"Nós já estávamos de quarentena, vivendo numa condição de quase refugiados", diz Krenak
Em entrevista para a National Geographic, o escritor Ailton Krenak fala sobre a luta indígena, o enfrentamento da pandemia por sua comunidade, o Brasil diante do colapso e por que se sente um refugiado dentro de seu próprio território.
Ailton Krenak em retrato feito por videoconferência. "Nós já estávamos de quarentena, porque a gente estava vivendo aqui dentro numa condição de quase refugiados dentro do nosso próprio território. Abastecidos por caminhão-pipa e cesta básica."
Ailton Krenak, 66 anos, cresceu lutando pela sobrevivência em uma vida nômade. Com sua família, empreendeu uma fuga constante dos ataques dos homens brancos em uma antiga luta do povo krenak – descendentes dos botocudos, habitantes originais da região do Espírito Santo. A estes, considerados irredutíveis à civilização pelos colonizadores, a guerra ofensiva foi declarada já na primeira Carta Régia. O conflito entre o mundo eurocêntrico e os povos originários formou a personalidade de um líder indígena, jornalista, ambientalista e escritor que demonstrou sua força quando, em 1988, durante a Constituinte, pintou o rosto com jenipapo na tribuna do Congresso enquanto fazia um discurso contundente sobre o desrespeito à natureza e aos povos indígenas. Uma fala tão potente que ecoa até hoje.
Krenak já não é mais nômade. Vive com outras 130 famílias na comunidade Krenak, no médio rio Doce, em Minas Gerais. No entanto, isso não significa que a vida esteja mais tranquila. Seu povo, apesar de ter conseguido um território, ainda sofre com constantes tentativas de invasões e tragédias ambientais provocados pela ação humana.
Com a pandemia, Krenak se tornou uma voz ainda mais necessária e tem sido presença frequente em muitas lives e debates na internet que tratam da crise global. A entrevista foi realizada online, assim como o retrato que a ilustra, fruto de uma experiência, acredito, nova para ambos. Eu, fotógrafa, nunca tinha retratado alguém pela internet. A imagem é uma espécie de autorretrato conjunto, na qual o retratado segura a câmera e termina por definir ângulo e luz. Nesta conversa, Krenak comenta sobre a luta indígena, o enfrentamento da pandemia por sua comunidade, o Brasil diante do colapso e por que se sente um refugiado dentro de seu próprio território.
Em tempos de quarentena, a sessão de retratos se deu por videoconferência. Ailton Krenak segue recluso com outras 130 famílias na comunidade Krenak, no médio rio Doce, em Minas Gerais. A fotógrafa estava em seu apartamento, em São Paulo.
Gabi Di Bella: Como foi para você quando viu as primeiras notícias de que poderíamos viver uma pandemia?
Ailton Krenak: Eu estou desde o dia 12 de março, quando retornei de uma viagem a Brasília, já preocupado com as notícias que estavam chegando da Europa. Ainda não havia confirmação de nenhum caso no Brasil. Mas a notícia do tamanho dessa crise e o sentido de pandemia que ela já trazia logo no anúncio me deixou muito preocupado.
Eu me recolhi na aldeia aqui em Minas Gerais, na aldeia Krenak, fazendo a quarentena coletiva. São 130 famílias, e passamos a orientar todas as nossas famílias com relação à importância do distanciamento social. O risco do contágio passou a ser percebido como uma coisa real.
Depois, nós começamos a estudar a mortandande – morreu dez, 20, 30, 100, 200, mil. Aí começou a morrer gente em volta da gente. Final de março, começo de abril, já tinha gente morrendo em São Paulo, morrendo no Sudeste. Ainda não tinha avançado para a Amazônia nem para o Nordeste, e nós ficávamos, óbvio, com o desejo que isso fosse contido no Sudeste com orientação dos governos dos municípios, onde tem uma infraestrutura mais, digamos, atualizada. Mas, para nossa surpresa, a coisa foi avassaladora. Ela foi entrando para dentro do Centro-Oeste, Mato Grosso, Amazônia. Tivemos o anúncio do primeiro óbito indígena com aquele jovem xeniana dos yanomami. Aquele foi um alerta par nós de que era uma coisa muito perigosa mesmo, e que poderia, no caso das as comunidades indígenas, ser uma pandemia de proporção nunca imaginada.
