Conheça três iniciativas lideradas por mulheres para salvar o Cerrado

Reportagem conversou com uma geofísica e duas biólogas que trabalham para monitorar queimadas e desmatamento, recuperar vegetação e conservar espécies ameaçadas.

Sombra de balão no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, região nordeste de Goiás. Levantamento do MapBiomas mostra que resta apenas 54,4% da vegetação original do Cerrado.

Foto de Marcelo Camargo, Agência Brasil
Por Adele Santelli
Publicado 28 de nov. de 2021, 15:55 BRT, Atualizado 29 de nov. de 2021, 18:49 BRT

Desde 2012, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) não registrava taxas tão altas de desmatamento no Cerrado. Entre 1985 e 2020, a área destruída foi maior do que o estado de São Paulo. Nesse mesmo período, segundo levantamento do MapBiomas, 36% do bioma virou cinzas – e de toda área queimada no Brasil, 44,9% era parte do Cerrado. 

Mas, nadando contra a corrente, mulheres cientistas de diferentes campos de pesquisa têm liderado projetos que visam conservar o bioma e alterar o rumo de destruição imposto ao Cerrado. A reportagem conversou com três delas: a geofísica Renata Libonati e as biólogas Camila Prado Motta e Gislaine Disconzi.

Renata Libonati estuda justamente a dinâmica do fogo e monitora as queimadas no bioma há mais de 15 anos. Ela é coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ) e pesquisadora associada da Universidade de Lisboa.

A questão do fogo no Cerrado é delicada, e para compreendê-la é necessário diferenciar as queimas natural e destrutiva. A primeira é o fogo iniciado por atividade vulcânica, inexistente no caso do Brasil, ou por raios. Já o fogo destrutivo se caracteriza por incêndios que fogem do controle, sobretudo nos picos das épocas secas, quando ganham grandes proporções e intensidade, originados em grande parte por ação humana. Diferente de florestas tropicais – como a Amazônia e a Mata Atlântica, biomas sensíveis às queimadas –, o Cerrado depende dessas queimas naturais. No entanto, o que vem acontecendo na mais rica savana do planeta está longe de ser um fogo saudável.

“O que temos observado é que a ação humana tem alterado de forma significativa o regime de fogo, e isso é muito claro no Cerrado”, diz Libonati. “Há um padrão bem típico de fogo antrópico com pico na época seca: muito intenso, extenso e que traz prejuízos de forma recorrente para o ecossistema.”

Durante seu doutorado, Libonati trabalhou para melhorar a quantificação e o monitoramento de áreas afetadas por fogo e desenvolveu o primeiro índice regional de queimadas no Brasil a partir de cicatrizes no solo, começando por um modelo particular para o Cerrado. O sistema identifica com mais precisão as áreas afetadas pelo fogo no país. Até então, havia apenas produtos globais, sem especificidade para a região.

Junto da equipe do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais, a geofísica Renata Libonati participa de uma queima controlada em Cachoeira Paulista (SP) para validar os sistemas de sensoriamento remoto de focos de calor.

Foto de Lasa, Divulgação

Mais tarde, já no Inpe, ela trabalhou na validação de um algoritmo que identifica as cicatrizes utilizando dados de 1 km de resolução e criou o primeiro produto operacional, ou seja, feito de forma sistemática, de áreas queimadas no Brasil: o AQM-1km. O programa traz as taxas mensais e anuais de áreas queimadas de todos os biomas nos últimos 20 anos. Diferentemente dos sistemas de alerta, o AQM-1km é usado para definir uma linha do tempo e possíveis padrões de ocorrências do fogo. A informação leva, em média, entre 30 e 90 dias para estar disponível.

Os satélites trabalham, basicamente, com a identificação de quatro sinais de fogo. Dois deles aparecem durante a ocorrência do incêndio: a chama e a fumaça, que revelam o local pontual do fogo. Os outros dois são observados após a queima: depósito de carvão e cinzas na superfície e alteração da cobertura vegetal. Estes últimos permitem quantificar a área afetada – é o chamado produto de área queimada.

A partir desses dados dos satélites, pesquisadores criam sistemas de monitoramento. Anteriormente, havia três tipos: os alertas de focos em tempo quase real, utilizados em gestão de emergência e ações de combate; as taxas de queima por período, a fim de se obter um contexto histórico; e os índices que mostram o tamanho da área queimada. Os dois primeiros tipos são obtidos a partir dos sinais de chama e fumaça, e o terceiro, a partir dos depósitos de carvão e cinzas e da alteração da cobertura vegetal. O Inpe começou a desenvolver esses sistemas de monitoramento ainda nos anos 1980 – alguns são operados até hoje e serviram de referência para vários países.

