Em meio a apagão de dados, iniciativas tentam compilar os números da pandemia no Brasil
Instituições e indivíduos, muitas vezes voluntários, trabalham para organizar estatísticas e contornar ingerência do Ministério da Saúde.
Para evitar que as vítimas de covid-19 fossem enterradas em covas coletivas, como aconteceu em Manaus e Nova York, a prefeitura de São Paulo ordenou a abertura de 8 mil novas valas no cemitério da Vila Formosa, o maior da América Latina. As imagens que percorreram o mundo revelam o assombroso aumento de mortos na pandemia, algo que a subnotificação de casos não pode esconder.
Quando o navio hospital Abaré zarpou dia 15 de junho para atender moradores de comunidades ribeirinhas do rio Arapiuns, no estado do Pará, o Brasil registrava, oficialmente, quase 900 mil casos confirmados de covid-19. Dez dias depois, ao retornar para o porto de partida, em Santarém, a cifra já ultrapassava a marca de 1,2 milhões. Médicos e enfermeiros do barco traziam consigo, além do espanto com a rapidez com que a doença se espalhou pela região, a comprovação de 300 novos casos do novo coronavírus. “Detectamos uma comunidade inteira com testes positivos para covid-19”, conta a enfermeira do projeto Saúde e Alegria, Marcela Pinheiro Brasil, 45 anos. Casos que, mesmo testando positivo naquele momento, só serão adicionados à cifra oficial muitos dias após a confirmação.
Mas a distância entre a realidade e a análise dos números vai muito além dos dez dias de viagem do Abaré e dos milhares de quilômetros que separam as comunidades do interior do Pará de epidemiologistas e profissionais especializados na área. O caso do navio hospital é só um exemplo do enorme desafio que é computar dados em um país de tamanho continental como o Brasil – condição fundamental na definição de políticas públicas de atendimento, como construção de hospitais de campanha, compra de respiradores e remédios e contratação de profissionais de saúde.
Para o médico e professor de epidemiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Guilherme Werneck, se não temos os números corretos, somos uma nau sem rumo. “Temos uma dificuldade que é o desconhecimento do vírus, que não tem tratamento nem vacina. A gente não sabe nada, já está numa escuridão; até esse conhecimento ser aprendido, fica difícil navegar e encontrar um caminho”, diz ele. “Nunca seria um caminho fácil, mas poderia ter sido mais lógico, mais claramente enfrentado, e, nesse aspecto, a gente foi mal.”
Werneck destaca que o Brasil teve tempo de se organizar, já que foi possível ver como o vírus se comportava com antecedência. “Lá na China, talvez fosse mais difícil, porque eles não tiveram tempo para se preparar. A gente teve um mês ou mais.”
Quando se fala em dados, o epidemiologista lembra que cada hora conta. “O fato de você saber que a pessoa faleceu ou teve um diagnóstico hoje não é o momento exato de quando o caso apareceu; ele apareceu lá atrás, apesar da confirmação só ter vindo agora, mas você tem que concatenar tudo isso para reconstituir a curva”, conta. “É um trabalho brutal e difícil. Se você não tem transparência e rapidez, é complicado.”
Marcelo Gomes, coordenador da base de dados permanente Infogripe, da Fundação Oswaldo Cruz, concorda com a necessidade da transparência dos dados. A plataforma processa os números de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), causada por vírus como influenza, H1N1 e, agora, covid-19. “O Infogripe nasceu em 2014 quando a gente começou essa parceria com o Ministério da Saúde e, desde o começo, partimos de comum acordo que as informações deveriam ser abertas para a população”, conta. O sistema inclui somente os dados necessários para os pesquisadores, médicos e autoridades terem uma visão ampla sobre os caminhos percorridos pelos vírus, respeitando a privacidade de cada paciente.
Assim, quando começaram os casos de covid-19 no país, o sistema logo detectou o aumento de ocorrências. No início de abril, Gomes lançou nota alertando para o crescimento dos casos de SRAGs constatado nos gráficos. “Quando a gente olha esses dados, vemos em vários estados um percentual relativamente alto de casos sem diagnóstico conclusivo ou com o resultado não identificado”, diz Gomes. “Se não for covid, é até pior, porque significa que tem alguma outra coisa acontecendo e causando um nível gigantesco de internações por síndrome respiratória com o mesmo conjunto de sintomas. Mas, quando a gente a olha para faixa etária, eles têm o perfil similar de casos positivos para covid, o que é diferente do percentual de entrada por influenza, por exemplo.”
