Medo e devastação nos caminhos centenários da expedição Roosevelt-Rondon
Equipe de reportagem percorre mais de 1,7 mil quilômetros entre estradas e cursos d'água para conhecer os lugares por onde passaram Marechal Rondon e o ex-presidente americano Theodore Roosevelt.
Algumas casas ribeirinhas na Resex ficam às margens do rio Roosevelt e resistem há mais de 80 anos a ameaças de invasão.Algumas casas ribeirinhas na Resex ficam às margens do rio Roosevelt e resistem há mais de 80 anos a ameaças de invasão.
Nota do editor: esta reportagem foi produzida em fevereiro de 2020, antes da adoção de medidas de distanciamento social.
“Acho que era o presidente dos Estados Unidos. Ele esteve aqui há muito tempo e quase morreu nos rápidos [cachoeiras]. Os antigos falavam que bateram nas casas pedindo socorro e comida”, conta Raimunda Rodrigues da Silva, seringueira e agricultora familiar da Reserva Extrativista (Resex) Guariba-Roosevelt, no extremo noroeste de Mato Grosso, na divisa com o Amazonas e Rondônia.
Em um fogão a lenha, Raimunda prepara um pintado (Pseudoplatystoma corruscans) marinado no leite da castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa). Enquanto ajeita as brilhantes panelas que decoram as paredes da casa, ela mira o rio da janela e oferece uma explicação sobre o curioso nome em inglês que define o local onde vive. “Para o meu avô, seringueiro que chegou aqui vindo do Nordeste, este sempre foi o Castanho. Depois veio essa coisa de Rio da Dúvida e Ruselvélt”, afirma, com o sotaque dos locais para denominarem o rio.
Até chegar em sua cozinha, na colocação Novo Mundo, no município de Colniza (MT), a reportagem percorreu quase 1,7 mil km desde a capital mato-grossense, Cuiabá. A distância alarga-se pela ausência de asfalto após os 700 km iniciais. Foram quase cinco dias chacoalhando entre estradas, vias de lama, atalhos improváveis, balsas e pontes prestes a sucumbirem até podermos colocar os olhos nas águas castanho-esverdeadas do rio Roosevelt. O cansaço da jornada transformava a casa de dona Raimunda em um pequeno oásis amazônico. Um sentimento de alívio, dado as devidas proporções, partilhado no livro Nas Selvas do Brasil (1914), escrito pelo homem que deu nome ao rio: Theodore Roosevelt Junior, presidente dos Estudos Unidos entre 1901 e 1909.
“Já havíamos percorrido mais de 300 km de regiões completamente desconhecidas, em 48 dias; não víramos um único ser humano, embora por duas vezes escutássemos a voz de índios. (...) Agora, porém, tratava-se de um rio, cujas margens eram habitadas, sendo que alguns moradores já por ali se achavam havia oito a dez anos; e; contudo nem ao menos um traço se encontrava nas cartas geográficas oficiais que denotasse sua existência.”, escreveu o ex-presidente americano sobre o primeiro contato com a vila onde viviam os avós dos seringueiros habitantes da atual Resex.
Raimunda Rodrigues da Silva, seringueira e agricultora familiar da Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, em sua casa na colocação Novo Mundo, no município de Colniza (MT).
Dona Raimunda recebeu a reportagem com uma refeição preparada no fogão a lenha: peixe pintado marinado no leite de castanhas-do-brasil.
Theodore Roosevelt chegou à região aos 56 anos, após perder as eleições norte-americanas de 1912 para Woodrow Wilson. Ele havia decidido empreender viagens pela África e América do Sul com seu filho, Kermit Roosevelt. No Brasil, buscava apenas caçar na selva Amazônica. Mas a viagem tomou novos rumos após uma proposta oferecida por Candido Mariano Rondon, na época ainda tenente-coronel, descendente de povos indígenas, militar positivista e pacifista.