No entanto, o grupo de pesquisa de Libonati identificou a necessidade de criar um alerta de áreas queimadas em tempo real. “Essa informação é muito importante, porque focos de calor são pontuais – o satélite só vai pegar se passar na hora do fogo”, diz ela. “É diferente da área queimada, pois se o satélite passar depois que o fogo acabou, mesmo assim a área afetada será contabilizada, já que a cicatriz fica ali por algum tempo.”

De acordo com a pesquisadora, a informação era uma necessidade para diferentes órgãos no Brasil, como o Prevfogo, ICMBio, Ibama e o Corpo de Bombeiros, porque permite, com apenas 12 horas de atraso, um melhor planejamento para tomadas de decisão, seja em termos de combate, de deslocamento de pessoal ou manejo integrado do fogo. Antes, era preciso esperar até três meses pelos dados, tempo muitas vezes longo demais para tomadas de decisão urgentes.

Através do projeto Andura, uma parceria da UFRJ e a Universidade de Lisboa, Libonati passou então a trabalhar com sensores mais modernos e desenvolveu melhorias nos tipos de análises realizadas. Daí surgiu o sistema Alarmes, coordenado por ela desde 2020. O Alarmes conta com apoio do Fundo de Parcerias para Ecossistemas Críticos (CEPF), que há cinco anos atua no Brasil com a missão de promover a conservação e restauração em áreas biológicas únicas e ‘hotspots’ de biodiversidade ameaçados. O programa é financiado pela Agência Francesa para o Desenvolvimento, Conservação Internacional, União Europeia, Fundo para o Meio Ambiente Global, Governo do Japão e Banco Mundial.

“Os agentes em campo atuavam basicamente às cegas. Quando há uma área queimada recente, ela age como uma barreira para a propagação do fogo. Se já queimou de um lado, muito provavelmente o fogo vai para o outro, que ainda tem biomassa”, diz Libonati. “Com acesso à essa informação de forma rápida, é possível fazer um bom planejamento de onde colocar mais contingente e equipamentos, por exemplo.”

Como cientista convidada na Universidade de Lisboa, ela testou o sistema para diversas regiões do globo acometidas por queimadas, como Califórnia, África, Austrália, Brasil e Península Ibérica. Já com o algoritmo desenvolvido, no início de 2020, Libonati criou um protótipo para aplicação no Cerrado, que conta com um modelo refinado e adaptado para as peculiaridades do bioma, baseado em informações que o grupo de trabalho acumulou ao longo das últimas duas décadas. Para isso, utiliza informações como tipo de vegetação e de solo, uso e cobertura, intensidade do fogo e data de ocorrência.

“A importância de ter um sistema como esse específico para o Cerrado”, defende Libonati, “é que só teremos políticas públicas ou qualquer ação de gestão e controle se conhecermos a história detalhada do regime de fogo daquela região.” O modelo foi além e permitiu, por exemplo, adaptações às características do fogo do Pantanal, para utilização nas fortes queimadas que destruíram aproximadamente 30% do bioma em 2020. Atualmente, o sistema vem sendo expandido também para a Amazônia.

O trabalho de Libonati é essencial em um país que, em cada um dos últimos 36 anos, queimou uma área maior que a Inglaterra. Um quinto do território brasileiro foi queimado desde 1985.

Semeando esperança

Em junho desse ano começou, oficialmente, a Década da Restauração de Ecossistemas, que deve se estender até o ano de 2030. A iniciativa liderada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura pretende estimular e apoiar, em todo o mundo, ações sustentáveis que visem recompor ambientes naturais degradados pelas diferentes atividades humanas, proteger os recursos naturais, devolver a capacidade produtiva do solo, gerar empregos nos diversos setores das cadeias restauradoras e envolver diferentes comunidades em atividades que garantam segurança alimentar. De acordo com a organização, a meta é recuperar pelo menos 1 bilhão de hectares.

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      À esquerda: No alto:

      A muvuca permite planejar a estratégia a ser utilizada a partir do entendimento da composição original da área de interesse. “Se o objetivo final é ter um campo nativo, por exemplo, muda-se a proporção de formas de vida na semeadura, coloca-se mais gramíneas e menos árvores, ou nenhuma”, diz a bióloga Camila Prado Motta .

