Brasília pré-histórica: cavernas e paredões guardam vestígios dos verdadeiros pioneiros da capital

Arqueólogos afirmam que humanos pisaram em solo brasiliense há pelo menos 8 mil anos. Artefatos e desenhos ancestrais estão espalhados por sítios particulares e até em áreas superpovoadas do Distrito Federal e Entorno.

Por Renato Alves
fotos de Edilson Rodrigues
Publicado 9 de nov. de 2020, 07:00 BRT

Cerrado pré-histórico: o Sítio Arqueológico do Bisnau, em Formosa (GO), abriga em paredões rastros dos primeiros habitantes do Planalto Central.

Foto de Edilson Rodrigues

BRASÍLIA, CIDADE PLANEJADA para ser a capital do Brasil, completou 60 anos em 21 de abril de 2020. Chamados de candangos, seus construtores costumavam dizer que “antes, tudo era só mato”. Em parte, tinham razão. Até eles tirarem do papel o projeto urbanístico de Lucio Costa e os prédios de Oscar Niemeyer daquele que viria a ser o primeiro núcleo moderno tombado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, o Planalto Central era praticamente só Cerrado. Mas, muito tempo atrás, já havia vida humana na região.

Milhares de anos antes do desembarque dos primeiros candangos, que começaram a chegar em 1957 vindos de todas as partes do país, seres habitavam o Cerrado hoje ocupado pelo Distrito Federal e por Goiás. Eram povos nômades, que buscavam abrigo em grutas nos meses mais frios. No verão, saíam para caçar. Esse modo de vida está descrito em cavernas e paredões de pedra da região. Nas paredes dessas casas rudimentares, os legítimos pioneiros ilustravam o cotidiano em pinturas de animais e descrições de caçadas. 

Os vestígios dos ancestrais candangos estão espalhados por fazendas do Entorno do Distrito Federal — região que envolve cidades mineiras e goianas vizinhas à capital — e até em áreas superpovoadas de Brasília. Nos pastos e nas plantações de fazendas e no que resta de Cerrado em área urbana, estão milhares de machadinhas, pontas de lanças e outros artefatos. Há ferramentas fabricadas entre 4 mil e 12 mil anos atrás, hoje ignoradas e pisadas por humanos, cavalos, bois e outros animais. Arqueólogos resgataram algumas dessas peças, devidamente acondicionadas para pesquisa e até expostas em museus.

Alguns dos maiores tesouros pré-históricos da região estão na goiana Formosa, a 80 quilômetros de Brasília. São pinturas rupestres que enfeitam sete das 29 grutas catalogadas no município. Os homens das cavernas também deixaram gravuras em dezenas de cavernas, paredões e pedras encravadas no meio do cerrado do município de 88 mil habitantes. 

As grutas de Formosa estão numa faixa de morros rochosos entre a Serra Geral do Paranã e o Espigão Mestre da Serra Geral, no vão do Paranã, em Goiás, famoso mundialmente como um dos melhores pontos para voos de asa-delta e parapente. Os blocos se estendem por 8,5 quilômetros e é o divisor de águas entre os rios Paranã e Bandeirinha. 

A aparente descontinuidade da formação, com quatro picos mais elevados — que na verdade são apenas a ponta de uma montanha rochosa soterrada ao longo de milhares de anos —, levou os moradores da região a batizar o bloco maior de Lapa da Pedra. É nessa área, com 1,8 quilômetro de extensão, que se concentra o maior número de grutas e pinturas rupestres.

Pesquisadores acreditam que os homens das cavernas tenham usado um tipo de pincel feito especialmente para suas obras de arte nesse cenário, além dos próprios dedos. As pinturas estão nítidas, levando-se em conta o desgaste sofrido em tanto tempo de exposição. Algumas foram feitas a até 7,5 metros do solo. A maioria tem um só tom: vermelho, laranja, vinho e preto. Poucas têm associação de duas cores. 

As representações são variadas. Muitas se referem a animais, como tatus e veados. Também há marcas de pés, com quatro, cinco e seis dedos e desenhos primários de pessoas. Mas há muitas gravuras ainda não decifradas pelos cientistas. Elas têm formatos geométricos e tradições astronômicas. Os pesquisadores supõem ser retratos do céu, das diversas constelações.

Essas gravuras em baixo-revelo encontradas no Sítio Arqueológico do Bisnau, em Formosa (GO), são chamadas de petróglifos.

Foto de Edilson Rodrigues

Os habitantes da região usaram ferramentas para 'desenhar' os petróglifos nestas rochas frágeis chamadas de arenito.

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Humanos em solo candango

Apenas uma pesquisa recente conseguiu apontar com certeza a época de um dos sítios históricos do DF. Em 2017, após três anos de estudos, arqueólogos concluíram que humanos pisaram em solo candango 8.414 anos atrás. A datação foi feita a partir de análises de fragmentos de carvão encontrados em uma escavação.