E, de fato, ela está mesmo com esse sentido apavorante porque está matando muita gente nas aldeias. Matando muita gente nas aldeias e, contrariando a nossa esperança de que ela ficasse restrita ao pessoal que tinha feito trânsito fora das aldeias, ela começou a pegar gente que está dentro da floresta. Nós fomos acompanhando cada caso de contágio e consequente óbito ou escapada do vírus. Nós fomos contando isso até abril, maio, com a esperança de que a gente conseguisse se organizar à altura da ameaça, mas eu acho que só se conseguiu virar um pouco essa tendência arrasadora agora no mês de junho.
G.D.B.: O vírus já chegou na sua comunidade?
A.K.: Não chegou e não queremos que chegue, aqui ninguém relaxou, ninguém brincou com isso, levam a sério. Tem um sentimento de luto coletivo. As pessoas não acham que podem sair por aí brincando.
G.D.B.: Vocês estão organizados para não sair da aldeia?
A.K.: Organizados inclusive para não deixar o lado de fora invadir a aldeia. A aldeia está fechada. É um controle disputado, por que não é pacífico. Tem gente, por exemplo, que presta serviço e vem de carro. Tem dois acessos por estrada de chão aqui na reserva, mesmo com as duas entradas sendo controladas. Nós somos abastecidos por caminhão-pipa porque estamos em situação de emergência por causa da lama no rio Doce. Em razão disso, as ações emergenciais incluem a rotina de oito caminhões-pipa entrando na reserva, percorrendo as casas, enchendo caixa d’água. Vem dois, três trabalhadores em cada caminhão desses, então entram 40, 50 pessoas de fora por dia. O que a gente faz é não ficar confraternizando demais. Eles chegam, colocam água dos caminhões e vão embora. Tem uma circulação vigiada de gente de fora aqui dentro. E tem um cuidado. Nós aqui dentro temos um posto de saúde que já existia, que é o polo de saúde indígena o DSEI, Distrito Sanitário Indígena. Um dos 34 DSEI que tem no sistema da saúde do Brasil fica aqui na nossa aldeia. É um polo e isso ajuda um pouco o alerta porque os profissionais de saúde que atuam aqui dentro são muito mais alarmistas que uma pessoa comum. Chamam atenção dos pais e das mães, principalmente. Botam o foco numa higiene mais regulada, a coisa do álcool-gel, de usar máscara, esses procedimentos ordinários, todo mundo aqui já está treinado.
G.D.B.: Além da pandemia, vocês já vinham convivendo com esse problema do rio Doce. Se somou um problema, né?
A.K.: Na verdade, é importante observar o seguinte: nós já estávamos de quarentena, porque a gente estava vivendo aqui dentro numa condição de quase refugiados dentro do nosso próprio território. Abastecidos por caminhão-pipa e cesta básica. Então, a gente não teve que ir para a fila da Caixa pegar R$ 600 e nem fazer campanha de donativo por já estarmos dentro de um programa de emergência. Acho que o fato de a gente já se encontrar dentro de um programa emergencial, que supõe outras rotinas, facilitou respeitar a orientação da quarentena. E não agravou porque ninguém ficou se achando obrigado a ficar aqui, já estava aqui.
“Nós já estávamos de quarentena, porque a gente estava vivendo aqui dentro numa condição de quase refugiados dentro do nosso próprio território. ”
G.D.B.: Os indígenas já sofreram com muitas pandemias, sarampo, gripes. Para vocês foram muitos “fins de mundo”, você acha que o indígena já tem uma visão sobre isso?