      À direita: Acima:

      Campo de sempre-vivas no Cerrado goiano. A técnica de recuperação conhecida como muvuca é importante justamente porque favorece o crescimento de espécies gramíneas, essenciais para a diversidade do bioma.

      fotos de Dudu Coladetti

      A bióloga Camila Prado Motta posa para foto junto de sacas de semente no galpão da Rede de Sementes do Cerrado em Alto Paraíso, Goiás.

      Foto de Rede de Sementes do Cerrado, Divulgação

      E não há momento mais propício e urgente para se pensar em restauração no Brasil. Em 2015, durante a Conferência Climática da ONU, em Paris, o país se comprometeu a recuperar 12 milhões de hectares até 2030. De lá para cá, no entanto, pouco mais de 0,5% da meta foi atingida, segundo dados do Observatório da Restauração e Reflorestamento. Ademais, as altas taxas de desmatamento em todo o território nacional têm deixado cientistas e ambientalistas em alerta.

      Relatório lançado pelo MapBiomas mostrou que o Cerrado sofreu quase um terço de todo o desmatamento no Brasil em 2020. Foram 4.321,83 Km2 perdidos – cerca de 80% dentro de propriedades privadas.

      Em 2001, um projeto pioneiro que contou com apoio do Fundo Nacional do Meio Ambiente criou oito redes de sementes nativas de diferentes biomas – Amazônia, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e Cerrado. Embora considerado inovador, apenas duas redes do projeto original continuam existindo.

      A bióloga Camila Prado Motta lidera uma delas. Ela é presidente e gerente-técnica de projetos da Rede de Sementes do Cerrado, que também conta com apoio do CEPF e cujo principal objetivo é conectar os diferentes elos da cadeia da restauração ecológica – do coletor de sementes ao mercado, passando por governos e a academia. Para isso, Motta desenvolve capacitações para implementação técnica da semeadura direta, ou muvuca, em processos de restauração ecológica e viabiliza a comercialização das sementes.

      Baseada no conhecimento tradicional indígena, a técnica da muvuca foi desenvolvida pelo Instituto Socioambiental e Rede de Sementes do Xingu há mais de duas décadas. Antes focada na transição entre Amazônia e Cerrado, sobretudo para espécies arbóreas, a prática foi adotada em ecossistemas exclusivamente de Cerrado por pesquisadores do ICMBio, Universidade de Brasília e Embrapa em 2012. Mas como o bioma é, na verdade, um mosaico de vegetações com várias espécies gramíneas, a restauração é ainda mais desafiadora. Por isso, durante muito tempo, não se sabia se a muvuca funcionaria para o Cerrado.

      “Hoje a gente sabe que é possível, sim”, diz Motta. “Mas ainda temos que descobrir como fazer a restauração em diferentes condições, por isso a pesquisa continua.” A aposta foi certeira, especialmente se levada em conta a atual técnica padrão de restauração do bioma, baseada no plantio de mudas. “Quando plantamos mudas, estamos plantando só árvores, não estamos fazendo um Cerrado, mas um bosque.”

      As sementes são coletadas por comunidades tradicionais no entorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e no território da comunidade Kalunga, em Cavalcante, Goiás. Para garantir a sustentabilidade da planta e o retorno necessário para o ambiente e a fauna, podem ser coletados até 20% das sementes de um mesmo indivíduo. Atualmente, são cerca de 80 coletores, em sua maioria, mulheres. Desde 2017, a Rede de Sementes do Cerrado conta com o apoio do CEPF e uma parceria com a associação Cerrado de Pé.

      Pesquisas acadêmicas, outro viés de atuação do projeto, ajudaram a consolidar uma lista de 68 espécies de ampla ocorrência no Cerrado – entre gramíneas, árvores, arbustos e palmeiras – apropriadas para a restauração do bioma. O desenho da restauração da semeadura é pensado levando em consideração a sucessão ecológica das espécies que serão plantadas. “Temos espécies que dominam e ocupam os sistemas nos primeiros anos e morrem, outras vão ocupar esse espaço e a sucessão vai acontecendo ao longo do tempo”, explica Motta. “Todas as espécies são plantadas juntas, e a ideia é basicamente que uma ajude a outra.”

      A muvuca permite planejar a estratégia a partir da composição original da área de interesse. “Se o objetivo final é ter um campo nativo, por exemplo, muda-se a proporção de formas de vida na semeadura: coloca-se mais gramíneas e menos árvores, ou nenhuma”, diz Motta. “É pensado conforme a fisionomia do Cerrado.”

