Aids: há 40 anos, o início de uma assustadora epidemia tomava forma

Há quatro décadas, cinco mortes misteriosas deixaram o jovem cientista Anthony Fauci perplexo — e deram início a sua longa batalha contra o HIV.

Por Bill Newcott
Publicado 20 de jun. de 2021, 07:00 BRT, Atualizado 21 de jun. de 2021, 13:54 BRT
ACT-UP's Majority Action Committee

Fundada em Nova York quando o HIV/aids se espalhou pela comunidade gay da cidade em 1987, a Aids Coalition To Unleash Power (“Act Up”, “Coalizão de aids para liberar o poder”, em tradução livre) logo se tornou uma força nacional. Usando camisetas com estampas que exigiam que o governo reduzisse o período de testes dos medicamentos para a aids e expandisse seu acesso, os manifestantes da Act Up se reuniram na Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (“FDA”, na sigla em inglês) em 1988.

Foto de Donna Binder

O trânsito na volta para casa piorava, mas Anthony Fauci, no curto trajeto entre os Institutos Nacionais de Saúde (“NIH”, na sigla em inglês) e sua casa no noroeste de Washington, D.C., não pensava nas luzes de freio piscando à sua frente. Em vez do trânsito, sua mente estava fixada em relatos incomuns de uma doença inexplicável acometendo homens gays do outro lado do país.

Naquele momento, há 40 anos, ninguém poderia imaginar estar testemunhando o início de um surto mundial que infectaria mais de 75 milhões de pessoas e mataria cerca de 35 milhões.

primeiro indício de que havia uma doença ameaçadora em curso surgiu em um artigo de pouca visibilidade na edição de 5 de junho de 1981 do Relatório Semanal de Morbidez e Mortalidade (“MMWR”, na sigla em inglês) dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (“CDC”, na sigla em inglês): cinco homens em Los Angeles haviam recebido atendimento médico devido a uma pneumonia causada por Pneumocystis, uma rara infecção fúngica dos pulmões causada em sistemas imunes gravemente debilitados. Não fora mencionado no relatório que dois dos homens já haviam morrido e outro sucumbiu à infecção logo em seguida.

Posteriormente, foi emitido um segundo relatório MMWR no início de julho. Dessa vez, um total de 26 homens —não apenas em Los Angeles, mas também em Nova York e São Francisco — padeceram com pneumocistose e sarcoma de Kaposi, um câncer causador de lesões nos vasos sanguíneos e outras infecções oportunistas.

“Senti arrepios na espinha”, recorda Fauci. “Pensei comigo: ‘meu Deus, só pode ser uma doença nova.’”

Fauci havia sido recentemente nomeado chefe do Laboratório de Imunorregulação do NIH nos Institutos Nacionais de Alergias e Doenças Infecciosas (“NIAID”, na sigla em inglês). Ainda assim, estava entre os especialistas em doenças infecciosas mais experientes do país, tendo ingressado no NIH em 1968, logo após sua residência médica. Mas seu vasto conhecimento e experiência apenas tornavam o caso ainda mais complexo.

“Continuei refletindo”, conta ele, “e a única conclusão a que pude chegar foi que estávamos diante de uma infecção totalmente inédita. Provavelmente era um vírus, pois, se fosse uma bactéria, provavelmente seria possível observá-la. Os vírus geralmente se esquivam mais”.

Fauci e seus colegas provisoriamente partiram da premissa de que esse novo vírus era zoonótico — originalmente transmitido por animais — porque cerca de 75% de todas as infecções em humanos começam dessa forma (sua premissa se revelaria correta). O primeiro passo era buscar pacientes que manifestassem os sintomas informados e levá-los ao hospital para observação.

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    Passada quase uma década desde o surgimento inicial do HIV/aids, ainda não havia tratamentos medicamentosos eficazes e acessíveis. Uma manifestação nos Institutos Nacionais de Saúde em 1990 exigira mudanças na política, originando novos tratamentos medicamentosos.