Em 1905 Rondon estava a poucos passos de concluir a construção das Linhas Telegráficas da Amazônia – que além de empreendimento de engenharia foi um dos maiores mapeamentos cartográficos e científicos da fauna e flora brasileiras – quando teve que interromper os trabalhos a pedido de Lauro Muller, secretário de estado de assuntos exteriores do presidente Hermes da Fonseca (1907-15). Muller havia convidado Roosevelt para vir ao Brasil como uma tentativa do governo de aproximar-se dos EUA após anos de nacionalismo e afastamento. Rondon ficaria responsável por recepcioná-lo. Contrariado, mas sem poder recusar a tarefa, o militar brasileiro lançou um desafio à Roosevelt. Ele propôs realizar algo maior do que uma expedição de caça na floresta tropical e pediu que durante a viagem fosse mapeado um rio amazônico, o rio da Dúvida, de curso ainda pouco conhecido e que poderia seguir tanto para o sul quanto para o norte do país.
“Aceitei a incumbência de acompanhar o Sr. Roosevelt, sob a condição de que a expedição não circunscreveria sua atividade a uma excursão com episódios sinérgicos, e foi aprovado o plano de organização da Expedição Científica Roosevelt-Rondon. Com objetivo de se realizar estudos geográficos e de história natural”, afirmou Rondon em suas memórias descritas no livro Rondon conta sua vida, publicado em 1958 pela biógrafa Esther de Viveiros.
O trecho entre os rios Juína e o encontro do Roosevelt com o Aripuanã – uma região entre os estados de Mato Grosso, Rondônia e Amazonas – foi descrito por Rondon e Roosevelt como um sinistro esforço de sobrevivência. Após cruzarem as áreas abundantes de caça dos acampamentos da Comissão das Linhas Telegráficas, entre os biomas Pantanal e Cerrado, a entrada nas matas da Amazônia revelou-se mais hostil do que previram.
O pequeno obelisco construído por Rondon e Roosevelt para marcar a expedição foi reformado na década de 1990. Hoje está em uma propriedade dentro da Resex Guariba-Roosevelt.
Theodore Roosevelt (à esquerda do marco), o então coronel Rondon (à direita) e outros membros da expedição Rondon-Roosevelt posam para fotografia em frente ao marco construído em homenagem ao empreendimento.
Falta de alimentos, decisões erradas sobre uso de mantimentos e embarcações, apresença de indígenas isolados belicosos e uma interminável sequência de cachoeiras mortais foram alguns dos obstáculos. A autora Candice Miilard, em 2006, descreveu a expedição no livro O Rio da Dúvida: a sombria viagem de Theodore Roosevelt e Rondon pela Amazônia. Em seus diários, Roosevelt também deixou claro que poderia ter falecido não fosse o encontro com os seringueiros. O mesmo grupo que vive até hoje na Resex, em cerca de 70 colocações – como são chamadas as áreas de cada extrativistas na floresta. Foi em uma das casas de madeira às margens do rio batizado com o seu nome que o médico da expedição Antônio Cajazeira operou a perna do ex-presidente. Sem esse apoio não teria sido possível salvá-lo de uma infecção por um ferimento decorrente de uma queda em uma das cachoeiras do rio.
Extrativismo ameaçado
A Resex Guariba-Roosevelt é o último refúgio de seringueiros na região. A unidade de conservação estadual foi criada em 1996 com objetivo de resguardar o modo de vida dos extrativistas das margens do Roosevelt e Aripuanã. As 70 famílias sobreviventes resistiram há mais de um século de isolamento, doenças e queda do preço do látex na década de 1980. Com 164 mil hectares, entre as margens dos rios Guariba e Roosevelt, a área no extremo noroeste do Mato Grosso integra um complexo de terras protegidas com dois parques estaduais (Guariba e Tucumã), duas estações ecológicas (rio Madeirinha e Roosevelt) e duas terras indígenas de povos isolados (kawahiva do rio Pardo e piripukura).
Do lado do Amazonas há outras nove unidades de conservação (UC) que integram o Mosaico de Apuí, com 2,4 milhões de hectares de áreas de reserva. Ao sul, a região detém outro mosaico de proteção formado por uma porção contínua de terras indígenas dos povos da língua mondé – cinta-larga, zoró, arara e suruís (estes já em Rondônia).