      A técnica da semeadura traz outras vantagens. Ela é mais barata de implementar, já que descarta a etapa da produção de mudas em viveiros e elimina anos de manutenção e inclui as comunidades tradicionais.

      “Um dos maiores ganhos que a técnica traz é, sem dúvida, o componente social”, defende Motta. “Em vez de desmatar uma área, o coletor passa a plantar, porque aquilo vai gerar renda para ele. O Cerrado passa a ter valor em pé.”

      Hoje, a demanda por sementes é concentrada em proprietários rurais e empreendedores de obras de infraestrutura – como linhas de transmissão, barragens e estradas – que precisam recuperar áreas por exigência legal. Em menor escala, há procura para pesquisas acadêmicas e por pequenos produtores que, além das obrigações da lei, entendem a importância ecológica das matas, inclusive para a produção de água, fundamental para qualquer cultivo.

      Além disso, segundo a pesquisadora, as sementes nativas do Cerrado têm começado a despertar interesse de paisagistas urbanos. “É preciso quebrar o paradigma de que o Cerrado é só mato”, diz Motta. “O Cerrado tem inúmeras belezas. Da nossa lista de espécies, metade tem potencial de paisagismo.”

      Para os próximos anos, a iniciativa pretende replicar o modelo de sucesso da Chapada dos Veadeiros para outros lugares do Cerrado, alinhando oferta e demanda dos produtos por meio do Redário, movimento de união das redes de sementes, e a Araticum, articulação multisetorial, que conta com participação de mais de 40 organizações. O objetivo é ganhar escala de restauração no bioma.

      Pato embaixador das águas

      Com menos de 250 indivíduos restantes na natureza, o pato-mergulhão está na Lista Vermelha de espécies ameaçadas de extinção da IUCN, classificado como criticamente ameaçado. “O pato-mergulhão é uma espécie brasileira, como a ararinha-azul. É um bicho que atualmente só vive no Cerrado, então temos que divulgar ao máximo para que as pessoas o conheçam”, defende a bióloga Gislaine Disconzi, pesquisadora do Centro de Estudos do Cerrado da Universidade de Brasília, associada da Fundação Mais Cerrado, integrante do Plano de Ação Nacional (PAN) do pato-mergulhão e coordenadora do projeto Pato-mergulhão Chapada dos Veadeiros desde 2010.

      Seus estudos com a espécie começaram em 2008, durante o mestrado, quando se debruçou sobre a história natural e a distribuição geográfica do mergulhão a partir dos poucos registros de populações locais, fotos e áudios oficiais existentes até então. Em 2016, desenvolveu uma proposta de parceria com nove instituições da região da Chapada dos Veadeiros, para responder perguntas-chave sobre o animal. Onde encontrar, quantos são e qual seu estado de conservação nos ambientes de ocorrência? As informações estão gerando a primeira base de dados da espécie.

      Parte da equipe do Projeto Pato-Mergulhão em campo na Chapada dos Veadeiros, em Goiás (da esquerda para a direita): Guilherme Barroso, Anelise Romero, Gislaine Disconzi – bióloga que lidera a iniciativa –, Fernando Henrique Previdente e André Dib.

      Foto de André Dib, Projeto Pato-mergulhão

      Originalmente, a espécie se espalhava também por Paraguai e Argentina. No Brasil, ocupava rios do Paraná, São Paulo e Santa Catarina. Hoje, em todo o mundo, restam apenas três populações, todas no Cerrado brasileiro. A Serra da Canastra, em Minas Gerais, tem o maior quantitativo populacional, em seguida vem a Chapada dos Veadeiros e, por fim, o Jalapão, no Tocantins, com menos indivíduos.

      “A estimativa está em torno de 175 a 225 indivíduos”, explica Disconzi. “Fazendo um cálculo aproximado, temos 160 patos na Canastra, a Chapada com 40 e o Jalapão com 25. Em outros países não temos registro há muito tempo.” A contagem leva em conta apenas adultos.

      Entre 2009 e 2010, a equipe do projeto pato-mergulhão percorreu 248 km em rios e registrou apenas 29 indivíduos. O CEPF passou a financiar o trabalho em 2018 e ajudou a alavancar o levantamento de dados e informações. Em 2020, o projeto conseguiu também outros apoios financeiros. Agora com mais recursos, foi possível percorrer um total de 1,5 mil km em 17 rios e chegar ao número de 39 indivíduos.