A.K.: Devemos levar em consideração, mas não podemos naturalizar uma ideia de que os indígenas estão vacinados contra esse tipo de desastre. A pandemia não se assemelha a experiência de nenhum grupo indígena na Amazônia. A tendência de minimizar, dizendo que a gente já vive assim, é uma ingenuidade, e em decorrência dessa ingenuidade muita gente está morrendo. Entre os kokamas, no mês de maio, houve um contágio comunitário e morreram 50 pessoas. Não é brincadeira, e não é comum. Ninguém está acostumado com isso, com esse grau de risco. Nem quando abriu a Perimetral Norte e invadiu o território yanomami, você não chega a ter 50 mortes por mês. Tem uma característica muito própria desse contágio com covid-19 que é o descontrole. Os parentes na Amazônia sabiam o que era uma gripe, sabiam o que era um contágio de meningite, chikungunha, porque foram epidemias. E talvez eles não saibam a diferença de uma epidemia para uma pandemia. A característica da pandemia é que ela não deixa ninguém de fora, a própria ideia de grupo de risco ficou em questão porque morre criança, morre velho, morre qualquer um, e desestrutura a base doméstica, a capacidade de socorrer uns aos outros. Até a ideia de usar a medicina indígena própria de cada povo fica prejudicada porque as pessoas que tem o conhecimento e manipulam essa medicina alguns deles são exatamente os que morreram primeiro. Os conhecimentos sobre as terapêuticas indígenas são de algumas pessoas, eles não são universais. Não é todo mundo na comunidade Krenak que sabe se curar. Não é todo mundo que está na aldeia yanomami que sabe qual o cuidado que tem que tomar. Você pode ter algumas pessoas que sabem orientar esse cuidado, mas essas pessoas também estão adoecendo.
No alto Rio Negro, por exemplo, houve uma preocupação muito grande [quando] as pessoas mais fortes dos nossos parentes dessana e tuiuka começaram a morrer. Incluíam exatamente aquelas pessoas que tem status de sábios anciões, curadores. Higino Tuyuka era um mestre, ele morreu. Lá em Boa Vista, em Roraima, tragicamente morreu o principal articulador do serviço de saúde indígena.
Então, assim, teve uma experiência trágica para os próprios agentes de saúde indígena, porque como eles estavam achando que tinham preparo para interagir entre o hospital e a aldeia, eles viraram agentes de contágio. No Solimões, lá no Javari, dizem que quem levou o contágio para os índios arredios, para os parentes que vivem em situação de isolamento, foram os agentes de saúde. Então, foi quando eles perceberam que não bastava você ter uma orientação básica de saúde para evitar que você fosse um portador do vírus, se você estava fazendo trânsito entre a cidade e o posto de saúde dentro da floresta você era um agente que podia levar o vírus. Estavam subestimando quanto esse vírus é descontrolado. O nível de contágio do vírus. Talvez tivessem se apoiado nas experiências anteriores de levar a vacina, de fazer um controle mais ou menos da circulação das pessoas, de tirar o infectado de dentro da maloca e botar ele num espaço fora do convívio, mas ali no mesmo quintal, no mesmo ambiente, eles viram que isso não resolve, ficar no mesmo quintal é manter o contágio ativo. E eu acredito que só agora, no final de junho, algumas comunidades indígenas, principalmente apoiadas em muita informação da Coiab [Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira], da Foirn [Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro], do CIR [Conselho Indígena de Roraima] e os próprios boletins da Apib [Associação dos Povos Indígenas do Brasil], os boletins que vinham conferindo os relatórios semanais de contagio e morte, começaram a confrotar isso com os dados oficiais. As organizações indígenas começaram a fazer outro acompanhamento, tentando sair desse ambiente de confusão que o próprio Ministério da Saúde e o governo [promove]. As falas do presidente em Brasília avacalhando com a questão do controle, falando que isso era uma gripezinha. E ele falava isso na Rádio Nacional, ele falava isso nas mídias que alcançam as comunidades rurais e na floresta. E as comunidades que estão em região isolada não tem o mesmo acesso que nós à internet. Muitos só têm notícias pela rádio. A ideia de que todo mundo está em rede, está na web, está na internet, é uma ideia muito arrogante. Nós fizemos uma live de campanha de fundos para apoiar comunidades do [rio] Tapajós e pensamos que tinha muita gente do Tapajós ouvindo a live. E depois a gente ficou sabendo que ninguém daquela região tinha acesso aquele tipo de tecnologia para estar do outro lado assistindo. Muitas dessas campanhas que estão sendo feitas no Sudeste para apoiar comunidades da Amazônia não são de conhecimento imediato das pessoas que são objeto da campanha porque não estão no mesmo ambiente. Não estão nesse mundo que facilita essa conexão. Estão em locais onde as pessoas simplesmente não tem internet.
