Antártida – Verão no sul do planeta

Fotógrafo parte em expedição ao continente gelado com cientistas em busca de respostas às perguntas relativas às mudanças climáticas. E nos conta como a Antártida derrete.

Por Marcio Pimenta
Publicado 20 de mar. de 2018, 19:33 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Um filhote de pinguim-gentoo (Pygoscelis papua) faz carinho na mãe após ser alimentado.
Um filhote de pinguim-gentoo (Pygoscelis papua) faz carinho na mãe após ser alimentado.
Foto de Marcio Pimenta

Isso acontece com todo mundo. De uma maneira ou de outra nos envolvemos pouco a pouco e de uma forma tão natural que só nos damos conta que estamos numa situação estranha quando já passamos da metade do caminho e é quando nos perguntamos como tudo aquilo aconteceu. Como foi que tudo isso começou?

Era uma quinta-feira de janeiro de 2018, eu trabalhava no meu mais novo projeto fotográfico. Um projeto de longo prazo que levará anos para ser concluído e ao qual irei me dedicar de forma quase exclusiva. Acabara de retornar do Chile, onde fui documentar o avanço do deserto em direção a capital do país, Santiago. Estava selecionando as fotos que irão compor o livro e estudando o tema da desertificação no planeta – uma das consequências das mudanças climáticas. O telefone tocou. Era da Marca Chile e o convite era simples: “Quer fazer parte de uma expedição científica na Antártida?”. Fiquei mudo por alguns segundos e antes mesmo que eu respondesse a interlocutora seguiu, “você tem que estar aqui na terça-feira”. Eu disse sim e desligamos. Liguei para a minha namorada e informei a ela do convite – e da ausência nos próximos dias. E como sempre faz todas as vezes, foi generosa e apoiou incondicionalmente o meu trabalho. “Maravilhoso! Quando chegar em casa te ajudo a organizar tudo!”, respondeu. Naquela mesma noite fomos ao aniversário de um amigo português e comentei com ele, “estou indo para a Antártida”. Ele me olhou de forma bastante séria e me disse, “é como ir para a Lua!”. Apenas sorri com aquela graciosidade.

A explicação de como vim parar na Antártida tem sua origem em uma única palavra: serendipitia, e que é definida no Wikipédia como “descobertas afortunadas feitas, aparentemente, por acaso”. É muito utilizada na ciência, já que em geral eles não acreditam em sorte ou azar. Como fotógrafo e explorador, a Antártida sempre teve a minha atenção e fascínio. Mas tudo o que eu sabia sobre um dos lugares mais selvagens do planeta vinha das leituras de livros e tardes de conversas com o explorador Amyr Klink, e claro, relatos da incrível viagem de Ernest Shackleton – talvez a maior das aventuras do homem na face da Terra – e os diversos artigos sobre os impactos das mudanças climáticas no continente gelado.

De volta ao Chile, em Punta Arenas, uma das cidades mais austrais do planeta, me encontrei com os demais membros da expedição liderada pelos cientistas Marcelo Leppe e Renato Borrás, a 54a organizada pelo instituto. Durante todo o verão, mais de 200 cientistas apoiados pelo instituto irão explorar a Antártida, seguindo as recomendações do Comitê Científico para Pesquisas Antárticas (SCAR, na sigla em inglês) em busca de respostas às perguntas relativas às mudanças climáticas sobre temperatura das águas, resiliência das espécies endêmicas e o degelo.

À primeira vista, a Antártida é uma imensidão de brancura ofuscante. No entanto, quando o avião que levava a nossa equipe de expedição, um BAE RJ 85, sobrevoa em baixa altitude a Península Antártica vejo meu primeiro iceberg, um pedaço de gelo da altura de um edifício de 15 andares cheio de contrastes de branco, azul e vermelho, boiando nas águas do mar azul-petróleo da Passagem do Drake e próximo a Ilha Elefante (local onde Schackleton partiu num pequeno barco, o James Caird, até a Geórgia do Sul em busca de ajuda para a sua tripulação. Todos foram salvos.). Poucos minutos depois pousamos na Base Presidente Eduardo Frei Montalva, na ilha Rei George (62° 12′ 57″ S 58° 57′ 35″ W), na Península Antártica. O avião abre as portas e um microexército de homens vestidos com grossas roupas térmicas e óculos antinevoeiro que mais pareciam astronautas conduzindo pequenos veículos com esteiras de trator se aproximam. Olho mais em volta e não vejo nada além de pedras, mantos de gelo e contêineres. “Estou na Lua”, uso a frase do meu amigo português com seu humor ímpar.

