mistério médico que atormentou um notório revolucionário francês. Para isso, eles analisaram o DNA da cena do crime, ocorrido há 200 anos, de acordo com a versão pré-impressão de um estudo publicado recentemente no bioRxiv (o estudo ainda não foi submetido à revisão por pares). Os pesquisadores afirmam que o estudo é o primeiro diagnóstico médico retrospectivo a incluir a análise genética de uma figura histórica e, também, a mais antiga recuperação bem-sucedida de material genético em papel de celulose.
No centro de tudo isso, está o sangue de uma das figuras mais importantes da Revolução Francesa, Jean-Paul Marat. Durante a década de 1780, o jornalismo ávido pró-Revolução de Marat e seu jornal, The People’s Friend (O Amigo do Povo, em tradução livre), o fizeram conquistar o apoio ardente de parisienses pobres — e muitos inimigos pró-monarquia.
A aparência física de Marat gerava tanta polarização quanto suas posições políticas radicais. Ele vestia roupas peculiares — imagine capas dramáticas, lenços na cabeça e camisas abertas, que adotou da classe trabalhadora de Paris — e tinha uma doença de pele visível. As pessoas recuavam ao ver suas bolhas e feridas purulentas, e atribuíam a dolorosa condição de Marat a tudo, desde sífilis até seu temperamento perigoso.
Por conta de suas opiniões incendiárias, o jornalista estava sempre em fuga. Passou anos se escondendo em sótãos e até mesmo nos esgotos de Paris para escapar de seus inimigos. Em 1793, Marat finalmente conseguiu um lar estável e uma chance de tratar sua doença de pele cada vez mais dolorosa. Agora, havia se tornado um verdadeiro recluso devido a sua pele. Passou seus últimos meses escrevendo e buscando alívio para o prurido e as bolhas na pele em longos banhos de banheira, onde trabalhava e recebia amigos e visitas. Em 13 de julho de 1793, o revolucionário estava na banheira fazendo anotações em jornais quando a simpatizante dos girondinos Charlotte Corday entrou e o esfaqueou no peito com uma faca de cozinha. Marat sangrou até a morte em segundos.
O assassinato dramático transformou Marat instantaneamente em um mártir revolucionário, e sua irmã preservou com cuidado os jornais manchados com seu sangue, que existem até os dias de hoje. Será que as marcas de sangue poderiam revelar pistas genéticas sobre a doença de pele de Marat? Essa pergunta intrigou o investigador forense francês Philippe Charlier, cientista forense que investiga mistérios históricos, como, por exemplo, se Adolf Hitler está morto de verdade ou o que realmente matou Ricardo Coração de Leão. Então, ele entrou em contato com o paleogeneticista espanhol Carles Lalueza-Fox e perguntou se seria possível analisar o DNA preservado nos jornais manchados com o sangue de Marat.
Para extrair uma amostra sem danificar o precioso jornal de Marat, Lalueza-Fox e colegas se basearam em um procedimento forense moderno, que utiliza os mesmos tipos de swabs que os usados em cenas de crimes para obter amostras do jornal ensanguentado.
Uma análise de ancestralidade confirmou a provável ascendência francesa e italiana de Marat. Mas DNA que não pertencia a humanos foi uma descoberta ainda mais intrigante. A equipe detectou o DNA de vários patógenos não humanos na parte manchada de sangue do jornal, e utilizou a presença desses micróbios nessa parte manchada de sangue para descartar diversos diagnósticos anteriores, considerados possíveis fontes da doença do revolucionário.
Será que Marat tinha sífilis, como sugerido por seus inimigos? Não, e também não tinha hanseníase, candidíase nem sarna. Em vez disso, a provável causa do infortúnio de Marat era Malassezia restricta, um tipo de fungo que pode causar infecções cutâneas oportunistas.
O estudo teve suas limitações: evidentemente, o DNA não foi obtido de Marat enquanto ele estava vivo, e não é possível estimar quantas outras mãos tocaram e contaminaram o jornal ao longo dos anos. E mesmo que seus contemporâneos soubessem que ele tinha uma infecção fúngica (ou conhecessem a teoria microbiana das doenças), eles não teriam ideia de como tratá-la.
Dermatologistas modernos também podem não saber, diz Lalueza-Fox: fatos históricos sugerem que a infecção fúngica, ou uma possível infecção secundária contraída enquanto o sistema imunológico de Marat estava enfraquecido pelo Malassezia, chegou a um nível que raramente ocorreria sob a supervisão médica moderna. “Mesmo dermatologistas treinados jamais teriam visto um exemplo tão extremo”, afirma.
A pesquisa apresenta outra pergunta incômoda: é possível diagnosticar alguém com doença de pele usando seu DNA? “Essa é uma pergunta difícil”, diz Lalueza-Fox. O DNA pode revelar doenças genéticas e marcadores que indicam a presença de outras doenças, mas quando se trata de detectar a presença de doenças infecciosas, o diagnóstico através do DNA ainda está dando seus primeiros passos. Lalueza-Fox acredita que uma infecção fúngica tenha causado a doença de pele, mas sem uma visão real do corpo de Marat e exames de pele, é impossível afirmar.
Mesmo com o DNA, diagnosticar o revolucionário morto há tempos pode ser algo realmente impossível. Então, para que tentar?
Uma resposta é que problemas de saúde podem influenciar o curso da história — e a doença de pele de Marat o forçou a se afastar do movimento revolucionário da França no século 18 em seu auge. Não há como dizer o que ele poderia ter conquistado se não tivesse sido forçado ao isolamento devido à sua condição cutânea, ou a todos aqueles banhos. Em vez disso, a doença de pele de Marat o forçou às margens — e era tão dolorosa que afetou sua personalidade. “[A doença] pode ter influenciado suas decisões e a forma como ele influenciou a história”, diz Lalueza-Fox. “Ele estava muito, muito doente.”
Para Miguel Vilar, especialista em antropologia genética e diretor sênior do programa da National Geographic Society, a análise é tentadora. “Acredito que mostra o poder tecnológico que temos hoje”, diz Vilar, que não participou do estudo. “Podemos utilizar a paleogenômica para entender melhor o passado.”
Essa análise marca a primeira vez que cientistas tiveram sucesso em utilizar DNA para auxiliar um diagnóstico retrospectivo. Outros tentaram, mas questões controversas de preservação histórica e ética científica os impediram. Há uma década, por exemplo, os pesquisadores tentaram e não conseguiram obter permissão para analisar o DNA do coração preservado do compositor Frédéric Chopin (em vez disso, o analisaram visualmente e agora acreditam que sofria de tuberculose).
Talvez o presente estudo possa inspirar outras tentativas de reconsiderar figuras históricas utilizando seu DNA. Mas será realmente possível diagnosticar alguém após séculos?
Isso é incerto, diz Sam Muramoto, neurologista e estudioso sênior do Centro de Bioética da Universidade de Ciências e Saúde de Oregon, que não participou do estudo. Não é antiético utilizar o DNA ou outros métodos para voltar ao passado e analisar a saúde de figuras históricas, contanto que os cientistas considerem os parentes vivos, diz. No entanto, ele vê esses diagnósticos retrospectivos como especulação bem fundamentada.
“É um tipo de doença profissional”, diz Muramoto. “Quando se tem um martelo em mãos, tudo parece um prego”.