Desastre em Petrópolis: população vulnerável acentua impacto da crise climática

Reportagem visitou a região nos dias seguintes à maior chuva a cair no município em 90 anos. Com aumento de eventos climáticos extremos, população precisa ser protegida.
Deslizamento de terra cortou ao meio a comunidade do Morro da Oficina, que concentra grande parte das vítimas.
Por Lucas Ninno
Publicado 25 de fev. de 2022, 14:57 BRT, Atualizado 7 de mar. de 2022, 16:02 BRT

De Petrópolis, Rio de Janeiro | Aos 19 anos, Emerson Machado precisava trabalhar e teve uma ideia: aproveitar a estrutura de três andares do sobrado em que morava com a mãe, aos pés do Morro da Oficina, em Petrópolis, para abrir o próprio negócio. Ágil, bom de papo e carismático, Emerson transformou o andar térreo em um bar e o terceiro piso em salão de festas. De portas abertas para a comunidade que transitava pela Servidão Frei Leão, principal ladeira do morro, o lugar virou um sucesso.

Ao longo de 20 anos, o comerciante fluminense teceu uma rede que lhe conectou com boa parte da vizinhança em uma dinâmica social típica das periferias do estado do Rio de Janeiro, onde a geografia dos morros é um desafio tanto para as edificações quanto para a vida em sociedade. Parentes e vizinhos se ajudam no dia a dia enquanto vigas e estacas seguram as casas no solo íngreme.

Mas, no final da tarde do último 15 de fevereiro, durante uma chuva torrencial, o chão em que Emerson ergueu a vida cedeu. “Eu estava dentro do bar. Tinha uma casa de três andares ao lado, colada com a minha”, contou ele em entrevista à reportagem. “Quando ouvi um estalo, essa casa estava caindo. Mas, em vez de cair em cima do bar, ela caiu para a lateral. Eu corri e puxei minha mãe.”

O estrondo ouvido por Emerson era o golpe final da massa de lama, pedras, troncos de árvores e escombros de mais de 50 casas arrastadas por um deslizamento que começou no topo da montanha. A camada fina de solo, apoiada sobre rocha lisa com inclinações de 40º, se liquefez com a ação da água e escorregou morro abaixo, levando junto pedras enormes.

“A pedra rolou e veio igual uma avalanche. Ela se desprendeu, caiu em cima da primeira casa e foi derrubando tudo”, conta o comerciante enquanto anda apressado pelas vielas, levando a reportagem até o que sobrou de sua casa. No caminho sujo de barro e com pontos onde a água ainda minava, grupos de moradores trocavam informações sobre mortos e desaparecidos:

“Jacó morreu, Paulo morreu”, dizia um homem a seu amigo. “O Célio também? Meu Deus…”, lamentava outro morador.

Mais a frente, três homens conversavam. “O Pit não acharam não. E o Luís Paulo?”, perguntou um. “O Luís Paulo acharam lá embaixo, na rua.”

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    O comerciante Emerson Machado, 39, caminha no quintal de um vizinho para chegar até sua casa, parcialmente destruída por um deslizamento durante a chuva torrencial que atingiu a comunidade em que nasceu, no Morro da Oficina, em Petrópolis. 

    Foto de Lucas Ninno

    Morador do Morro da Oficina caminha entre a lama e escombros que tomaram a Servidão Frei Leão, principal ladeira para acessar a comunidade.

    Foto de Lucas Ninno

    A cada esquina, os mortos e desaparecidos – até quinta-feira (24) eram 209 mortos e 48 desaparecidos – deixavam de ser números e ganhavam nomes e histórias. Muitos eram amigos e conhecidos de Emerson Machado. “Eu consegui correr, mas alguns dos meus clientes provavelmente ficaram no bar. É muito triste, cara, muito triste. Olha isso, que loucura”, desabafou enquanto apontava, aos prantos, o rastro de destruição deixado pelo deslizamento no Morro da Oficina.