G.D.B.: Alguns povos, como os yawanawas, chegaram a fazer campanhas eles mesmos. Conversei com pajés de outras etnias e eles contaram que, neste momento, decidiram colocar em prática o que os avós e pais falavam. Isso pode trazer uma revalorização da independência dos povos indígenas?
A.K.: Eu acredito que pode acontecer uma boa observação de que nós não devemos depender exclusivamente da biomedicina, da medicina hospitalar, desse aparato que o próprio subsistema de saúde indígena estimula quando ele convoca as comunidades indígenas a formar agentes de saúde e integrar as equipes de saúde como se isso fosse o estado ótimo. Muitas pessoas vão ver que seria melhor dedicar o seu tempo a conhecer sua própria cultura e sua própria medicina do que ficar aprendendo recursos primários de higiene, sanitarismo e outras práticas que os comitês de saúde indígena insistem há anos em ficar passando para os indígenas como se fosse um estágio a mais de cuidado. Eu acredito que pode acontecer agora uma valorização de práticas tradicionais de cuidado. Que não só se refere a medicação, mas a dietas e alimentação adequadas e a uma menor circulação em ambientes que não tinham que estar porque poderiam estar dentro de seus territórios ao invés de estar na sede do município. Algumas mulheres indígenas, estimuladas pelo sistema de saúde pública, vão para os centros urbanos para fazer cesariana. Isso é uma violência e uma burrice. Então, tomara que algumas pessoas indígenas comecem a botar em questão por que as mulheres têm que ir para a cidade para fazer cesariana, por que no pré-natal tem que sair da aldeia. Porque tem uma série de cuidados que podem ser feitos dentro do convívio tradicional e são feitos numa clínica. Limitar a dependência desse sistema médico hospitalar seria uma oportunidade muito bem-vinda se as pessoas que sobrevierem aprenderem alguma coisa com isso.
“Tem uma característica muito própria desse contágio com covid-19 que é o descontrole. Os parentes na Amazônia sabiam o que era uma gripe, sabiam o que era um contágio de meningite, chikungunha, porque foram epidemias. E talvez eles não saibam a diferença de uma epidemia para uma pandemia. A característica da pandemia é que ela não deixa ninguém de fora, a própria ideia de grupo de risco ficou em questão porque morre criança, morre velho, morre qualquer um, e desestrutura a base doméstica, a capacidade de socorrer uns aos outros. ”
G.D.B.: Você mesmo fala que vocês deveriam ser mais independentes do sistema branco, talvez esse seja o momento de pensar sobre...
A.K.: A questão da segurança alimentar, por exemplo. Muitas campanhas agora pró saúde indígena, estão focando em levar cesta básica. Se você vive na floresta e tem uma cultura, vive dentro da floresta, você é capaz de produzir seu alimento dentro da floresta. Então, houve uma aculturação da dieta alimentar de muitas comunidades que estão dentro da floresta. E, desses itens, alguns queriam um equipamento como um freezer que era para conservar a caça ou o peixe. Até aí, tudo bem, porque estão vivendo uma situação excepcional e não podem sair para pescar todo dia. Então, sai para pescar e guarda o peixe em condição, digamos assim, mais favorável. Mas também existem práticas de defumação que você seca o peixe e come ele durante o tempo das chuvas, por exemplo. São tecnologias próprias, conhecimentos próprios, que estão sendo desprezados pela facilidade dos conhecimentos urbanos, inclusive o freezer, o hospital, a UTI, a vacina – você fica rendido a uma rede de serviços que você não controla. E, diante de uma pandemia, você pode simplesmente morrer.
