Como as bicicletas transformaram o mundo

O coronavírus provocou um boom no transporte sobre duas rodas em muitas partes do mundo. Mas essa não é a primeira vez que as bicicletas são as máquinas protagonistas do mercado.

Por Roff Smith
Publicado 2 de jun. de 2023, 10:10 BRT
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A primeira corrida de bicicleta do Tour de France foi realizada em julho de 1903. Dos 60 ciclistas que competiram, apenas 21 terminaram o extenuante percurso de 2400 quilômetros. O organizador do Tour, Henri Desgrange, ficou famoso por dizer que o Tour de France ideal seria tão difícil que apenas um competidor terminaria.

Foto de The Picture Art Collection Alamy

Se a história não se repete, ela certamente rima. Com a demanda por bicicletas em alta e as nações se preparando para gastar bilhões para redesenhar suas cidades com um novo foco no ciclismo e na caminhada, vale a pena lembrar como o advento da bicicleta no final do século 19 transformou as sociedades em todo o mundo.

Foi uma tecnologia extremamente revolucionária, facilmente equivalente ao smartphone de hoje. Por alguns anos inebriantes na década de 1890, a bicicleta era o que havia de mais moderno – um transporte rápido, acessível e elegante, que podia levá-lo a qualquer lugar que você quisesse ir, a qualquer hora que quisesse, de graça.

Quase todo mundo podia aprender a andar de bicicleta, e quase todo mundo aprendia. O sultão de Zanzibar começou a andar de bicicleta. O mesmo aconteceu com o czar da Rússia. O emir de Cabul comprou bicicletas para todo o seu harém. Mas foram as classes média e trabalhadora de todo o mundo que realmente se apropriaram da bicicleta. 

Pela primeira vez na história, as massas tinham mobilidade, podendo ir e vir quando quisessem. Não havia mais necessidade de cavalos e carruagens caras. O "cavalo do povo", como era conhecida a bicicleta, não era apenas leve, econômica e de fácil manutenção, mas também era rápida nas estradas.

À esquerda: No alto:

Na década de 1890, a bicicleta tornou-se o símbolo da nova mulher, que era independente, progressista e queria ter voz política. Como disse a Godey's, uma revista mensal feminina da época: "de posse de sua bicicleta, a filha do século 19 sente sua declaração de independência proclamada."

Foto de Universal History Archive Universal Images Group, Getty
À direita: Acima:

Trabalhadoras constroem rodas de bicicleta na fábrica da Hercules Cycle, em Birmingham, Inglaterra, na década de 1940. Fundada em 1910, a Hercules, na década de 1930, era uma das maiores fabricantes de bicicletas do mundo, produzindo mais de 1000 bicicletas por dia.

Foto de Hulton-Deutsch Collection Corbis

A sociedade foi transformada. As mulheres ficaram especialmente entusiasmadas, descartando suas incômodas saias vitorianas, adotando roupas mais leves e pegando a estrada em massa. "Acho que a bicicleta fez mais pela emancipação das mulheres do que qualquer outra coisa no mundo", disse Susan B. Anthony em uma entrevista ao New York Sunday World, em 1896. "Eu me levanto e me alegro toda vez que vejo uma mulher andando sobre duas rodas... o retrato da feminilidade livre e sem restrições."

Em 1898, o ciclismo havia se tornado uma atividade tão popular nos Estados Unidos que o New York Journal of Commerce afirmou que a mobilidade estava custando a restaurantes e teatros mais de 100 milhões de dólares por ano em perda de negócios. A fabricação de bicicletas tornou-se um dos maiores e mais inovadores setores dos Estados Unidos. Um terço de todos os pedidos de patentes estava relacionado a bicicletas – tanto que o escritório de patentes dos EUA teve de construir um anexo separado para lidar com todos eles. 

Bicicletas: da curiosidade à mania

A pessoa a quem geralmente se atribui a invenção da bicicleta moderna foi um inglês chamado John Kemp Starley. Seu tio, James Starley, havia desenvolvido o penny-farthing (tipo de bicicleta com uma grande roda dianteira e a traseira pequena) na década de 1870. Suspeitando que poderia haver uma demanda maior por bicicletas se elas não fossem tão assustadoras e perigosas de pilotar, em 1885 o inventor de 30 anos começou a fazer experiências em sua oficina em Coventry com uma bicicleta acionada por corrente com duas rodas muito menores. Depois de testar vários protótipos, ele criou a bicicleta de segurança Rover, uma máquina de 20 kg que se assemelha mais ou menos ao que hoje consideramos uma bicicleta.

