Mulheres indígenas lutam para não perderem a guarda de seus filhos no Brasil

“Eu vou sempre esperar por ele”, diz mulher kaiowá cujo bebê lhe foi tirado dias após o nascimento.

Por Jill Langlois
fotos de Flavio Forner
Publicado 27 de abr. de 2020, 10:56 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Três irmãos kaiowás e um vizinho brincam em Ñu Vera, próximo a Dourados (MS). O irmão ...

Três irmãos kaiowás e um vizinho brincam em Ñu Vera, próximo a Dourados (MS). O irmão mais novo dessas crianças foi tirado da família logo após o nascimento.

Foto de Flavio Forner

DOURADOS (MS) — A brisa quente de verão soprava pelas planícies de Dourados em um dia de fevereiro de 2015 quando o recém-nascido filho de Élida de Oliveira foi levado. Membro do grupo indígena kaiowá, ela deu à luz sozinha, na casa improvisada onde morava. O pai do garoto a deixou quando descobriu que ela estava grávida do sétimo filho.

Construída com pedaços usados de madeira, telhas de plástico e lonas, sua casa ocupa um espaço na área reivindicada no estado de Mato Grosso do Sul, conhecida como Ñu Vera, próxima do perímetro da reserva mais populosa do Brasil, a Reserva Indígena de Dourados, fronteira com a cidade de Dourados, a cerca de 120 quilômetros da divisa com o Paraguai. Não há eletricidade ou água encanada nessa terra ancestral dos kaiowás e não há espaço no solo seco para cultivo dos alimentos tradicionais — milho branco, mandioca, batata, abóbora — destinados à alimentação do corpo e da alma.

Ñu Vera, um pedaço de terra ancestral localizado fora da Reserva Indígena de Dourados, está sendo reivindicada pelo povo guarani-kaiowá, embora a cidade de Dourados (canto superior esquerdo) já se estenda sobre essa área.

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Uma semana após Oliveira dar à luz, um agente comunitário de saúde a viu com o bebê. O agente disse a ela para levá-lo à clínica da reserva no dia seguinte às 16h para que fosse pesado, recebesse um cartão de saúde e em seguida fosse vacinado, assim como aconteceu quando seus outros filhos nasceram. Mas o agente não contou que o Conselho Tutelar já havia sido chamado.

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    Neto de Élida de Oliveira, Widys, tira a soneca da tarde na rede que se estende por toda sua sala de estar. Widys é o filho mais novo de Carolaine, filha de 18 anos de Oliveira, que tem sua própria casa no mesmo pedaço de terra, perto da mãe.

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    Desde a colonização do Brasil pelos portugueses, há 520 anos, os povos indígenas lutam para recuperar seus direitos, principalmente as terras ancestrais que são a base de sua cultura e sua conexão com a tradição alimentar, familiar, com seu idioma e suas crenças. O governo atual — liderado pelo presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, que prometeu que não daria “mais nenhum centímetro” de terra aos povos indígenas — agravou o problema, que já existia antes de seu mandato.

    Agora, em Dourados, os indígenas lutam para ficar com seus filhos, que estão sendo retirados de suas famílias a um ritmo alarmante. As famílias estão em uma situação insustentável: para que sua cultura seja preservada, eles precisam manter sua conexão com a terra ancestral. Mas essa terra não mais oferece meios de sustento a eles, e agora sofrem acusações de negligência de órgãos de um governo que apenas deseja que eles se adaptem.

    Um carro à espera

    Na clínica, Oliveira foi orientada a aguardar enquanto seu bebê era levado para outra sala para ser pesado. Disseram a ela que sua pressão arterial seria aferida enquanto aguardava. Colocaram uma braçadeira em seu braço.

    Élida de Oliveira dentro de sua casa em Ñu Vera, onde deu à luz sozinha.

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    Mas estava demorando muito. Os funcionários da clínica passavam apressadamente, sem sequer olhar em sua direção enquanto atendiam outras pessoas.