G.D.B.: Você acha que os índios, confiando mais neles mesmos, tem mais chances de sobreviver do que indo para a cidade buscar tratamento?
A.K.: Nos casos mais recentes que tive notícia de contágio comunitário, houve a decisão de uma comunidade inteira em não ir para o hospital e fazer a cura dentro dos seus próprios meios. Decidiram fazer isso. Passaram o pico da crise, sobreviveram e estão muito mais fortalecidos nessa posição deles hoje do que estariam em abril, por exemplo, porque ninguém tinha coragem de correr o risco e não ir para o tubo do hospital, ou ir para fila do hospital, ir para corredor do hospital lotado. O que aconteceu é que muitos indígenas morreram no hospital. Pela dificuldade de acesso, porque demoraram quatro, cinco dias se deslocando de canoa. Piorou a resistência física, acumulou outras infecções, outras carências, e, quando finalmente chegou no hospital, não tinha mais resistência física para receber a medicação e a violência da intubação.
Tem uma comunidade que vive cerca de Manaus e tem localização no igarapé que chama Cuieiras, de cuia. Lá a aldeia vivia sua rotina de ribeirinhos quando atestaram que tinha havido um contágio. A pessoa que teve o contágio era a liderança daquela comunidade. Então, ficaram fazendo esforços durante vários dias para que a pessoa fosse removida para Manaus. Quando finalmente chegou a remoção, só podia levar uma pessoa, só o doente. Não podia levar nem um acompanhante. Levaram ele e ele deu óbito no hospital de Manaus. Todos os parentes que ficaram contagiados decidiram não ir para hospital. Se embrenharam na mata, tomaram os cuidados que sabiam tomar e todos sobreviveram. O único que morreu foi o que foi para o hospital. Quem me contou foi o Virgilio Viana, da Fundação Amazônia Sustentável. A fundação foi quem foi levar assistência e retirar esse enfermo. Ele me relatou que esse foi o primeiro caso de contágio coletivo que as pessoas decidiram não ir para o hospital e conseguiram se safar da covid-19. Todos se contagiaram e só um morreu, e foi justamente o que foi no hospital. Essa história que é muito triste, talvez vá repercutir para esse grupo, dizendo nós não temos que ficar correndo para hospital.
G.D.B.: E isto talvez seja muito bom...
A.K.: Parece que reverteu a situação em Manaus, dos grupos indígenas que estavam correndo para o hospital. Eles pararam de correr para o hospital e começaram a ver criticamente a descida para a cidade, inclusive a descida para a cidade para conseguir donativos.
G.D.B.: Neste momento, o governo é abertamente genocida, especialmente se contar as comunidades indígenas. Você se sente um refugiado dentro do país?
A.K.: A referência que eu fiz do povo Krenak vivendo refugiado no seu próprio território é em decorrência de uma série de crimes ambientais que incidiram sobre o nosso território e sobre o rio Doce – a lama da mineração que plasmou o rio foi o último evento. Antes dele, nós tivemos a construção das barragens hidrelétricas no curso do rio que estava mutilando a vida do rio e a própria reserva ao longo do rio. Ela foi sendo depredada ao longo dos últimos 80 anos, de uma maneira que nos tornamos refugiados dentro do nosso próprio território. Agora, estender essa experiência de refugiados para os povos que vivem em outras regiões do Brasil teria que considerar o contexto em que eles vivem. Os yanomamis invadidos por cerca de 20 mil garimpeiros e por um incentivo do Ministério do Meio Ambiente, dizendo que devem mesmo invadir território yanomami com madeireiras e garimpo, eles devem estar se sentido refugiados e ameaçados porque não têm segurança mesmo ficando quietos onde estão, estão sendo invadidos. Mas alguns outros grupos indígenas na Amazônia já estão se sentindo refugiados, como o pessoal de Belo Monte. O pessoal da Volta Grande do Xingu está refugiado porque foram retirados de seus lugares próprios e colocados em assentamentos. São lugares insalubres, onde eles estão muito mais suscetíveis. Mas ela [pandemia] pode causar um dano irreparável na estrutura etária da população. Você pode ter uma ladeia onde sobreviveu algumas crianças, algumas mulheres e alguns homens adultos. Aí fica aquele desastre, que não tem nem memória de si.
