Ossos de mil anos são das vítimas mais antigas de um tsunami na África Oriental
Uma grande onda deixou antiga vila de pescadores submersa na atual Tanzânia, levando pesquisadores a reanalisar o risco de tsunamis na costa leste da África.
Um crânio humano é revelado na areia cinzenta ao longo do rio Pangani, na Tanzânia, local que já abrigou uma antiga vila de pescadores suaíli. Há cerca de mil anos, um tsunami destruiu repentinamente o vilarejo e matou muitos moradores.
HÁ MILHARES DE ANOS, uma próspera vila suaíli fervilhava às margens do rio Pangani, na Tanzânia, a alguns quilômetros do Oceano Índico. Os moradores construíam suas casas com treliças de madeira e terra. Eles enchiam suas redes de peixes e produziam miçangas artesanais a partir de conchas. Suas cerâmicas eram simples e funcionais.
Então, um dia, um tsunami chegou, desencadeado por um terremoto no outro lado do Oceano Índico.
Novas pesquisas, financiadas pela National Geographic Society e publicadas na revista científica Geology, descrevem uma raridade fatídica no registro geológico. Os moradores evidentemente não tiveram chance de escapar da torrente que os alcançou. Muitos se afogaram em suas casas destruídas e foram soterrados por destroços. Pelo que sabem os autores do estudo, o local na Tanzânia é o primeiro — e o mais antigo — depósito formado por um tsunami que contém restos mortais humanos encontrado na África Oriental. O mais antigo depósito de restos mortais humanos no mundo, encontrado no Oceano Índico, na Papua Nova Guiné, tem sete mil anos.
O local na Tanzânia acrescenta um dado crucial ao estudo de tsunamis no Oceano Índico, que pode se mostrar devastador. Embora grandes tsunamis na região ocorram com pouca frequência, aproximadamente uma vez a cada 300 a 1.000 anos, eles acontecem — e na África Oriental, há muita coisa em jogo. O centro financeiro da Tanzânia, Dar es Salaam, está localizado na costa e é uma das cidades que mais crescem no mundo. De acordo com projeções das Nações Unidas, Dar es Salaam se tornará uma “megacidade” com mais de 10 milhões de habitantes até 2030 e poderá ultrapassar os 70 milhões até o fim do século.
A África Oriental escapou em 2004 de um tsunami causado por um grande terremoto na costa da Indonésia que matou mais de 227 mil pessoas. A maior parte dos danos e mortes causados por esse tsunami ocorreu no sul e no sudeste da Ásia. As ondas também chegaram ao litoral da África Oriental, mas a primeira onda atingiu o continente durante uma maré extremamente baixa, tendo seu impacto reduzido.
O tsunami que ocorreu há mil anos, no entanto, foi diferente. “Não parece ter sido um tsunami tão grande, mas o fato de as pessoas estarem vivendo em terreno baixo e não terem ideia do que estava por vir provavelmente criou o pior cenário”, diz Jody Bourgeois, especialista em sedimentologia e tsunamis da Universidade de Washington, que revisou o novo estudo antes de ser publicado. “Nenhum terremoto servirá de alerta quando se está do outro lado do Oceano Índico.”
De cima, o local mostra um modesto conjunto de viveiros de peixes não acabados, ao lado do rio Pangani, na Tanzânia. O Oceano Índico aparece em segundo plano.
Desvendando um antigo desastre
Apesar de ser possível que tsunamis do Oceano Índico atinjam a costa da África Oriental, o risco do fenômeno na região não foi muito estudado. O local na Tanzânia é um dos poucos depósitos conhecidos formados por um tsunami na África Oriental ao longo dos últimos 12 mil anos. “Os governos e a população precisam ter conhecimento desse tipo de informação”, diz o principal autor do estudo e Explorador da National Geographic Vittorio Maselli, geólogo da Universidade Dalhousie, no Canadá.
Maselli começou a estudar o tsunami de mil anos no primeiro semestre de 2017 quando trabalhava no departamento de geologia da Universidade de Dar es Salaam. Por acaso, descobriu o trabalho do arqueólogo Elinaza Mjema, também da Universidade de Dar es Salaam, que trabalhava em um local a 153 quilômetros a noroeste, perto da cidade de Pangani. Antigamente uma vila de pescadores suaíli, a área já foi repleta de miçangas artesanais e cerâmica, e a universidade utilizou o local para o ensino e a prática de técnicas arqueológicas em campo.