Para se ter uma ideia do quanto ainda pouco conhecemos a Antártida, ela só fez sua “estreia” nos mapas em 1531, uma década depois do explorador português Fernão de Magalhães encontrar a passagem entre o Oriente e o Ocidente que ficou conhecida como o Estreito de Magalhães. Mas, em tese, não resta mais nenhum paraíso intocado no mundo. Lugares que povoam nossa imaginação já passaram por tantas transformações diretas e indiretas que jamais poderão recuperar sua condição “original”. Justifico o uso das aspas para definir “original” porque uma coisa é certa sobre o nosso planeta: tudo muda. O mundo como nós conhecemos já sofreu diversas transformações. Diversos “portais do tempo” foram atravessados e frequentemente um tipo de clima dá lugar a outro. O que definimos como “original”, é apenas como conhecemos a Terra no período de tempo que alguns cientistas definem como antropoceno – quando as atividades humanas começaram a ter um impacto global significativo no clima da Terra e no funcionamento dos seus ecossistemas, enfim, quando começamos a Revolução Industrial. E no nosso período aqui estamos destruindo as condições favoráveis que permitiu o desenvolvimento da nossa espécie como a conhecemos.

Contudo, ainda existem lugares em sua natureza bruta. Certamente por ser um dos lugares mais inóspitos da Terra e graças ao Tratado da Antártida, quando diversos países concordaram em 1959 a suspender por tempo indeterminado suas pretensões de ocupação e usar este espaço na Terra para exploração científica em regime de cooperação internacional, a Antártida apresenta-se como uma das nossas ultimas oportunidades em não perdermos a associação íntima como o nosso ecossistema.

Em minha primeira saída exploratória, acompanho duas cientistas da Universidade Austral do Chile, Daniela Soto e Dayane Osman, que estão tentando entender a estrutura comunitária de microalgas e bactérias na neve. É quando percebo o colorido da neve. Toda aquela imensidão branca dá lugar a tons de azul, vermelho e verde. Daniela, a bióloga marinha, explica que há “neve vermelha e neve verde” cujas colorações se devem aos estados fisiológicos das microalgas que habitam estas neves. A verde deve sua cor à clorofila e a vermelha aos pigmentos que produzem microalgas como resposta ao estresse ambiental. “As microalgas fixam carbono da atmosfera”, recorda ela. “E as bactérias se alimentam deste carbono produzido pelas microalgas”. O que nos leva ao fácil entendimento de que estas microalgas são fundamentais para os ciclos globais de carbono e que por tanto o derretimento da neve destruiria o seu habitat natural. E é justamente o carbono o ponto central do maior fator de risco a existência humana no planeta.

Todos os anos os líderes das maiores economias do planeta e de economias em desenvolvimento se reúnem para discutir temas centrais para a humanidade. Antes da reunião, eles enviam uma pergunta simples para especialistas em negócios, líderes de governos, acadêmicos, organizações sem fins lucrativos e outras instituições internacionais: em uma escala de 1 a 5, qual a probabilidade e o impacto potencial dos eventos que cercam a humanidade? Até alguns anos atrás, as guerras, o terrorismo e a instabilidade social lideravam as apostas. Mas este cenário mudou drasticamente nos últimos anos. Em seu último relatório (2018), dos 10 dez maiores riscos listados por especialistas que teriam maior impacto na humanidade e no mundo, 7 estão relacionados diretamente com as mudanças climáticas. São eles: eventos climáticos extremos, desastres naturais, fracasso na adaptação às mudanças climáticas, crise hídrica, crise alimentar, perda de biodiversidade e colapso de ecossistemas e epidemias de doenças infecciosas. Migrações involuntárias em grande escala também pode ser considerada uma preocupação relacionada ao clima, mas a pesquisa não faz distinção entre refugiados de guerra ou ambientais, ou ambos. As exceções são a proliferação de armas de destruição em massa e ataques cibernéticos. E todos nós somos culpados por isso. E pior, estas mudanças causarão colapsos e não será possível voltarmos ao estado anterior – como no caso do derretimento dos polos devido ao aquecimento global.