A constatação inédita foi comandada pelo arqueólogo Edilson Teixeira de Souza, dono de uma empresa de consultoria, após análises no sítio arqueológico de Cachoeirinha, localizado no Paranoá, cidade-satélite de Brasília, que fica à margem do lago artificial de mesmo nome criado com a nova capital. “Coletamos milhares de peças. A maioria, pedras lascadas, usadas como ferramentas”, conta Souza.

O complexo foi encontrado em 2016 durante estudos orientados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que contratou a empresa de Edilson para fazer as escavações, análise e resgate do material que poderia ser encontrado na área. O governo de Brasília havia começado obras em uma rodovia e em um condomínio residencial, o que exigia a pesquisa e a retirada do material. 

Nos últimos dez anos, Edilson de Souza e sua equipe de arqueólogos goianos pesquisaram dez sítios em diferentes pontos do DF, em função de obras que seriam realizadas. Mas eles não puderam escavar todos, por falta de dinheiro dos contratantes, de problemas jurídicos ou interesse do poder privado ou público.

Edilson de Souza diz que o Distrito Federal e Entorno têm dezenas, talvez centenas, de sítios arqueológicos a serem explorados. “Onde há paredões íngremes, há 99% de chance de ter um sítio arqueológico. E essas formações são comuns nessa região de Cerrado”, comenta o arqueólogo. 

Assim como as peças encontradas por Souza e sua equipe, quase todos os tesouros históricos e pré-históricos resgatados em Goiás e no DF estão em instituições de Goiânia, como o Museu Zoroastro Artiaga e o Memorial do Cerrado.

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    “A presença do homem aqui é tão antiga quanto nas demais partes da América do Sul. O solo e as grutas do DF e Entorno guardam grande quantidade de pinturas rupestres e fósseis.”

    por Paulo Bertran
    Historiador

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      A Toca da Onça, também na região de Formosa (GO), é um raro caso de sítio arqueológico sinalizado com uma placa na entrada. 

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      Acesso restrito e formações raras

      A maioria dos sítios do DF fica em áreas particulares – sem nenhuma infraestrutura para o turismo. Para visitá-los, é preciso conhecer os donos. Um dos locais mais acessíveis fica em uma fazenda leiteira abandonada, onde está a Toca da Onça, a cerca de 10km do centro urbano de Formosa (GO). Este é um raro caso de sítio arqueológico sinalizado com uma placa na entrada da propriedade. 

      Os desenhos deixados em um dos paredões de pedra mostram animais, retratos rústicos do ser humano e representações do céu, além de muitos outros símbolos ainda não desvendados. No teto de uma das cavernas é possível ver desenhos de pés achatados, sem a curva lateral com a qual o homem atual está acostumado.

      Assim como fazia o pai, morto há dois anos, os herdeiros da propriedade mantêm as porteiras sempre fechadas. Visita, só com autorização. Algumas pessoas vão para fazer rapel nos paredões. Mas há quem deixe seu rastro de destruição. Mesmo diante da tentativa de preservar o meio ambiente e a história, invasores picham o próprio nome ou arrancam pedaços de estalactites e estalagmites.

      No Brasil, desenhos como os das grutas de Formosa foram encontrados apenas em Sete Cidades, no Piauí. Eles também estão em outros continentes, o que intriga os pesquisadores, pois na pré-história não havia meios de comunicação e de transporte. 

      “As figuras mais curiosas dos sítios arqueológicos de Formosa estão na Pedra Pintada, na Toca da Onça, onde fica a Árvore da Vida, bem semelhante a representações encontradas na África e na Austrália”, escreveu o historiador Paulo Bertran (1948-2005), em seu livro História da Terra e do Homem no Planalto Central, um dos poucos que trata da pré-história do Distrito Federal e região.

      As conclusões de Bertran são embasadas por vestígios deixados pelos primeiros habitantes do Centro-Oeste nas grutas de Formosa. Muitas delas sofreram alterações antigas. Há sinais de camas artesanais e jaulas, onde animais de pequeno e médio porte, capturados no verão, eram trancados para servir de comida aos homens no inverno. 

      “A presença do homem aqui é tão antiga quanto nas demais partes da América do Sul. O solo e as grutas do Distrito Federal e de cidades goianas próximas guardam uma grande quantidade de pinturas rupestres e fósseis. É um acervo tão rico quanto o da região de Lagoa Santa (MG), por exemplo”, ensinou o historiador goiano que escolheu morar em Brasília.

      Os desenhos rupestres deixados nos paredões de pedra da Toca da Onça mostram animais, retratos rústicos do ser humano e representações do céu.

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      Os proprietários deixam as porteiras da Toca da Onça fechadas – visitas precisam de autorização. O local é procurado por praticantes de rapel, que nem sempre entendem a importância da preservação dos vestígios pré-históricos.

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      Pistas de um cotidiano remoto

      Formosa abriga outra raridade. No Sítio Arqueológico do Bisnau, que também tem sinalização adequada, mas acesso limitado, os primeiros habitantes do Planalto Central deixaram pistas de seu cotidiano em diversos paredões. Mas, em vez de tintas, eles usaram ferramentas para desenhar em um tipo de rocha frágil, chamada de arenito. As gravuras em baixo-relevo, classificadas como petróglifos no meio científico, têm as mesmas formas das encontradas nas grutas.