Ele lembra que, para fins de análise de risco, não deveria ser necessário aguardar a confirmação do exame laboratorial. “Há uma perda muito grande de casos de pessoas que se infectaram por vírus respiratório, seja por covid ou influenza. A gente já trabalha historicamente com uma faixa de 50% a 60% de negativos e isso é natural nesse processo”, diz. Gomes destaca diversas razões que podem determinar que um teste PCR (Proteína C-reativa), considerado o mais confiável para identificar a covid-19, dê falso negativo. Elas vão desde quanto tempo se passou entre a infecção e o exame, como foi feita a coleta e o transporte da mostra até o teste em si. “Existem estudos que demonstram que, mesmo em ambientes de coleta controlados, a covid teve percentual significativo de testes dando falso negativo”, conta.
Por isso, é importante que outros grupos de vigilância epidemiológica, como o Infogripe, trabalhem olhando para os sintomas, não à espera do resultado confirmado dos testes. E autoridades públicas deveriam fazer o mesmo. “Quando um paciente chega ao hospital como suspeito de SRAGs, ele vai ocupar o mesmo leito e, se o caso agravar, o mesmo respirador e o mesmo espaço de UTI [que outros pacientes]”, diz Gomes. “Do ponto de vista de demanda por recurso hospitalar, o dado de SRAGs é fundamental. Tudo que a gente fizer em termos de medidas preventivas para covid funciona para os outros vírus respiratórios e vice e versa; se a gente relaxar as medidas pensando na covid, a gente também está relaxando para os demais vírus. Porque não importa o nome, mata igual.”
A sigla D3 no alto do atestado de óbito indica uma vítima, confirmada ou suspeita, de covid-19. Além do caixão lacrado, presença do código obriga que o velório seja ao ar livre, tenha duração máxima de dez minutos e receba, no máximo, dez pessoas.
Gomes faz outra alerta, desta vez a respeito de cidades do sul e sudeste que já estão relaxando a quarentena em um período crítico: o início do inverno. “Flexibilizar ainda com o número de casos lá em cima e entrando no período em que o clima favorece transmissão é o melhor cenário para o vírus e o pior do ponto de vista de internação”, diz Gomes. “Isso tem que ser muito bem equacionado pelos gestores públicos, tem que ser feito de uma maneira que a gente possa disparar o retorno ao distanciamento social o mais rápido possível.”
Ele lembra que há um hiato entre o paciente sentir os sintomas, procurar atendimento e isso se tornar um dado estatístico. Isso pode ser uma questão de dias ou, dependendo do caso, até um mês ou mais, como costuma acontecer em regiões mais isoladas do país. Portanto, sempre que olhamos para os números, estamos pelo menos alguns dias atrasados em relação à realidade.
No início de junho, o Brasil enfrentou o que pesquisadores consideram um apagão de dados. O Ministério da Saúde passou alguns dias atrasando a divulgação oficial dos números. Em alguns casos, nem os divulgou. A confusão em relação as estatísticas – que acabam atrasando as reações práticas ao enfretamento a pandemia – trouxe ainda mais relevância para iniciativas paralelas que buscam dar transparência às informações de saúde.
Uma delas é a do jornalista Marcelo Soares, especializado em análise de dados e criador da Lagom Data, plataforma que acompanha os números de covid-19 desde o primeiro caso. “Tem duas expressões que políticos e empresários falam muito: achatar a curva e chegar ao pico”, explica Soares. “E o que que é a curva? A curva é uma representação platônica de uma coisa que existe na realidade, os casos que estão ali existem lá fora.”
Outro fator importante na conta das subnotificações é a desigualdade social que leva à baixa presença de cartórios, especialmente nas regiões mais pobres do país. “Os dados na outra ponta são humanos até demais, nós temos até subnotificação de nascimentos. Agora, você imagina no caso de uma família que recebe um atestado de óbito, mas sem o resultado do teste para covid, que às vezes vai chegar dez dias depois”, diz Soares. “Se essa família quiser retificar a causa da morte, teria que voltar ao cartório e ainda pagar uma taxa. Quem que vai fazer isso enquanto tenta reconstruir a vida sem aquela pessoa?”
Ele destaca que há muita pressão relacionada a essas informações. “Há uma pressão política e econômica em cima desses dados, no sentido de reabrir o comércio, para ‘não matar CNPJ’, porque é caro manter a população em casa. Entendo que chega a ser cruel manter a população mais pobre em casa sem que ela tenha condição de comprar seu alimento, ou pagar o aluguel”, diz Soares. “Mas para fazer essa equalização, como é que você decide a hora certa de reabrir? Toda a projeção é feita com dados e isso é complicado porque o Brasil é um dos países que menos testa.”
Os enterros durante à noite revelam outro improviso: o trabalho dos sepultadores é iluminado com a ajuda das lanternas dos veículos.