      Todo o trabalho é realizado na área de proteção ambiental de Pouso Alto – no estado de Goiás, que tem 872 mil hectares – e no território Kalunga, que eleva para quase 1 milhão de hectares a área de estudo. “É como achar uma agulha no palheiro, temos que vasculhar rios de uma diversidade muito grande de localidades”, diz Disconzi. “É preciso planejar, checar imagens de satélites, ir a campo para pegar informações com pessoas locais e só então fazer o trabalho de percorrer os trechos de rios.”

      Registros como este, de uma família de patos-mergulhão na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, são especialmente importantes se considerado o número de indivíduos restantes na natureza: menos de 250. Vídeo produzido pelo Projeto Pato-mergulhão.

      A pesquisadora conta que o primeiro ninho da espécie na Chapada dos Veadeiros foi identificado em 2005. Os mergulhões vivem em trechos de rios de 5 Km a 15 km, em família ou casais. Nos últimos anos, os pesquisadores passaram a acompanhar a fase reprodutiva das aves. “Já estamos no terceiro ano e no nono ninho. Este ano achamos mais um ninho ativo, o que é uma glória”, comemora.

      Muitas vezes as aves fazem os ninhos em paredões rochosos, o que torna o acesso ainda mais complicado. Por causa disso, o projeto conta com especialistas em rapel, canoagem e rafting, que ajudam no mapeamento dos territórios de ocorrência. Na etapa mais recente, o projeto mapeou as comunidades locais que vivem às margens de rios, em áreas onde os pesquisadores não conseguiram chegar. A ideia é envolver os moradores para que ajudem a monitorar a espécie.

      Desde 2018, o mergulhão carrega o título de embaixador das águas, designado a ele durante o Fórum Mundial das Águas. A espécie, considerada guarda-chuva para a biodiversidade, é indicadora de qualidade ambiental e sensível a qualquer alteração de habitat. “Sabemos que esses locais em que ocorrem estão em bom estado de conservação, que a cadeia trófica está funcionando normalmente”, afirma Disconzi. “Se ele sair dessa cadeia, outros processos serão desencadeados.”

      Não faltam ameaças ao pato-mergulhão – grandes projetos de mineração, abertura de estradas e hidrelétricas, ampliação da fronteira agrícola, irrigação de áreas de lavoura, desmatamento, fogo e turismo desordenado são alguns. Especialistas também criticam o sistema Ipê, implementado neste ano pela secretaria do meio ambiente de Goiás para acelerar a concessão de licenças ambientais no estado. Em tese, ele serviria para agilizar procedimentos e regras de licenciamento ambiental. Mas, para o Ministério Público de Goiás, a lei estadual nº 20.694/2019, que sustentou a criação do sistema, instituiu "normas menos protetivas ao meio ambiente e de forma diversa da prevista na legislação federal, violando, por isso, o texto constitucional federal e estadual", escreve o procurador-geral Aylton Vechi em ação direta de inconstitucionalidade proposta em outubro de 2020.

      Disconzi tenta levar em conta essa diversidade de ameaças nas ações de conservação que lidera. Entre elas, está um programa de criação em cativeiro a partir de coletas de ovos em ambientes naturais. São 40 a 45 indivíduos que deverão passar por um programa de reintrodução na natureza. Contudo, há desafios que precisam ser superados, como uma possível endogamia observada entre os animais confinados.

      Outra ação resultado do projeto pato-mergulhão é a produção de manuais de boas práticas e capacitações voltados a professores das redes municipais e estaduais, público em geral e operadores de turismo.

      Para a próxima fase, a bióloga quer trabalhar com o setor privado e agropecuaristas da região. “Precisamos mostrar a eles que ações de conservação do solo e da água são fundamentais para proteger os ambientes do Cerrado”, diz ela. “Assim, o pato-mergulhão vai poder sobreviver. Se desmatam para plantio, há o carreamento de sedimentos para dentro dos rios com as chuvas.”

      Ao longo de milhares de anos, o pato-mergulhão desenvolveu um acurado sentido visual. A espécie vive à base de peixes e precisa enxergar a presa para se alimentar. Qualquer mudança na configuração dos rios pode ser fatal. “É um animal que se especializou em água doce continental, em águas cristalinas, rios de corredeira muito oxigenados”, explica Disconzi. “Por isso o represamento de rios também não é adequado.”

      Mais uma vez, fica impossível separar homem e natureza, embora o ser humano pareça insistir nessa dualidade. “Protegendo o pato-mergulhão, protegemos nossa própria vida. Ele está na água, e precisamos de água para sobreviver – o vínculo é direto. O pato-mergulhão somos nós, é a nossa sobrevivência.”

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