Infelizmente, grande parte dessa proteção nunca saiu do papel e a vida às margens do rio Roosevelt segue tão incerta quanto nos tempos da expedição, mas com novas ameaças. Invasões de madeireiros ilegais, disputa por terras e contaminação por agrotóxico ocorrem em toda a Resex. Segundo dados do Cadastro Ambiental Rural, registro público de imóveis rurais do Brasil, 40% da área está invadida por propriedades privadas. Em fevereiro de 2019, um avião de pulverização sobrevoou uma dessas áreas e lançou veneno sobre as casas dos moradores da Resex. Poucos ousam tocar no tema por medo de ameaças. Um boletim de ocorrências revelou que uma criança chegou a ser hospitalizada com intoxicação.
A Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT) afirma desconhecer a situação. A assessoria de comunicação do órgão alegou, em nota, que a UC teria permanecido sem gerente do início do ano até setembro de 2019.
Um relatório do Tribunal de Contas da União investigou junto ao Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso a aplicação de verbas públicas na conservação. Os auditores apontaram que a UC regrediu em seu estado de implementação e manutenção, mesmo com os recursos do Fundo Amazônia recebido pelo Estado até 2018. Segundo a Sema-MT, nos últimos oito anos foram investidos em torno de R$ 700 mil oriundos do programa de Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa) do Governo Federal na Resex Guariba-Roosevelt. A maior parte do valor foi utilizado para a fiscalização da UC, aquisição de equipamentos como veículo, barcos e motores de popa e manutenção dos mesmos. A questão da pulverização de casas por agrotóxico não teria sido investigada porque – do início de 2019 até setembro de 2019 – a unidade de conservação estava sem um gerente, cargo indicado pela própria Sema.
Derrubadas e medo
A Resex está localizada nos municípios de Colniza e Aripuanã, no norte de Mato Grosso, ambos no topo do ranking das regiões da Amazônia que mais sofrem com desmatamento, queimadas e disputas fundiárias sangrentas. Maria Isabel da Silva é uma das vítimas da violência que aflige a vila Guariba, o povoado mais próximo das áreas seringueiras. Em uma casa simples de chão de terra batida ela conta como foi a morte de seu marido, José Valdinei Da Silva. Mãe de um filho deficiente, que faleceu por falta de acesso a tratamento médico em 2018, Maria diz que terras da família foram tomadas desde que ficou viúva.
“Ele era muito ativo, trabalhou até em derrubadas. Ele ajudava o líder da associação local [Josias Paulino de Castro], que foi assassinado a tiros com sua esposa [Ireni da Silva Castro] após denunciar grilagem em 2014. Acabou que depois da morte do Josias, meu marido apareceu morto também”, me conta a dona de casa. “Falaram que foi acidente, mas o corpo foi encontrado próximo da moto todo mutilado. Depois disso perdi as terras de vez.”
Queimadas e desmatamento dentro da Resex Guariba-Roosevelt. Desde sua criação, em 1996, a reserva já teve cerca de 10% de sua área desmatada.
Caminhão transporta madeira próximo à Resex.
Colniza chegou a ser considerada a cidade mais violenta do país devido ao número de assassinatos por 100 mil habitantes em 2008. Nos últimos três anos cerca de 20 pessoas morreram vítimas de conflitos sangrentos e assassinatos, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O ano mais violento foi 2017, que começou com a morte do ex-vereador Élpido da Silva Meira, executado a tiros em sua casa, e terminou com o assassinato, em dezembro, do prefeito do município, Esvandir Antonio Mendes, morto com tiros em seu carro. Em 19 de abril do mesmo ano, uma chacina no distrito de Taquaruçu do Norte vitimou outros nove trabalhadores rurais. A vila faz divisa com a Resex e tem acesso pelo rio Roosevelt. As vítimas foram brutalmente assassinadas a facadas e com tiros de execução. No final de 2019, a vila de Taquaruçu sofreu outros dois novos atentados. A Promotoria de Justiça de Colniza oficiou os órgãos de segurança pública do estado temendo nova chacina na região em 2020.