Mas quando Mjema levou os alunos até lá em 2010, cada local escavado revelava ossos humanos. “Todo aluno dizia: Professor, há um esqueleto aqui”, conta ele. “Foi uma surpresa.”
Mjema retornou ao local em 2012, 2016 e 2017, e suas outras escavações encontraram corpos que estavam dispostos de forma aleatória na terra — incluindo um com braceletes de ferro intactos nos tornozelos. Guerra e doenças não pareciam explicar o súbito desaparecimento da vila. Não havia marcas de corte ou sinais de patologia em nenhum dos ossos. Pelo que parece, os homens, mulheres e crianças da vila se afogaram e foram soterrados pelos destroços de suas casas.
Uma equipe de pesquisadores, formada por Maselli e o coautor do estudo Andrew Moore, especialista em sedimentologia do Earlham College em Richmond, Indiana, visitou o local em 2017 para colher mais amostras de sedimentos. Eles estavam em uma corrida contra o tempo. A Universidade de Dar es Salaam havia iniciado obras para fazer viveiros de peixes a fim de ensinar aquicultura, destruindo parte do sítio arqueológico no processo. Os pesquisadores cavaram suas trincheiras nas margens das lagoas e coletaram tudo o que conseguiram. “Dentro de três meses, talvez menos, eles começariam a encher aquelas lagoas com água”, diz Moore. “Parte do processo envolveu geologia de resgate.”
A areia que enterrava a vila continha restos de peixes, roedores, pássaros, anfíbios e até conchas de pequenos moluscos marinhos — um sinal de que a água havia saído do Oceano Índico, a vários quilômetros de distância. E onde quer que os pesquisadores cavassem, eles continuavam encontrando mais ossos humanos. “Às vezes, éramos envolvidos pela emoção — precisávamos pensar na ciência, mas, ao mesmo tempo, estávamos trabalhando com pessoas que morreram lá”, diz Maselli.
A datação por radiocarbono de carvão e ossos nos depósitos confirmou que o evento de inundação ocorreu há cerca de mil anos. Os depósitos de tsunami ao redor do Oceano Índico também datam da época, sugerindo que um evento semelhante em escala e intensidade ao tsunami de 2004 ocorreu um milênio atrás.
Simulações computacionais descobriram que um terremoto ao longo da placa de Sunda — a falha na costa da Indonésia que provocou o tsunami de 2004 — poderia ter formado ondas suficientemente grandes para explicar os depósitos de Pangani. A baía em forma de funil do rio Pangani teria amplificado as ondas do tsunami conforme elas corriam rio acima, tornando as inundações no local ainda mais destrutivas.
“Se formos a outros lugares da África que testemunharam eventos semelhantes ao de 2004... encontraríamos esse antigo evento escrito na história das pedras?”, Moore se pergunta.
Reanalisando o risco
A equipe de pesquisa espera que seu estudo motive trabalhos voltados a avaliar os riscos que a África Oriental enfrenta de ser atingida por tsunamis. Será especificamente necessário um mapeamento mais detalhado do leito oceânico na região, diz Maselli. Assim como cadeias de montanhas canalizam o fluxo de ar, a topografia do fundo do oceano afeta o movimento de ondas e correntes. E os tsunamis não são causados apenas por terremotos; também podem ser desencadeados por deslizamentos de terra subaquáticos.
“Os Estados Unidos possuem um grande programa para mapear toda a plataforma e declive ao longo da costa atlântica com o objetivo de compreender os deslizamentos de terra”, afirma Maselli. “Não temos esses dados sobre a África Oriental.”
Quanto à comunidade antiga, o trabalho arqueológico de Mjema mostra sinais de recuperação após o tsunami. Após cerca de 50 a 100 anos, as pessoas começaram a construir sobre os depósitos da inundação. Ainda hoje, a construção na área continua. Embora as autoridades locais tenham começado a transferir construções para fora das planícies, diz Mjema, edifícios recentes foram erguidos em antigos depósitos formados pelo tsunami ao longo do rio Pangani. Estarão essas comunidades preparadas para a próxima possível catástrofe?
“Podemos aprender muito com o passado se realmente quisermos entender o que estamos enfrentando”, afirma Mjema.