G.D.B.: Com a morte dos idosos vai toda a sabedoria junto...
Vai principalmente os fluxos de memória porque precisa que tenha gente de várias gerações para que a memória seja viva. Porque, se não, ela vira uma memória de museu. Hoje, a gente conhece várias plataformas e modelos de trabalhar com memória, mas a memória viva supõe uma comunidade ativa, com as diferentes gerações trocando experiências e constituindo uma memória viva. Com a pandemia, isso está sendo fraturado.
Tomara que a gente possa, num futuro não muito distante, avaliar o dano que isso está causando. A gente não pode se omitir, achar que isso foi mais uma desgraça. Se alguém, em alguma entrevista, deu a ideia de que só estamos passando por mais uma desgraça, você pode colocar em questão porque é uma em escala global que pode acabar com pequenas comunidades humanas, inclusive aquelas que estão mais isoladas dentro da floresta.
O governo, mesmo de maneira negacionista, não consegue ocultar que existem dezenas de grupos étnicos dentro da floresta sem contato suficiente para identificar, por exemplo, de que grupo linguístico que ele é, quantos são. Pode ser um grupo de 30 pessoas, mas pode ser 80 pessoas, pode ser cento e tantas pessoas. Aqueles índios que estão na região do Vale do Javari, havia uma frente de contato com eles e a frente foi desativa da por causa da pandemia também. Mas ela já vinha sendo desmantelada desde o governo Temer e tínhamos notícias de garimpo e madeireira entrando em território remoto que não tinha vigilância. E os índios do Vale do Javari já fizeram denúncias de que garimpeiros e madeireiras estão aproveitando da crise para entrar em território que antes eram fiscalizados. Nem o Ibama nem o ICMbio estão fiscalizando. Nem os próprios índios estão fiscalizando porque eles perderam o financiamento e perderem a autorização de fazer isso sem serem importunados por um grupo de homens armados, como aconteceu com nossos parentes que estavam fazendo a vigilância florestal no Maranhão e foram assassinados, os guardiões da floresta que foram assassinados. Então, temos a situação de pessoas que estão dentro da floresta sendo atacados por madeireiros, pistoleiros, garimpeiros, tem a pandemia e a guerra que já vinha acontecendo.
G.D.B.: Mas você acha que é melhor, talvez, que esses povos continuem isolados?
A.K.: É uma pergunta difícil porque se você disser que é melhor eles ficarem isolados, eles vão ficar isolados de mim e de você. Mas um garimpeiro e um pistoleiro não vão respeitar esse direito de isolamento, vão chegar lá, vão fazer o contágio e, eventualmente, vão matar eles no meio do mato. Aconteceu um episódio na semana passada de um grupo de yanomamis que estava andando dentro do território yanomami e passou perto de uma pista, um lugar de lançamento de materiais para o garimpo. E eles foram inadvertidamente descobertos pelos garimpeiros que estavam ali esperando o avião. E os garimpeiros meteram bala, mataram eles, deram tiro, perseguiram eles na mata. Eles fugiram, mas como tinham visto os garimpeiros, os garimpeiros perseguiram até matar dois ou três deles. Essa denúncia já foi feita através do nosso querido Dario Yanomami, que é filho do Davi Yanomami. Ele conseguiu fazer essa denúncia, obrigou o exercito e PF a ir lá fazer o resgate dos corpos que foram assassinados e verificaram que, de fato, os garimpeiros fizeram um ataque contra índios que estavam dentro da floresta.