Desmatamento e queimadas também assolam a vida dos moradores do rio Roosevelt. Nem mesmo áreas protegidas estão salvas. Segundo dados do sistema Prodes do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), até 2019, 17.565 hectares de floresta foram desmatados na Resex Guariba-Roosevelt. Isso representa 11% dos 164.224 mil hectares que a unidade de conservação possui. Desse total, 83% (14.650 hectares) foram desmatados após a sua criação. As queimadas são uma forma de consolidação do desmatamento na última porção de floresta contínua de Mato Grosso, região conhecida como o Arco do Desflorestamento.
Derrubadas e queimadas ocorrem justamente nas áreas invadidas, nas quais o estado não realizou desintrusão, ou seja, a retirada dos invasores ilegais. No banco de dados do CAR, constam 117 imóveis parcial ou totalmente sobrepostos com a área da Resex. Esses imóveis somam ao todo 70,5 mil hectares de sobreposição, 43% da área supostamente protegida.
“Minha área está intacta porque eu sou bravo, brigo sem medo. Mas muitos perderam toda a floresta de sua colocação, inclusive os caminhos de seringueira”, explica Manoel dos Santos Jesus, morador da colocação Geronço.
A cachoeira Dardanelos, no município de Aripuanã (MT), é um dos locais sagrados para a etnia indígena cinta-larga, expulsa do território para instalação de uma pequena central hidrelétrica.
Do alto não parece, mas as as corredeiras do rápido Infernão são implacáveis. A expedição Rondon-Roosevelt passou por aqui em pequenas canoas cortadas no tronco de árvores.
A falta de desintrusão dos invasores é justificada pelo governo de Mato Grosso como um ato de omissão da justiça. Segundo nota da assessoria de imprensa da Sema-MT, “a desintrusão é ato que só pode ser realizado mediante determinação judicial a partir de ação ajuizada pela Procuradoria Geral do Estado”.
Sobre as queimadas, o órgão ambiental afirma que haverá uma base de combate ao fogo em Colniza no próximo período de seca de 2020. Nota da assessoria de comunicação da secretaria afirma: “O Comitê Estadual de Gestão do Fogo, por meio do Corpo de Bombeiros Militar, está estruturando para o ano de 2020 a instalação de 10 Bases Descentralizadas Bombeiro Militar para atender 10 unidades de conservação estaduais. Para este ano também teremos a 10 equipes de força tarefa que irão atuar diretamente nos 20 municípios em que houve maior incidência de desmatamento e queimadas em 2019, dentre eles, Colniza. O projeto prevê a estruturação de Brigada Mista de Unidade de Conservação Estadual em plano ainda a ser validado”.
Marco cercado
“Se deixar, acordamos com maquinário e derrubada no quintal”, conta o seringueiro Manoel dos Santos Jesus, que também diz ter ouvido falar sobre o a expedição de Cândido Rondon e Theodore Roosevelt Jr. por seu padrasto. “Isso foi bem antes, quando aqui era tudo floresta. Não tinha essa estrada [MT-206] e nem fazendeiros. Os antigos falavam que o coronel Rondon era muito educado e que chegou com homens que fotogravam e filmavam tudo”, relembra. O extrativista também afirma ter visto outras duas expedições passarem pelo rio nas décadas seguintes. Uma dessas aventuras foi liderada em 1992 pelo neto do ex-presidente, Tweed Roosevelt. Ele chegou a navegar de caiaque pelos mesmos pontos do rio que o avô. Em sua expedição, Tweed visitou um dos que seriam o possível marco de homenagem ao rio Roosevelt.