    Por fim, uma funcionária parou na frente dela. Com sua voz tranquila, Oliveira perguntou à mulher onde estava seu filho. A mulher suspirou. Um carro estava esperando lá atrás, ela disse. Um representante do Conselho Tutelar havia levado o bebê de Oliveira minutos depois dele ter sido tirado de seus braços.

    Oliveira ficou sentada na clínica por horas, certa de que havia ocorrido algum erro. Ela sabia que não tinha muitos recursos, mas sempre fez o possível para alimentar e dar moradia aos seus filhos, sempre os matriculando na escola quando atingiam idade suficiente.

    Um dos funcionários da clínica disse a Oliveira que voltasse para casa e esperasse a carta do juiz que lhe daria permissão para visitar seu filho. Ela finalmente cedeu, pois precisava ir para casa cuidar de suas outras crianças. Mas se perguntava como a carta chegaria até ela: não havia endereços em Ñu Vera.

    Oliveira esperou 30 dias por uma carta que nunca chegaria. Ela já havia ouvido falar de outras crianças que tinham sido tiradas de suas famílias em Ñu Vera e na reserva de Dourados, mas ninguém informava o destino delas.

    O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) ofereceu ajuda. A organização sem fins lucrativos, criada em 1972, atua há muito tempo com os moradores da reserva e das terras vizinhas reivindicadas. Juntamente com outros ativistas de direitos indígenas da cidade, Cimi criou uma rede de apoio a Oliveira, ajudando-a a reunir os devidos documentos para solicitar informações sobre o paradeiro de seu filho, como poderia vê-lo e como recuperá-lo.

    Foi quando descobriram o motivo do bebê ter sido levado. E também disseram a Oliveira que o governo afirmava que o bebê não era dela.

    ‘O lugar onde somos quem somos’

    Menos de 10% da população da cidade de Dourados é indígena, mas as crianças indígenas representam a maior proporção das pessoas mantidas sob tutela: 70%, de acordo com um relatório de 2017 emitido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A maioria dessas crianças — 62% — foi levada devido a supostos casos de negligência, geralmente relacionados à pobreza. No entanto, um decreto federal determina que “a falta ou necessidade de recursos materiais não é motivo suficiente para a perda ou suspensão dos direitos da família”.

    Florencia Reginaldo, que mora na Reserva Indígena de Dourados, estava cuidando dos filhos de sua irmã Elisabete quando as autoridades os levaram e os colocaram sob tutela do Estado. Eles ficaram afastados por uma semana até a mãe, que havia conseguido um emprego fora da cidade, conseguir recuperar a guarda.

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    A maioria das crianças levada sob tutela é da reserva de Dourados. Essa é uma das sete reservas da região criadas pelo Brasil entre 1910 e 1928 para abrigar famílias kaiowás e guarani que haviam sido retiradas à força pelo governo de seus territórios. As famílias que tentavam recuperar suas terras — tekohas, palavra guarani que significa “lugar onde somos quem somos” — eram forçadas a sair, muitas vezes de forma violenta, e obrigadas a retornar aos 3,5 mil hectares da reserva.

    Agora, a área da reserva foi reduzida para três mil hectares, alteração ocorrida entre a expedição do decreto para criação da reserva e o registro oficial da terra em um cartório do governo. Um espaço bem menor do que seus 18 mil residentes — principalmente povos kaiowá, guarani e terena — precisam para viver. Os empregos são tão escassos na reserva que os homens passam meses fora trabalhando, principalmente em fazendas de cana-de-açúcar e em minas localizadas em terras que antes eram deles.

    Mães solteiras como Elisabete Reginaldo normalmente precisam deixar seus filhos com outros parentes para sair para trabalhar. Reginaldo, uma mulher terena de 39 anos, trabalhava como cozinheira em uma fazenda próxima e voltava para casa três dias por mês para ver seus filhos. Enquanto ela estava fora, seu filho e sua filha ficavam com parentes. Mas acusações de negligência e abandono levaram o Conselho Tutelar a retirar as duas crianças sem aviso prévio.