Quando foi exibida pela primeira vez em uma exposição de bicicletas em 1886, a invenção de Starley foi considerada uma curiosidade. Mas, dois anos depois, quando foi combinada com o recém-inventado pneu – que não apenas amortecia o passeio, mas também tornava a nova bicicleta de segurança cerca de 30% mais rápida –, o resultado foi mágico.

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    O primeiro astro do ciclismo, o americano Marshall Walter "Major" Taylor, tornou-se profissional ainda adolescente em 1896 e estabeleceu sete recordes mundiais ao longo de sua carreira no ciclismo. Seu recorde para a milha em pé (1:41) perduraria por 28 anos.

    Foto de GL Archive Alamy

    Os fabricantes de bicicletas de todo o mundo se esforçaram para oferecer suas próprias versões, e centenas de novas empresas surgiram para atender à demanda. Na Stanley Bicycle Show, em Londres, em 1895, cerca de 200 fabricantes de bicicletas exibiram 3000 modelos.

    Um dos maiores fabricantes era a Columbia Bicycles, cuja fábrica em Hartford, Connecticut (EUA), podia produzir uma bicicleta por minuto graças à sua linha de montagem automatizada – uma tecnologia pioneira que um dia se tornaria a marca registrada da indústria automobilística. Como empregadora de ponta em um setor em expansão, a Columbia também oferecia a seus funcionários estacionamento para bicicletas, armários privativos, refeições subsidiadas na cantina da empresa e uma biblioteca.

    A demanda insaciável por bicicletas gerou outros setores – rolamentos de esferas, fios, tubos de aço, fabricação de ferramentas de precisão – que moldariam o mundo da manufatura muito tempo depois de a bicicleta ter sido relegada ao departamento de brinquedos. 

    O efeito cascata também se estendeu à publicidade. Os artistas foram contratados para criar belos pôsteres, proporcionando um mercado lucrativo para os processos de litografia recém-desenvolvidos que permitiam a impressão em cores ricas e vivas. As estratégias de marketing tiveram seu início com o comércio de bicicletas na década de 1890.

    Como as bicicletas revolucionaram a sociedade

    Com uma bicicleta, tudo parecia possível, e pessoas comuns partiam em jornadas extraordinárias. No verão de 1890, por exemplo, um jovem tenente do exército russo pedalou de São Petersburgo a Londres, percorrendo uma média de 112 km por dia. Em setembro de 1894, Annie Londonderry, de 24 anos, partiu de Chicago com uma muda de roupas e um revólver com cabo de pérola para se tornar a primeira mulher a dar a volta ao mundo de bicicleta. Pouco menos de um ano depois, ela voltou aos EUA e recebeu um prêmio de 10 mil dólares.

    Na Austrália, tosadores de animais percorriam rotineiramente centenas de quilômetros pelo outback em busca de trabalho. Eles partiam para essas viagens como se fossem passeios no parque, lembrou o correspondente de jornal C.E.W. Bean em seu livro On The Wool Track. "Ele pedia passagem, acendia o cachimbo, colocava a perna sobre a bicicleta e partia. Se ele fosse criado na cidade, como muitos tosadores, era provável que utilizasse casaco preto e chapéu-coco, exatamente como se estivesse indo tomar chá com suas tias."

    E no oeste americano, durante o verão de 1897, o 25º Regimento do Exército dos EUA – uma unidade afro-americana conhecida como Buffalo Soldiers – percorreu 3 mil km, de Fort Missoula, Montana, até St. Louis, Missouri, para demonstrar a utilidade das bicicletas para as forças armadas. Carregando um kit completo e carabinas, pedalando em trilhas ásperas e lamacentas, os Buffalo Soldiers percorriam em média quase 80 km por dia – duas vezes mais rápido do que uma unidade de cavalaria e com um terço do custo.