    Foto de Donna Binder

    Anos agonizantes

    Em um mundo onde o vírus da covid-19 foi identificado semanas após sua descoberta e vacinas eficazes foram desenvolvidas em meses, é fácil esquecer os anos agonizantes entre o surgimento do HIV e um tratamento eficaz. Em julho de 1982, mais de um ano após o surto de HIV na comunidade gay, o CDC relatou casos entre hemofílicos, um indicativo de que a doença era transmitida pelo sangue.

    Um mês depois, em 24 de setembro de 1982, o CDC denominou a nova doença como síndrome da imunodeficiência adquirida (“aids”, na sigla em inglês). Em meados de dezembro, o CDC informou que bebês em Nova York, Nova Jersey e Califórnia apresentavam sintomas de aids. O número crescente de casos na comunidade gay foi bastante devastador.

    “Em meados de 1981, já era possível observar as repercussões àqueles ao nosso redor”, lamenta Gregory Ford, ator e ativista da aids em Washington, D.C. “Algumas pessoas subitamente adoeciam e morriam de pneumonia. Outras simplesmente desapareceriam da comunidade.”

    No início de 1982, “o terror começou”, conta Ford. “Sabíamos que algo estava em curso, mas não fazíamos ideia da magnitude em que havia se alastrado... e como se tornaria devastador.”

    Ficou evidente que os sintomas da aids se manifestavam por toda parte, porém, até que o vírus causador pudesse ser isolado e um método de identificação fosse desenvolvido, os médicos só podiam presumir quantos indivíduos na população em geral circulavam com a doença.

    A boa notícia foi que, em 1983, o vírus HIV foi identificado e um exame de identificação logo foi desenvolvido. A má notícia foi que os exames de identificação revelaram que a aids havia se disseminado amplamente.

    “Estávamos perplexos”, disse Fauci. “E era apenas a ponta do iceberg. Havia inúmeros infectados que não apresentavam sintomas clínicos.”

    Passados meses, a escala global do surto ficou nítida. “Percebemos que não era algo restrito aos Estados Unidos”, lembra Fauci. “Estava presente na Europa e, na realidade, tudo apontava para a África como local de origem.”

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        Embora o Dr. Anthony Fauci (à direita) instruísse regularmente os membros da comissão do presidente Ronald Reagan sobre a aids, ele nunca sentiu que o governo adotou iniciativas de conscientização da população e de financiamento amplo das pesquisas.

        Foto de Diana Walker, The LIFE Images Collection via Getty Images

        É possível assistir a um discurso de Fauci, feito por volta de 1984, no YouTube em uma conferência sobre a aids no NIH, onde havia sido recentemente nomeado diretor do NIAID. Seu cabelo ainda preto surpreende um pouco e seu sotaque do Brooklyn ainda não havia assumido a voz rouca charmosa e calorosa dos últimos anos. Mas a abordagem direta de Fauci — e seu entusiasmo por vezes desconcertante para descrever a natureza de doenças terríveis — já estavam bem definidos.

        “Fico muito animado e empolgado em falar sobre a aids”, afirmou ele do palco, “porque é um dos poucos assuntos abordados por nós em que é preciso mudar o discurso mensalmente devido aos avanços extraordinários na evolução dessa síndrome.”

        Após 50 minutos de informações clínicas, Fauci volta-se ao problema da prevenção — o elemento mais polêmico da era da aids, durante a qual um grande percentual de norte-americanos, incluindo profissionais médicos, insistia em encarar a aids como “uma doença gay”.

        Ironicamente, foi esse rótulo incorreto e prejudicial que impediu muitos membros da comunidade gay de recorrer à medicina convencional durante a expansão da crise, segundo Ford.

        “O fato de se referirem a uma ‘doença gay não fazia sentido para mim”, prossegue ele. “Não é possível confiar em medidas baseadas na premissa de que uma doença ficará restrita a um determinado grupo de pessoas.”