O baixo índice de testagem também é uma grande preocupação para o jornalista Cristiano Martins, de Minas Gerais. Com mestrado em jornalismo de investigação e dados, Martins decidiu avaliar, além dos dados de covid, os números de casos suspeitos. “Como eu levantava esses dados todos os dias, fui percebendo que tinha um aumento de suspeitos. Mas essa proporção [entre casos confirmados e suspeitos] não acompanhava o número de testes porque Minas Gerais era o estado que menos testava no Brasil. Tanto em termos proporcionais quanto de população, Minas era o último estado”, diz ele. “Fiz uma matéria e isso ganhou repercussão até internacional. O governo até fazia propaganda que os números eram ótimos, mas o básico, que é a testagem minimamente representativa, não tinha.”
Martins decidiu criar, junto com o colega Ígor Passarini, o site Coronavírus MG. Nele, qualquer pessoa pode consultar os dados do estado por cidade e região. Ele descreve que “Minas Gerais é bem complexo e tem várias características diferentes do Rio ou São Paulo”, diz ele. “Aqui, a população é menos concentrada na capital e o contágio começou do interior para Belo Horizonte. Nosso aeroporto internacional não é muito movimentado e o metrô da capital só tem uma linha – particularidades que podem ajudar a explicar o contágio mais lento.” Martins também destaca que, em seus levantamentos com as prefeituras, há mais suspeitos e mais mortes do que os números divulgados oficialmente pelo governo do estado.
“Tem gente morrendo a mais e tem pouco teste sendo feito. É um dos estados que menos testa e o próprio governador afirmou que teste só servia para matar a curiosidade de pesquisador”, diz ele. “[Quando] você não tem coordenação do governo federal, fica difícil enfrentar uma epidemia nessas condições.”
Belo Horizonte está – junto com Curitiba, Porto Alegre e Campo Grande – entre as capitais que recuaram na decisão de reabrir o comércio reviram decisões de saúde pública após a curva de casos e mortes por covid-19 voltar a crescer nas últimas semanas. São cidades sobre as quais o pesquisador Marcelo Soares destacou, em reportagem do início de junho, o alto número de óbitos por SRAGs. Campo Grande, segundo os dados apresentados na reportagem, chegou a ter 12 vezes mais casos de SARGs em comparação ao novo vírus.
“Os dados são um grande nó, e eu diria que é praticamente um fracasso o Brasil [...] deixar seu sistema de saúde entrar em colapso”, diz Werneck. Segundo ele, o Brasil, através do Data SUS, tem um dos sistemas de informação de saúde mais estruturados do mundo, com dados de mortalidade desde a década de 1970 e alta capacidade técnica para processamento de dados.
Em meados de maio, ainda antes do pico da pandemia na cidade de São Paulo, agentes sepultadores do Cemitério da Vila Formosa disseram que estavam enterrando 75 pessoas por dia. Antes da pandemia, o número ficava entre 20 e 30.
Marcelo Gomes lembra que “a subnotificação é um problema com o qual sempre vamos lidar, mas, o fundamental nesse momento, é saber onde a gente está; se aumentou, se diminuiu, se já estabilizou, isso que é importante”, diz ele. “Agora, se a gente sabe que não estamos testando massivamente a população, não temos como comparar os dados do Brasil com os dados de países que o fizeram.” Soares acredita que o Brasil provavelmente está com um índice de 85 a 90% na subnotificação de casos.
Outra iniciativa que busca contornar o apagão de dados da pandemia a plataforma aberta Brasil IO, site que compila boletins epidemiológicos das 27 Secretarias Estaduais de Saúde, fruto do trabalho de 40 voluntários. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva, de cuja entidade que também discute com pesquisadores novas maneiras de cuja Guilherme Werneck é vice-presidente, também discute com pesquisadores novas maneiras de garimpar, processar e divulgar dados sobre o novo coronavírus. Por último, grandes veículos de imprensa formaram um consórcio para garantir a divulgação dos números, à revelia do desejo expressado pelo presidente Jair Bolsonaro.
“A nossa expectativa é que, dessa situação toda, possa sair justamente uma valorização da metodologia de notificação com melhorias nos sistemas para que a gente não precise lidar com esse delay tão grande [atraso entre os casos e as notificações], diz Gomes. “Mais do que isso, que esses bancos [de dados] sejam vistos como informações de utilidade pública.”
Como destacou durante uma coletiva o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, “nessa pandemia, ninguém estará a salvo, até que todos estejam a salvo.” Afinal, estamos todos no mesmo barco.
As fotos desta reportagem foram produzidas com apoio do Fundo de Emergência Covid-19 para Jornalistas da National Geographic Society. Algumas das imagens foram publicadas originalmente no site Intercept Brasil.