Agora, está tendo uma discussão com o general Mourão, com o vice-presidente que chefia um grupo de trabalho na Amazônia. Ele teve uma reunião com o representantes yanomamis, se comprometendo a fazer a retirada dos garimpeiros. Eu não sei como ele vai fazer isso se o chefe dele está dizendo que é para matar os índios.
G.D.B.: O problema dos povos seguirem isolados é que eles não podem se defender contra este tipo de ataque...
A.K.: Quando nós tínhamos um governo preocupado com a conservação da flroesta e comprometido em garantir a vida dessas pessoas que estavam vivendo em situação de isolamento voluntário, a política do estado era garantir que estranhos não entrassem lá. Então, eu seria a favor deles ficarem isolados. Mas, agora, o Estado está dizendo que é para invadir. Então, eles precisam agora, na verdade, ser assistidos e apoiados por quem puder ajudar, porque eles estão ameaçados pelo governo e pelos invasores.
“São pessoas alienadas mesmo, mas elas têm o direito de fazer essa escolha, desde que não passem o dano para os outros. O problema é que são tão irresponsáveis que estão botando em risco a vida de cada um deles e a vida de quem eles encontram pelo caminho, são uma desgraça ambulante. ”
G.D.B.: Voltando para o covid-19. Se ele chegar na aldeia Krenak, você seguira por essa linha de buscar o tipo de cura indígena?
A.K.: Nós íamos recorrer de recursos terapêuticas não hospitalares, inclusive homeopatia, porque sabemos de grupos de pessoas que estão se tratando com orientação homeopática e ayurvérdica e que estão conseguindo sobreviver a crise sem nenhuma perda de vida. Eu conheço pessoas que se trataram com um mix de homeopatia e alguma outra terapêutica que conseguiram ajudar as pessoas a sair da crise. Não teve internação, não teve hospital. Tem muitos médicos, muitos profissionais de saúde com alta capacidade disponíveis para assistir e apoiar quem não quer ir para hospital. E nós estamos privilegiando essa relação, não levar ninguém para hospital. Primeiro, é evitar e manter uma dieta e uma rotina saudável e, no caso de ter sintoma, se antecipar com uso de terapêuticas que não são de risco e também não são panaceia, porque não é para você fazer besteira, como beber chá de urtiga, porque nessa hora começa tudo que é palhaçada: um monte de receita idiota, tipo beber creolina, remédio pra piolho. É tudo maldade, mas é para confundir as pessoas mesmo. Num país onde o próprio presidente é negacionista, a possibilidade de muitas receitas erradas e notificações falsas serem feitas é mais um drama que a gente tem que sobreviver.
G.D.B.: Uma coisa que me apavorou foi ver o exército distribuindo cloroquina para os indígenas...
A.K.: É uma situação escandalosa aos olhos, inclusive de outros países e outras nações que estão assistindo isso e vendo o Brasil como um país em estado de abandono. No sentido de política pública, o mais grave é que a mentalidade dos nossos membros das Forças Armadas, se prestam a um serviço tão baixo desses, porque eles mesmo deveriam questionar e dizer: “Nós não vamos distribuir um placebo para um população que está morrendo, não vamos enganar as pessoas usando dinheiro para sair voando de Brasília para fazer uma expedição na floresta que sabemos que é inútil.” E eles deveriam saber que algum dia eles podem ser levados a um tribunal e ser co-responsabilizados por genocídio, independente de seren soldados ou generais. Eles estão se metendo onde eles não têm competência, e isso pode significar abuso de poder, negligência, omissão ou até a intenção de matar. É crime.
G.D.B.: Como você vê esse desespero das pessoas de irem ao shopping, esse desespero da urbanidade em consumir?