        Como resultado, afirma Ford, uma rede abrangente de autoajuda surgiu dentro da comunidade gay. Por meio de organizações como a Act Up em Nova York e a Us Helping Us em Washington, D.C., as pessoas compartilharam diversos tratamentos não convencionais contra a aids, incluindo dietas e remédios naturais.

        “As pessoas mantinham arquivos enormes repletos de informações sobre os tratamentos”, recorda Ford. “Sugestões como ‘o que é preciso fazer para neutralizar os efeitos negativos de um determinado tratamento’. Basicamente, aqueles acometidos com a doença eram seus próprios experimentos científicos.”

        Em seu discurso no NIH em 1984, Fauci já havia notado a abordagem proativa da comunidade gay em relação ao HIV.

        “A reação dos gays foi extraordinária e encorajadora ao promover a conscientização entre seus membros e irmãos sobre os riscos de certos tipos de contato”, conta ele.

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          Erguendo cartazes com imagens de figuras políticas do governo Reagan, os manifestantes da Act Up fecharam a FDA por um dia inteiro em 1988, acusando o governo Reagan de ignorar a crise da aids. O grupo também exigiu que medicamentos experimentais contra a aids fossem disponibilizados a grupos vulneráveis, como usuários de drogas intravenosas, negros e pobres.

          Foto de Catherine McGann, Getty Images

          Hostilidades

          É possível alegar que Fauci também deveria ter alertado sobre a necessidade de realização de exames antes das doações de sangue e de rastreamento de contatos. Em 1984, Marty Keale, pai de um filho hemofílico chamado Stephen, foi convidado a uma reunião em Los Angeles entre representantes da comunidade de hemofílicos e ativistas gays. Mas essa não foi uma conversa fácil entre aliados. Como os hemofílicos na época utilizavam concentrados de fatores de coagulação derivados de sangue humano e milhares deles estavam se infectando com a aids devido a doações de sangue contaminado, as relações entre os dois grupos estavam tensas.

          “Alguns membros da assistência de saúde de hemofilia fizeram algumas afirmações — provavelmente de modo não intencional — que implicavam culpa por parte da comunidade gay”, lembra Keale. “E a comunidade gay não concordou. Aliás, ficou bastante indignada. Estávamos sentados em uma grande mesa redonda com pessoas furiosas conosco.”

          Com a ajuda de Edward Gomperts, hematologista da Universidade do Sul da Califórnia, um dos principais especialistas no campo da hemofilia, Keale acalmou os ânimos que estavam à flor da pele naquele dia. Mas até mesmo depois de se mudar para Sacramento e se tornar diretor executivo de um centro regional de saúde de HIV/aids, Keale continuou a testemunhar esses confrontos.

          “Acredito que a culpa tenha sido um dos fatores”, afirma ele. “Eu fazia parte de um conselho consultivo comunitário que ajudava a decidir como os recursos federais destinados à aids seriam gastos. Ficou evidente que, homossexuais ou não, naquela época, as pessoas geralmente se sentiam culpadas por terem contraído a aids. E, em vez de assumirem essa culpa, precisavam transferi-la aos outros. Os ânimos podiam ficar muito acalorados entre essas pessoas.”

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            Embora os Estados Unidos estivessem mais atentos a pacientes de aids que fossem homossexuais ou hemofílicos — também predominantemente homens — as mulheres também eram acometidas com a doença. Uma manifestação da “For Women’s Lives” no NIH em 1990 teve como objetivo corrigir essa discrepância.

            Foto de Donna Binder

            Vozes solitárias

            Apesar da espera agonizante por um tratamento enquanto milhares de pessoas morriam, hoje Keale ainda acredita que o NIH fez tudo que estava razoavelmente ao seu alcance naqueles primeiros anos. Fauci foi um dos poucos funcionários de saúde do governo dispostos a falar sobre a aids — e especialmente sobre o fato de que a aids era muito mais do que uma ameaça isolada.

            “Foi um surto amplo”, afirma Fauci. “Contudo, naqueles primeiros anos, os funcionários do governo Reagan não estavam muito abertos a falar sobre o assunto. Não aproveitaram a grande visibilidade da presidência.”