Basicamente estamos ignorando o que aprendemos na escola. Lá, aprendemos que por meio da fotossíntese as plantas e algas absorvem o CO2 que produzimos e o utilizam para gerar sua própria energia, criando oxigênio como resultado deste processo. Um ciclo simples e autossustentável que forma a base da vida na Terra e que propicia ao Homem as condições perfeitas para a sua evolução. Aprendemos lá que se não fosse pela ação de plantas e algas, rapidamente nos sufocaríamos de CO2. Os planetas Marte e Vênus, por exemplo, são considerados planetas “mortos”, pois o CO2 forma a maior parte da atmosfera. Em Vênus, o CO2 forma cerca de 98% da atmosfera. A temperatura média por lá? 477ºC. Portanto, quanto mais emitimos CO2 na atmosfera mais quente o planeta irá ficar e menos habitável ele será.

Os resultados das pesquisas conduzidas pelas cientistas Daniela e Dayana na Antártida não possuem resultados conclusivos, portanto ainda não sabemos como o aumento da temperatura está afetando a proliferação das microalgas e os impactos na capacidade de absorção do carbono. O que sabemos hoje é que nossas previsões estavam erradas e estudos recentes mostram que o aquecimento está mais acelerado do que se pensava e o derretimento do gelo avança de forma preocupante e de forma irreversível.

A Antártida é um continente congelado cercado por um oceano imensamente rico. E na base alimentar de toda esta riqueza está um plâncton microscópico. Apesar dos meses de escuridão no inverno, ele prolifera no contato do gelo com a água do mar. E serve de alimento para um outro pequeno animal, o krill, o alimento preferido de baleias, algumas espécies de pinguins e focas. Alonso Ferrer, um bioquímico que conheci aqui na Antártida, me conta que como o gelo está derretendo a uma velocidade jamais vista, os plânctons não se desenvolvem, e portanto, toda a cadeia alimentar é atingida, resultando na diminuição dos predadores naturais. As populações de krill diminuíu 80% desde a década de 1970 e em 2017, uma catástrofe ocorreu: uma colônia de cerca de 40.000 pinguins-de-adélia (Pygoscelis adeliae) sofreu um "evento catastrófico de criação" – todos, exceto dois, morreram de fome naquele ano. É a segunda vez em apenas quatro anos que em mais de 50 anos de observação este fenômeno foi detectado. E um dos motivos foi que a ausência de krill nas águas próximas ao continente forçaram os pinguins a nadar maiores distâncias resultando em exaustão e ausência prolongada dos filhotes que sofrem de fome e ficam expostos aos predadores. E como o aumento do degelo só aumenta, a casa natural destas espécies diminui a cada ano. No período da nossa expedição, entre janeiro e fevereiro deste ano, a extensão de gelo marinho da Antártida esteve 17,4% menor que a média dos anos entre 1980 e 2010. É como se a cada ano o apartamento ou casa onde moramos diminuísse gradativamente de tamanho.

Outra espécie que contribui bastante no processo de fotossíntese são os musgos. Devidamente autorizados pela armada chilena – sim, ninguém sai da base ou realiza qualquer operação científica sem permissão dos militares ou do diretor científico, que recomendam rádio, um guia experiente, e como nossas mamães, que levemos um casaquinho porque pode vir uma frente fria a qualquer momento –, subimos num bote e o marinheiro Pedro Ulloa nos leva até o glaciar Collins entre borrifos de água salgada e gelada. Após escalar algumas pedras e me desviar das skuas (Catharacta sp.) que fazem rasantes sobre a minha cabeça como um aviso de que devo me afastar dos seus ninhos, encontro a Dra. Marisol Pizarro, da Universidade de Santiago do Chile. Ela posiciona pequenos octógonos de vidro para formar uma pequena estufa que irá simular o aquecimento da Terra nos próximos anos, algo em torno de 2 a 5ºC. O objetivo é estudar a fisiologia do stress nas espécies Sanionia uncinata e Polytrichastrum alpinum. Além do processo de fotossíntese, estes musgos são importantes porque alimentam os animais microscópicos, servem de abrigo aos mamíferos e protegem o solo da erosão. Até o momento, os estudos mostram que os musgos estão reagindo bem e isto pode ser explicado por serem mais primitivos, logo, mais resistentes. E a depender dos resultados obtidos nos próximos anos, seus genes poderão ser transplantados para outras plantas e até mesmo na agricultura, ajudando o Homem no processo de aclimatização.