A.K.: Isso é uma pré-condição anterior a pandemia e anterior à exigência de quarentena. É uma predisposição dessas pessoas a fazer filas em shopping e colocar em risco a própria vida. É uma alienação de si. Essa condição vem sendo construída ao longo das últimas décadas. É uma excessiva rendição das pessoas, já há umas duas gerações, a um modelo de vida urbano, um tipo de vida alienado da paisagem. É egoísta, consumista e alienado da paisagem. Não importa onde o sujeito está, ele quer se comportar sempre de uma maneira arrogante. Mas ela denuncia também uma ignorância muito séria do mundo em que estamos vivendo. São pessoas alienadas mesmo, mas elas têm o direito de fazer essa escolha, desde que não passem o dano para os outros. O problema é que são tão irresponsáveis que estão botando em risco a vida de cada um deles e a vida de quem eles encontram pelo caminho, são uma desgraça ambulante. Os shoppings estão cheios de desgraças ambulantes. É uma tristeza porque parece que, se a gente escapar da pandemia, vamos ter que ver o que fazer com essas desgraças ambulantes que andam por aí.
G.D.B.: Após a pandemia, você acha que pode haver uma melhor relação da medicina branca com a indígena?
A.K.: Está certo o João Paulo [fundador do Centro de Medicina Indígena, em Manaus] quando ele fala da experiência, muito bem-vida, que ele apoiou e estimulou. Ele reuniu outras pessoas do mesmo campo de conhecimento, principalmente do povo tukano, dessano, tuiuka porque é uma constelação de povos que tem uma cosmovisão, que comunga um conjunto de práticas medicinais e que pode constituir um corpo terapêutico. E foi isto que eles realizaram nos últimos dez anos: um trabalho muito bonito, muito bem-vindo e muito vitorioso, que questiona o fato da medicina indígena ainda não ter sido percebida como uma das práticas terapêuticas auxiliares que deveriam integrar a saúde coletiva do Brasil. Ele está certo de reivindicar esse reconhecimento.
Acho que, agora, um pouco do olhar exclusivista vai se abrir também para esse campo da medicina tradicional indígena. É claro que a experiência que o João Paulo vem trabalhando está muito mais constituída e muito mais traduzida nos termos de uma clínica. Eles mantêm uma clínica em Manaus onde atendem indígenas e não indígenas. Aliás, a maior parte da clientela é não indígena. Parabéns ao João Paulo e aos mestres da medicina indígena que trabalham junto com ele. Estão enfrentando esse desafio de maneira brilhante, responsável. Estão socorrendo muitas pessoas indígenas e não indígenas neste momento, e acho que isso fortalece sim as medicinas tradicionais. Porque não existe uma. Se você pensa que são 300 povos, você pode considerar que há um elenco de práticas terapêuticas, além do uso de técnicas de meditação, de aplicação de mão parecida com reiki, de uso de plantas e de outras práticas que são exclusivas do conjunto de conhecimento que cada um desses povos conseguiu manter vivo.
G.D.B.: Isso pode ser mais discutido e mais aceito agora?
A.K.: Acho que vai haver muito mais interesse por qualquer terapêutica, e, nesse caso, a medicina tradicional indígena vai passar também a ser percebida como um a possibilidade. Muitos pesquisadores do campo da saúde vão se interessar por fazer cooperação, parceria, criar aproximação entre os profissionais de saúde médico hospitalar e os profissionais da saúde indígena. Eu vejo nesse sentido, mas também vejo como uma possibilidade da gente ter uma situação muito piorada no futuro. Pode piorar, por exemplo, a expansão do serviço da saúde médico hospitalar. Ela pode sofrer uma queda muito grande de investimento. Já tinha uma tendência a retirar recursos públicos da saúde. Acho que a pretexto da estarmos vivendo uma crise econômica, é muito provável que o povo que vive da floresta vai ter que se recolher com seu próprio conhecimento para continuar vivendo na floresta. Eu acho isso mais importante do que uma integração dos sistemas de saúde.