      Para ver essa preciosidade, saindo de Brasília, é preciso seguir pela BR-020 na direção de Fortaleza (CE), até o Km 46. O sítio arqueológico fica em uma das fazendas leiteiras, com o Cerrado muito bem preservado, da comunidade de Bisnau, distante 50km da área urbana de Formosa. O acesso é repleto de animais silvestres — muitas cobras e até onças — e só deve ser feito com guias.

      Mas alguns dos poucos turistas que visitam o Bisnau não ajudam a preservá-lo. Para aumentar a visibilidade do desenho, eles riscam o baixo-relevo com giz, tinta e outras pedras. Desnecessário. A própria natureza dá destaque à obra pré-histórica. No fim da tarde, com o sol se pondo, a sombra produzida no baixo-relevo destaca a forma da gravura com o contraste da pedra.

      Humanos não conviveram com dinossauros em nenhuma parte do mundo. Os dinossauros foram extintos milhões de anos antes do surgimento da humanidade. Mas o primeiro registro da presença humana no Planalto Central coincide com a fase de extinção dos primeiros animais que habitaram a região que se têm registro. Bichos grandes e ferozes, como o tigre dente-de-sabre. 

      Os homens da caverna também tinham a companhia de outros animais enormes, como o megatério — uma espécie de preguiça — e o gliptodonte, um tatu gigante de até um metro de altura. De uma faixa de terra, onde hoje é a América Central, animais do Norte chegaram ao Sul. Entre eles, o mastodonte, cães-ursos e ancestrais dos cavalos. Todos antigos moradores do cerrado brasileiro.

      Apesar da longa coexistência cerca de 11 mil anos atrás, não há nenhuma evidência confiável de que o homem caçou os animais gigantes de forma sistemática no território nacional ou mesmo na América do Sul, ao contrário do que ocorreu na América do Norte, onde mamutes e mastodontes eram presas constantes das populações humanas. 

      Para aumentar a visibilidade dos petróglifos do Bisnau, alguns turistas riscam o baixo-relevo com giz, tinta e outras pedras, o que acaba por deteriorar o registro histórico.

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      Tesouro pouco explorado

      Os costumes da antiga civilização do Planalto Central são um tesouro pouco explorado. A Universidade de Brasília engatinha nas pesquisas da pré-história do DF. Cientistas da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Universidade Católica de Goiás (UCG) realizaram a maioria dos estudos sobre os antigos animais e os primeiros homens do Planalto Central. 

      Em convênio com a Universidade de São Paulo (USP), no Projeto Anhanguera de Pesquisas Pré-Históricas, a UFG fez algumas pesquisas no Planalto Central. O estudo envolveu as áreas ao redor do Distrito Federal, entre elas Planaltina de Goiás, único sítio arqueológico estudado a fundo nas proximidades de Brasília. 

      Em levantamentos iniciados em 1979 na cidade goiana distante 56km da capital do país, a professora Dilamar Cândida Martins, da UFG, encontrou uma “indústria pré-histórica” de instrumentos de pedra. Mais de 4 mil peças — cunhas, machados, raspadores — ainda não escavadas. Tudo está na beira do Córrego Rico. 

      Pelos cálculos da professora, esses instrumentos têm cerca de 8 mil anos. “Há evidências na região de outros sítios arqueológicos, como o do Barreiro, escavado em 1985 por uma equipe da professora Margarida Andreatta, do Museu Paulista”, ressalta Dilamar.

      O arqueólogo Eurico Theofilo Miller (1932-2018) encontrou as primeiras pistas de sítios pré-históricos no DF. Em 1991, no Gama, uma das cidades-satélites da capital, ele se deparou com dois sítios em antiga região de mata densa, derrubada em 1960, na construção de Brasília. Neles, havia restos de cerâmica e artefatos de pedra, espalhados nas cabeceiras do córrego Ipê, onde hoje há uma universidade. 

      No ribeirão Ponte Alta, Miller e um grupo de exploradores encontraram vestígios de quatro sítios arqueológicos. Segundo Miller, o achado indica que ali havia uma aldeia indígena, de formato circular, característica de um povo conhecido como Jê. Ainda na Ponte Alta, foram localizados outros dois sítios, com artefatos de cerâmica feita pelos homens, um deles bem maior e também de formato circular.

      No começo de 1993, Miller descobriu cinco sítios em Taguatinga, outra cidade-satélite de Brasília, às margens do córrego Melchior. O lugar tinha características de acampamento de caça. Um ano depois, uma equipe liderada por Miller localizou 16 sítios arqueológicos na área do rio Descoberto, também nas terras do DF. 

      Cinco eram taperas de fazendas coloniais. Uma das ruínas de fazenda estava sobre um sítio indígena milenar. Pelos cálculos de Miller, alguns desses sítios teriam de 7 mil a 7,5 mil anos. Ninguém, no entanto, escavou as áreas. A falta de exploração impede conclusões precisas. 

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