            Fauci não representava a presidência, mas dispunha de autoridade e ficava cada vez mais à vontade diante das câmeras da imprensa. Enquanto o governo Reagan não se pronunciava, ele concedia sucessivas entrevistas pressionando por mais financiamento para pesquisas e tentando explicar a natureza da aids à população. Após Reagan deixar o cargo, ele conta: “desenvolvi relacionamentos muito fortes com os presidentes que sucederam”.

            A batalha contra a aids durou muito mais do que Fauci poderia ter imaginado. Em 1987, a FDA aprovou o AZT para tratar os sintomas da aids, apesar dos efeitos colaterais graves comuns da medicação. No início da década de 1990, foram desenvolvidos tratamentos com medicamentos antirretrovirais — seguidos por terapias multimedicamentosas, cujas sucessoras atualmente oferecem tratamentos contra o HIV com eficácia notável.

            “A jornada nesses últimos 40 anos foi extraordinária”, observa Fauci. “Um dos grandes sucessos da pesquisa biomédica é o tratamento de pessoas com HIV — e a prevenção na forma de fármacos profiláticos.”

            Apesar das reivindicações de “curas” isoladas para o HIV por meio de algumas medicações recentes, Fauci permanece cético.

            “É um feito difícil de realizar”, comenta ele. “A capacidade desse vírus de se integrar às células do genoma dificulta muito sua erradicação no organismo humano. Mas a boa notícia é que há uma pílula única que contém três agentes antirretrovirais que atuam diretamente em três diferentes pontos de vulnerabilidade do ciclo de replicação do vírus, a qual tem apresentado um sucesso espetacular.”

            ‘Você estava sozinho’

            Para os primeiros pacientes com HIV/aids, um armário abastecido de remédios era algo inimaginável.

            Ford e seu parceiro foram diagnosticados com HIV em 1987. “As pessoas nos perguntavam: ‘para que fazer o teste?’”, lembra ele. “Afinal, não havia tratamento. Além disso, os infectados não podiam contar para os outros, exceto talvez aos amigos mais próximos. Ninguém podia contar no trabalho. E certamente ninguém poderia contar à seguradora. De que adiantaria? O infectado estava sozinho, não podia contar com ninguém. Essa era a parte mais difícil.”

            O parceiro de Ford faleceu em 1989. E por uma década inteira após seu diagnóstico, Ford recusou o tratamento médico convencional, até que, por fim, desenvolveu uma infecção oportunista. “Ainda assim, meu médico e eu tivemos longas conversas a respeito”, afirma ele. “Porque eu simplesmente não aceitava o tratamento!”

            Quarenta anos depois que o HIV se tornou conhecido, Ford ainda é uma força no cenário artístico de Washington D.C., onde dirige uma companhia de teatro que oferece uma plataforma para pessoas afetadas pelo HIV.

            É tentador contrapor a recente mobilização acelerada contra a covid-19 nos Estados Unidos com o progresso relativamente lento feito contra a aids, mas Fauci acredita que há pouco espaço para comparação.

            “A covid-19 é um surto respiratório explosivo que colocou todos em risco apenas por respirar perto de alguém”, explica ele. “Foi uma explosão mundial. O HIV foi incubado sem que se percebesse.”

            As diferenças nas abordagens científicas entre o HIV e a covid-19 destacam, em última análise, a natureza imprevisível da virologia.

            “Contra o HIV, existem terapias espetacularmente eficazes, mas nenhuma vacina”, observa Fauci. “E contra a covid-19, há vacinas espetaculares, mas nenhuma terapia de fato eficaz.”

            Fauci, diretor do NIAID há quase quatro décadas, atua na supervisão de respostas a enfermidades como a aids, a covid-19, o ebola, a gripe suína, a SRAG e no ressurgimento do sarampo e da coqueluche. Epidemias não esperam pacientemente, podem surgir a qualquer momento, em qualquer lugar.

            “É por isso que há bons sistemas de monitoramento”, explica Fauci, “para que nada no radar passe despercebido”.

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