O marco original estaria às margens do rio Roosevelt, em uma localidade bem próxima de uma sequência de cachoeiras conhecida como rápido Panelas, segundo descrição de Theodore Roosevelt em seu livro. “Eles vieram aqui e tiraram fotos. Nunca mais voltaram”, conta a paranaense Neide Rosa dos Reis. Ela é casada com Celso Reis, um funcionário aposentado do estado de Mato Grosso que se apossou da área pública onde funcionava a sede da antiga Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso (Codemat).
Fazendas instaladas irregularmente dentro da Resex muitas vezes sãoprotegidas por cercas, porteiras e cadiados. Às vezes se permite a entrada mediante pagamento pagamento de uma taxa de travessia.
Cachorro atravessa a MT-260, rodovia no meio da floresta amazônica que dá acesso à Resex Guariba Roosevelt, na fronteira entre Mato Grosso e Amazonas.
Em 1990, o governador Dante de Oliveira, também responsável pela criação da Resex, mandou erguer um totem de cimento no local com apoio da Secretaria Estadual de Planejamento. A secretaria forneceu alguns pontos georreferenciados por Rondon e registrados na Carta de Mato Grosso, um documento que foi resultado de um estudo cartográfico iniciado pelo marechal e concluído pelo tenente-coronel Francisco Jaguaribe de Mattos. O Marco do Rio Roosevelt foi incluído na iniciativa, mas poucos sabem de sua existência. O misterioso símbolo fica em um trecho que dá acesso a um porto às margens do rio Roosevelt. Para acessá-lo é preciso pedir autorização à família de Celso Reis, que se diz proprietária da área ocupada há 30 anos. Um grupo de mais de dez cachorros perdigueiros guardam os portões.
No pátio da casa, transformada em uma fazenda após derrubadas para pasto, uma placa com o nome do governador Júlio Campos (1980-84) relembra a origem pública do terreno. Ao serem questionados, os familiares negam existir um marco histórico na área e atribuem a construção de cimento como um ponto usado para a topografia de terras privadas. Com dificuldade para falar e paralisado por uma doença degenerativa, Celso apenas aponta na direção do marco sentado em uma cadeira, mas não consegue explicar por que sua família vive ali até hoje.
Em 1973, a Codemat foi designada como responsável por controlar as terras devolutas (pertencentes à União e ao Estado) da região do rio Roosevelt e Aripuanã. A companhia instalou os projetos de assentamento e começou a trazer colonos do sul do país para dentro dos limites das áreas ancestrais de seringueiros e povos indígenas – o que agravou os conflitos e mortes.
Os seringueiros relembram o conturbado período. “Eu nasci perto dos rápidos do igarapé Panela. Lembro que quando era criança um homem chegou com um facão, disse que a terra era dele e mandou meu pai sair de lá. Foi assim que subimos o rio e viemos para essa região aqui”, conta Dona Raimunda, em referência ao último dos saltos do rio Roosevelt que a expedição de 1914 teve que transpor.
“No Roosevelt, em um lugar que só os cinta-larga sabem ir, em uma pedra perto da aldeia, está um igarapé onde foi feita a origem dos homens e a divisão dos indígenas e não indígenas", conta Maria Kakin, anciã da etnia.
Criança cinta-larga corre para dentro de casa com a chegada da equipe de reportagem. Com a construção da central de Dardanelos, cintas-largas foram deslocados de seus territórios ancestrais.
Em 1998, para garantir aos extrativistas o direito de viver às margens dos rios, o ex-governador Dante de Oliveira criou a Resex Guariba-Roosevelt. A iniciativa teve apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) por meio do de um desmembramento das áreas do malsucedido Assentamento de Reforma Agrária Filinto Muller, criado pela Codemat. Passados 20 anos, a Resex não foi oficialmente demarcada. O governo sequer instalou placas denominando a área ou executou abertura do picadão, a clareira na floresta feita para configurar e identificar uma terra protegida.
“Muitas pessoas questionam por que não temos isso e falam que a Resex não existe”, explica Ailton dos Santos, presidente da Associação dos Moradores Agroextrativistas (Amorarr) da Resex Guariba-Roosevelt. A presença do estado ajudaria a reduzir a tensão dos moradores da Resex com os vizinhos que ainda cobiçam a madeira e as terras da área.