    O advento da bicicleta afetou praticamente todos os aspectos da vida: arte, música, literatura, moda e até mesmo os genes das pessoas. Os registros paroquiais na Inglaterra mostram um aumento acentuado nos casamentos entre aldeias durante a febre das bicicletas na década de 1890. Os jovens recém-liberados percorriam o campo à vontade, misturando-se na estrada, encontrando-se em vilarejos distantes.

    O compositor inglês Henry Dacre fez um grande sucesso nos dois lados do Atlântico em 1892 com Daisy Bell e seu famoso refrão "a bicycle built for two" (uma bicicleta feita para dois). O escritor H.G. Wells, um ciclista ávido e um observador social perspicaz, escreveu vários "romances sobre ciclismo", narrativas gentis centradas nas possibilidades românticas, libertadoras e de dissolução de classes desse novo e maravilhoso meio de transporte.

    Jovens ciclistas dão uma volta no Central Park de Nova York em 1942. Depois de conquistar o mundo durante a década de 1890, as bicicletas logo foram relegadas ao departamento de brinquedos, à medida que os automóveis tomavam conta das estradas.

    Foto de the Library of Congress

    Wells não foi o único visionário que viu um papel para a bicicleta na formação do futuro. "O efeito [das bicicletas] no desenvolvimento das cidades será nada menos que revolucionário", disse um escritor em uma revista americana de sociologia em 1892. Em um artigo intitulado Economic and Social Influences of the Bicycle (Influências econômicas e sociais da bicicleta), o escritor previu cidades mais limpas, mais verdes e mais calmas, com moradores mais felizes, mais saudáveis e mais voltados para o exterior. 

    Graças à bicicleta, escreveu ele, os jovens "veem mais do mundo e são ampliados pelo contato. Enquanto, de outra forma, eles raramente iriam além da distância de um passeio de suas casas, na bicicleta eles estão constantemente circulando por muitas cidades vizinhas, familiarizando-se com condados inteiros e, nas férias, não raro explorando vários estados. Essas experiências produzem um aumento de energia, autoconfiança e independência no caráter...."

    Bicicletas transformaram cidades

    A influência política de milhões de ciclistas e de um dos maiores setores do país levou a rápidas melhorias nas ruas das cidades e estradas rurais, pois os ciclistas literalmente abriram caminho para a ainda imprevista era do automóvel. O bairro do Brooklyn, em Nova York, abriu uma das primeiras ciclovias do país em 1895, uma rota do Prospect Park até Coney Island. Cerca de 10 000 ciclistas a utilizaram no primeiro dia.

    Dois anos depois, a cidade de Nova York promulgou o primeiro código de trânsito do país em resposta a um número crescente de ciclistas. O comissário de polícia da cidade, Teddy Roosevelt, introduziu policiais montados em bicicletas para prender ciclistas acima da velocidade permitida, pois o “cavalo do povo ainda” era a coisa mais rápida na estrada.

    Mas não por muito tempo. Antes do final da década, os engenheiros do comércio de bicicletas de ambos os lados do Atlântico haviam descoberto que rodas com raios, correntes e rolamentos de esferas poderiam ser combinados com motores para criar veículos ainda mais rápidos – não tão silenciosos quanto a bicicleta nem tão baratos, mas divertidos de dirigir e lucrativos de fabricar. 

    Em Dayton, Ohio, dois mecânicos de bicicletas – os irmãos Wilbur e Orville Wright – estavam explorando a ideia de uma máquina voadora mais pesada que o ar, prendendo asas a bicicletas para testar as possibilidades aerodinâmicas e financiando suas pesquisas com os lucros de sua loja de bicicletas.

    De volta à cidade de Coventry, no norte da Inglaterra, James Kemp Starley, cuja bicicleta de segurança Rover deu início a tudo na década de 1880, morreu repentinamente em 1901, aos 46 anos. Naquela época, sua empresa estava deixando de lado a humilde bicicleta para produzir motocicletas e, por fim, automóveis. Parecia ser o caminho do futuro. Nos Estados Unidos, outro ex-mecânico de bicicletas, chamado Henry Ford, estava se saindo muito bem nisso.

    Roff Smith é escritor, fotógrafo e colaborador regular da National Geographic. Ele também é um exímio ciclista de expedição que compartilha suas aventuras no site The Art of the Ride e no Instagram @roffsmith.

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