    Após duas semanas, Reginaldo conseguiu recuperar a guarda dos filhos — um desfecho raramente visto na reserva. Seu salário de cozinheira era mais alto, mas agora abriu um salão de beleza para ficar mais perto de seus filhos, pois teme perdê-los novamente.

    As casas de Florencia e Elisabete Reginaldo ficam lado a lado na aldeia de Jaguapiru, na Reserva Indígena de Dourados.

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    As tekohas que famílias como a de Reginaldo e Oliveira perderam eram o sustento de famílias inteiras. Os povos indígenas podiam se movimentar pela terra e usá-la como quisessem: para viver, plantar, caçar, pescar, orar. Agora que estão presos em apenas um lugar, longe de seus territórios ancestrais, a conexão com suas culturas foi rompida.

    “A reserva é um local que transforma povos indígenas em não indígenas”, diz Eliel Benites, professor kaiowá na Universidade Federal da Grande Dourados. “Para os indígenas, tudo gira em torno de seu território. Quando perdem a tekoha, o mesmo ocorre com o seu povo.”

    Biscoitos, doces e iogurte

    Quando uma guarani está grávida, ela sonha com papagaios. Para muitos dos subgrupos da etnia guarani, incluindo os kaiowás, as crianças são consideradas seres em constante movimento, que são os olhos de Deus dentro da família. As almas das crianças são representadas por pássaros, e seus nomes — que acalmam seus espíritos e permitem que permaneçam nesta terra — são escolhidos cuidadosamente.

    Élida de Oliveira inicia a caminhada de duas horas e meia até o Lar Santa Rita, o orfanato no centro de Dourados onde seu filho de cinco anos vive desde o nascimento.

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    No entanto, o juiz que supervisionou o caso de Oliveira mudou o nome da criança. Ele acrescentou o nome “Raoni”, em homenagem ao famoso chefe kayapó conhecido por defender a Amazônia. Para a mãe kaiowá, o nome não fez sentido: o chefe Raoni era de outro povo, não do dela. O nome completo do menino não pode ser revelado nesta reportagem porque ele é menor de idade e está sob tutela do Estado. Mas a maneira como foi alterado revelou a ignorância do juiz sobre as grandes diferenças entre as 305 etnias indígenas do Brasil, uma ignorância compartilhada por muitos brasileiros.

    Para Oliveira, as atrocidades continuaram quando soube que seu filho havia sido levado para o Lar Santa Rita, um dos quatro abrigos para crianças da cidade. No início, negaram-lhe o direito de visita. Duas outras mulheres se apresentaram afirmando ser a mãe de seu filho. O agente comunitário de saúde que convocou o Conselho Tutelar para levar o bebê de Oliveira insistiu que nunca havia visto Oliveira grávida, alegando ter certeza de que o recém-nascido não poderia ser dela.

    O teste de DNA só foi autorizado pela justiça mais de um ano e meio depois. O teste comprovou que o bebê era filho de Oliveira, mas ela só pode vê-lo após seis meses. Ninguém explicou por que outras mulheres alegavam ser a mãe da criança ou o motivo da demora para realização do teste de DNA — mas mesmo depois de comprovada a maternidade, a criança não foi devolvida a ela. Oliveira foi considerada negligente e sua casa imprópria.

    Questionados sobre o caso de Oliveira pela reportagem, os oficiais do Conselho Tutelar disseram que não poderiam passar informações específicas porque nenhum dos assistentes sociais que trabalham lá atualmente estavam na época em que o bebê foi levado, em 2015. A justiça também se recusou a comentar, citando questões de confidencialidade porque o caso envolve um menor.

    Depois de não conseguir a guarda de seu filho, visitá-lo representava um grande desafio para Oliveira. Ela tinha que caminhar duas horas e meia de sua casa até o abrigo Lar Santa Rita, no centro da cidade. Depois de algumas ocasiões em que não pôde realizar o longo trajeto, foi acusada de abandonar o filho e seus direitos de visita foram revogados.