“O isolamento contribui para que as coisas aconteçam aqui e permaneçam impunes. Eu mesmo já fui ameaçado de morte. Colocaram um bilhete debaixo da porta dizendo que eu seria o próximo Chico Mendes”, conta Everaldo Dutra do Santos, líder local que coordena a Associação Pacto das Águas, criada para buscar parceiros de projetos para valorizar os produtos da floresta ainda extraídos pelos moradores da região, como castanha-do-brasil, óleo de Copaíba e látex da seringueira.
A assessoria de imprensa da Sema-MT afirma que o órgão desconhece a presença do funcionário, Celso Reis, na área. Em relação à demarcação, em 2016 a Sema assinou um contrato para georreferenciar, demarcar e restituir os marcos de todas as unidades de conservação do estado de Mato Grosso. No entanto, um parecer jurídico da Procuradoria Geral do Estado determinou o cancelamento dos contratos nº 10/2016 e nº 11/2016, celebrados com a Toposat Ambiental Ltda-EPP. Diante do fato, o Governo de Mato Grosso, por meio de uma cooperação entre Sema, Casa Civil e Instituto de Terras de Mato Grosso está realizando uma nova licitação (Edital nº. 001/2019). Por meio de assessoria, o governo do estado afirmou que a presença do funcionário não está registrada e que um levantamento das terras da região será feito para ser avaliado se a área ocupada pela família Reis é terra devoluta. Os representantes do governo não souberam informar a origem do marco.
Indígenas cercados
Além dos extrativistas, os povos indígenas também vivem em situação extrema no rio Roosevelt. No ponto inicial da Expedição Roosevelt-Rondon, no antigo posto telegráfico de Utariti, é possível perceber onde começa o avanço do desmatamento em direção às florestas. As antigas áreas de Cerrado, retratadas por Theodoro Roosevelt em 1913 como exuberante e com saltos majestosos nos rios, praticamente desapareceram ao longo de toda BR-364. A expansão da monocultura de grãos e a construção de usinas hidrelétricas tomaram a paisagem, restando apenas pequenas ilhas de vegetação.
A cachoeira de Salto Belo, no rio Sacre, em Brasnorte (MT), cenário de uma célebre fotografia do Marechal Rondon e Theodoro Roosevelt em 1913, é administrado pelo grupo de investidores internacionais Brooskfield, responsável por duas pequenas centrais hidrelétricas (PCH) na área: as usinas Sacre II e Salto Belo. Uma ação proposta pelo Ministério Público Federal (Processo de N. 24203820044013600) questiona os danos causados à Terra Indígena Utariti nas aldeias Sacre II e Bacaval, ambas do povo nambiquara. A etnia foi registrada durante a passagem de Theodoro Roosevelt como os povos originais das cabeceiras da região. “No Juruena encontramos um grupo de nhamicuaras mansos e sociáveis, que muito se alegrou com a presença do Cel. Rondon”, relatou Roosevelt em seu livro.
Outros postos telegráficos onde os membros da expedição acamparam são hoje PCHs e algumas usinas – como Telegráfica e Rondon – trazem no nome a referência histórica. Um levantamento da ONG Operação Amazônia Nativa revela que existem 32 pequenas PCHs e usinas hidrelétricas em operação na região da bacia do Juruena. O governo federal ainda planeja construir mais 138, duas delas no rio Roosevelt. As terras indígenas dos povos parecis e nambiquaras são as mais afetadas pelo avanço dos projetos.
Os enawenê-nawe são outra etnia que sofre com essas obras. Eles são o grupo que mais se opôs aos barramentos para geração de energia. “Hoje, até para fazer o nosso ritual precisamos comprar peixe de tanque. Não tem mais peixe no rio desde que colocaram essas usinas lá”, conta o cacique geral do povo enawenê-nawê, Kolareene, durante um evento na Aldeia Piarauçu, do povo kayapó. A liderança participou de um debate dos povos indígenas contra a o Projeto de Lei 191/2020, proposto pelo governo Jair Bolsonaro para regulamentar o garimpo e hidrelétricas em terras indígenas.