Em um fim de tarde encontro com o Dr. Renato Borrás, que está pesquisando as fontes de energia do lobo-marinho (Arctophoca gazela) e o uso de fontes alternativas. Filosofamos sobre o estado atual dos debates sobre as mudanças climáticas. Foi com ele que aprendi sobre o conceito de serendipitia. Nos surpreendemos que de alguma maneira nos coloquemos com uma visão egocêntrica sobre a vida da Terra. Quando nos referimos a “adaptação” – quando deveríamos usar a palavra aclimatização – esquecemos que os primeiros representantes da nossa espécie caminharam pela Terra por volta de 150 mil anos atrás, na África, e eles evoluíram de ancestrais que viveram por mais de 2 milhões de anos. Adaptar-se exigirá de nós uma evolução que nos tomará milhares e milhares de anos, um prazo que não temos a nossa disposição, considerando que até 2050, quando grandes cidades estarão inundadas pela elevação dos oceanos. E como mais de 70% das pessoas que vivem na Terra hoje ainda estarão vivas em 2050, o nosso desafio, será justamente nos aclimatizar para que gerações futuras possam lentamente se adaptar a um novo cenário climático.

Andrea Sepulveda, uma estudante de engenharia física da Universidade de Santiago do Chile, faz uma brincadeira comigo. Ela me pergunta qual a previsão do tempo para os próximos dias na cidade do Rio de Janeiro. Pergunto a assistente Siri, do iPhone, e ela me informa que a Cidade Maravilhosa estará com 32º em média. Andrea me diz que ela e seus companheiros pesquisadores, Camila Ruiz e Juan Crespo, todos os dias a contribuem com informações que ajudam a levantar estes dados. Eles me convidam até o laboratório que fica no alto de uma pequena montanha. De lá, as oito horas da manhã em ponto, eles soltam um balão de hélio que carrega uma sonda que irá captar perfis de nuvens como humidade, pressão, altura e velocidade do vento (intensidade e direção). A medida que o balão sobe – e até o momento em que ele estoura – a sonda envia os dados para a TARP (Transport Antarctic Research Plataform), que por sua vez envia para a Global Telecommunicarion System, até chegar ao nosso telejornal diário ou aos nossoS dispositivos móveis. Mas o projeto que eles estão conduzindo, o Of Low Clouds Over the Antarctica Peninsula and the west Antarctic Ice Sheet(wais), tem um objetivo ainda maior. Eles estão medindo também a radiação que chega a superfície terrestre. O equilíbrio que vivemos hoje está em risco. Juan Crespo, da Direção Meteorológica do Chile, explica que uma amplitude maior de temperatura entre os dois polos, leva a uma diferença de pressão maior, isso irá alterar os ventos e aumentar suas forças. Aumentará também a temperatura nos oceanos (combustível que explica o aumento da quantidade e intensidade dos furacões nos Estados Unidos, por exemplo) e deve alterar as correntes marinhas, afetando colheitas nos obrigando a mudar nossa alimentação.

A presença de jovens cientistas, como Andrea, Juan e Camila, brilha os olhos do Marcelo Leppe, diretor do Instituto Antárctico Chileno. Ele recém assumiu sua função, mas vê de forma bastante positiva o cenário para pesquisadores latino americanos da biologia molecular a ecologia marinha, passando pela geologia e ecologia terrestre. Segundo ele, desde o ano 2000, pesquisadores da América Latina aumentaram a presença em revistas científicas internacionais em até cinco vezes. “O Peru acabou de reformar seu barco para expedições na Antártida, a Colômbia está chegando”, diz ele. De fato, enquanto estive na base Escudero, sede no instituto na Antártida, a armada colombiana e uma comitiva do governo estiveram pela primeira vez em solo antártico. E há muito mais por vir. Em parceria com instituições de pesquisa do Japão, o Chile está criando em Punta Arenas o Centro Antártico Internacional com propósitos de pesquisa científica, claro, mas também para levar ao público conhecimento sobre as espécies que até então desconhecidas. E o melhor: baleias, leões marinhos, pássaros e os simpáticos pinguins estão descartados de viverem em cativeiro.

Subo por uma manta de gelo ao lado do Renato Borrás. É preciso muito cuidado, pois a qualquer momento uma fenda pode se abrir e despencarmos até o fundo. É um raro dia de Sol que com sua luz contrasta o azul no gelo que forma o glaciar Collins. Paramos para escutar o ruído do gelo se rompendo como se fosse um terremoto. Não há nenhuma baleia à vista na baía neste momento. Seguimos contemplando. Um lobo-marinho rosna para nós. Um casal de pinguins se exibe como se estivessem pedindo para serem fotografados. “É um lindo dia de verão na Antártida”, diz Renato. “E este é o problema, é um lindo dia de verão na Antártida.”

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