    O filho de Oliveira, agora com cinco anos, vive desde o nascimento no Lar Santa Rita e não fala a língua da mãe, tampouco conhece sua cultura. Ele pede que ela traga biscoitos, doces e iogurte — comida que ele não conheceria se tivesse sido criado na comunidade kaiowá em Ñu Vera.

    Para Monica Roberta Marin de Medeiros, diretora do Lar Santa Rita, garantir que as crianças indígenas do abrigo mantenham contato com suas culturas não é uma prioridade.

    “Nosso povo indígena não é um povo indígena isolado da Amazônia”, disse ela. “Não são crianças e adolescentes indígenas isolados. Eles querem computadores, tablets, celulares.”

    A diretora do abrigo disse que já contratou uma “mãe social” indígena, uma mulher que morava no abrigo e cuidava das crianças da mesma forma que suas mães fariam, mas conta que não deu certo porque “hábitos, costumes e práticas de higiene” se tornaram um problema.

    Ativistas de direitos indígenas e profissionais que trabalham no sistema de assistência social dizem que romper as conexões das crianças com suas famílias, comunidades, idioma e cultura é uma violação.

    “O racismo no Brasil é uma realidade”, disse Marco Antônio Delfino de Almeida, promotor federal de Dourados que trabalha na defesa dos direitos humanos dos povos indígenas. “A primeira coisa que um juiz deve fazer é consultar a comunidade indígena. Mas a lei permite que a comunidade seja representada por um membro do órgão federal que cuida de políticas indigenistas, ou por um antropólogo. Então a Funai e os antropólogos acabam falando por eles.”

    Alice Rocha, assistente social que atua no Conselho Tutelar em Dourados desde 2016, diz que a decisão de colocar uma criança sob tutela do Estado depende de um juiz e, uma vez no abrigo, ela não supervisiona mais a rotina das crianças.

    “Eu acho que as instituições que acolhem essas crianças violam completamente seus direitos quando não se preocupam em preservar a cultura de cada criança indígena sob seus cuidados”, disse ela. “O que está acontecendo, como um todo, é genocídio. Um genocídio dos povos indígenas. Não é interesse do Estado fortalecer os povos indígenas, dar voz a eles.”

    ‘Eu vou sempre esperar por ele.’

    Sem terra suficiente para cultivar sua própria horta, a família de Oliveira contava com uma cesta básica — contendo alimentos básicos como arroz, feijão, macarrão, óleo de cozinha, açúcar e café — fornecida pela Funai. Mas o órgão federal decidiu, no fim do ano passado, cortar a ajuda aos povos indígenas do estado de Mato Grosso do Sul que não vivem em terras indígenas oficialmente reconhecidas.

    Para famílias como a de Oliveira, a decisão do órgão não significa apenas fome, mas também um motivo para que a justiça mantenha as crianças sob tutela do Estado. Mesmo que Oliveira quisesse se mudar para uma casa na reserva, onde os benefícios ainda estão mantidos, ela não poderia. Não há espaço nas terras da reserva e recuperar a terra de Ñu Vera é essencial para a sobrevivência dos Kaiowá.

    Em breve, será realizada uma audiência final sobre o destino do filho de Oliveira — se ele ficará sob guarda da mãe ou se será encaminhado para adoção. Já são cinco anos de audiências e decisões, cujas legalidades ela diz não entender completamente. Ela só quer seu filho de volta.

    Em uma tarde ensolarada de quarta-feira, em outubro passado, Oliveira observava seu filho correr pelo parquinho no quintal do abrigo, subindo o escorregador laranja enquanto seu irmão de 11 anos ria e corria atrás dele. Ela trouxe para o menino um pirulito de cereja — o favorito dele — e sorria quando ele parava ao lado dela para tomar um copo de água, embaixo de uma casinha pintada com imagens coloridas de peixes.

    “Seria o momento mais feliz da minha vida se ele pudesse voltar para casa”, disse Oliveira, enquanto tirava os cabelos do rosto do garoto. “Eu sempre estarei aqui para o meu filho. Eu vou sempre esperar por ele.”

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