Massacres e diamantes
Outra área de indígenas completamente transformada nos últimos 126 anos é a do povo cinta-larga. Antigos habitantes da região entre o rio Jurena e Roosevelt, a etnia migrou para quatro terras indígenas entre Mato Grosso e Rondônia. São atribuídos a esses povos os barulhos e cantos descritos por Roosevelt em seus relatos. A expedição atravessou quase 600 km dentro do território da etnia.
A disputa por terra entre os anos de 1950 a 1970 resultou em vários massacres dos cinta-larga, alguns com participação dos próprios integrantes do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), idealizado por Rondon em 1952 justamente para proteger os indígenas. A descoberta de diamantes no rio Roosevelt por mineradoras como a Sopemi, em 1970, ligada ao grupo sul-africano DeBeers, gerou uma corrida de garimpeiros para o rio Roosevelt, agravando os conflitos.
Documentos do governo federal, como o Relatório Figueiredo de 1967, apontam que cerca de 3 mil cinta-largas podem ter sido mortos nesse período. O conturbado processo de demarcação das terras para os sobreviventes foi registrado em setembro de 1971 na revista National Geographic pelo fotógrafo e jornalista Jesco Von Putkamer. Apesar do esforço dos sertanistas José e Apena Meirelles (pai e filho, respectivamente) muitos locais sagrados ficaram de fora das Terras Indígenas estabelecidas.
O rio Roosevelt é sagrado para os cinta-larga. Eles acreditam que Pamukubá, o criador da vida, vive em um dos saltos que tantos transtornos e sofrimento causaram a Candido Rondon e Theodoro Roosevelt. O rio, então, guardaria um dos mais importantes pontos da cosmologia desses indígenas. “No Roosevelt, em um lugar que só os cinta-larga sabem ir, em uma pedra perto da aldeia, esta um igarapé onde foi feita a origem dos homens e a divisão dos indígenas e não indígenas”, revela Maria Kakin, anciã cinta-larga, em sua casa em Aripuanã (MT). A cidade erguida em cima de outra grande aldeia dos povos mondé, dizimados por completo deste território.
A vida dos cinta-larga ainda é precária. “Dramática e angustiante a situação atual dos sobreviventes cinta-larga. Mais de 50% da população está diabética ou pré-diabética, com todos os agravos de uma pandemia [de diabetes], com problemas de desnutrição, obesidade mórbida, cegueiras, hipertensão, amputações, neuropatias”, disse a antropóloga Inês Hardegraves, que há mais de quarenta anos trabalha com indígenas na região do noroeste do Mato Grosso e Rondônia. “O grupo vive submetido a doenças desconhecidas, com dependência econômica e alimentar de produtos industrializados de péssima qualidade nutricional, com mortes de líderes importantes e em plena divergência interna de disputas intergeracionais.”
Há 126 anos os descendentes dos cinta-larga travariam o primeiro contato com o nosso mundo através de um encontro que resultaria na morte de um dos cães do então Cel. Cândido Rondon. “Depois de ter andado quase um quilômetro, ouviu uns gritos que partiriam da frente e que julgou fossem emitidos por macacos. Continuou na direção dos sons e Lobo [um dos cachorros que acompanhavam a expedição] tomou–lhe a dianteira. Um minuto depois escutou os ganidos do cão, que ainda cainhando, voltava para a o local em que estava o coronel, enquanto a criatura que gritava também se aproximava, evidentemente perseguindo o cão”, relatou Roosvelt no diário. “Como previra, o animal havia sido morto por duas flechas. Uma estava enterrada no corpo, e, no chão bem junto, entraram uma vara esquisita dessas que os aborígenes usavam nos tempos mais rudimentares da pesca (...). Os selvícolas, que eram dois ou três, fugiram. Deixamos no local algumas contas e brincos para indicar que éramos amigos.”
Reportagem publicada com apoio do Rainforest Journalism Fund, Pulitzer Center.