    O bar, no primeiro pavimento, desapareceu sob o barro. O segundo piso, onde ficava a sala, e o terceiro, o salão de festas, desabaram parcialmente e ficaram equilibrados de forma precária sobre os destroços. Emerson tentava salvar o que podia dos escombros: roupas, televisão, documentos, remédios.

    Naquela tarde de 15 de fevereiro, o pluviômetro do bairro São Sebastião, localizado a pouco mais de 2 km do Morro da Oficina, registrou 259,8 mm de chuva em apenas seis horas. A quantidade de água que caiu supera em 28% a média histórica esperada para todo o mês de fevereiro – 202,2mm – e é a maior chuva em Petrópolis desde, pelo menos, 1932, quando o Instituto Nacional de Metereologia começou a fazer as medições.

    Ainda chovia quando imagens estarrecedoras começaram a circular nas redes sociais. Ruas tomadas de carros empilhados, casas destruídas, dois ônibus levados pela enxurrada com passageiros desesperados tentando escapar pelas janelas, lutando pela sobrevivência.

    Em meio ao ruído dos helicópteros, Guilherme Bessa, 28, tentava descrever as características de parentes desaparecidos a militares do Exército Brasileiro, que começavam a trabalhar nas buscas. “Morreu minha tia e minhas duas primas”, disse à reportagem. “Uma neném de dois anos, da idade do meu filho, e a outra que era formada em direito, que ia começar no escritório de advocacia e, na véspera, estava comemorando no grupo da família.”

    Bessa se protegeu no supermercado em que trabalha quando a tempestade caiu. “Começou a transbordar tudo, eu nunca vi uma chuva dessa, acho que ninguém nunca viu. Fiquei quatro horas ilhado lá no serviço, quando comecei ver as notícias do morro. Eu tenho parente aqui, tentei chegar, mas não tinha como passar nem a pé. Até para os bombeiros foi difícil. Era uma cachoeira de lama.”

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        Morador caminha entre escombros deixados pela enchente na rua Washington Luiz, no centro de Petrópolis. A violência da enchente na cidade foi causada por um fenômeno descrito por geólogos como Debris Flow, ou Corrida de Detritos. Em ocorrências como esta, o grande volume de chuvas nas encostas causa o descolamento do solo e arrasta pedras, árvores e grandes objetos, aumentando não só a área inundada como também a força de arrasto e a capacidade de causar estragos e ferimentos fatais.

        Foto de Lucas Ninno
        À esquerda: No alto:

        Emerson Machado procura por objetos que ainda podem ser aproveitados na sala de sua casa, parcialmente destruída pela avalanche de detritos que arrasou a comunidade do Morro da Oficina. O comerciante de 39 anos conta que perdeu amigos e clientes no desastre e parte deles ainda estão desaparecidos.

        À direita: Acima:

        Homem observa os estragos deixados pela enxurrada na Rua Chile, no bairro Alto da Serra.

        fotos de Lucas Ninno

        Grande escorregamento de terra

        Fundada pelo Imperador Dom Pedro II, que gostava do clima fresco da Serra dos Órgãos e da natureza farta, Petrópolis cresceu com bairros espremidos entre dezenas de encostas forradas por espécies arbóreas típicas da Mata Atlântica. A estrutura dos morros é formada por gnaisses, rochas metamórficas formadas a partir do granito, ou de rochas sedimentares quartzo-argilosas, submetido a temperaturas e pressões elevadas.

        É comum que nas partes altas da serra estas rochas sofram mais ação da chuva e do vento, além de processos químicos naturais, se fragmentando em pedaços redondos ‘menores’, mas que ainda pesam toneladas e podem ser maiores que uma casa. As encostas também costumam ter uma cobertura fina de solo sobre o gnaisse, de menos de dois metros em alguns pontos. Quando ocorrem chuvas muito fortes, o solo saturado pela água perde o atrito com as rochas e, vencido pela gravidade, desce o declive levando tudo o que antes sustentava: árvores, pedras, casas.

        “A chuva é o agente deflagrador”, diz o geólogo Marcelo Fischer Gramani, pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, em São Paulo, que estuda o fenômeno de corrida de detritos há 18 anos. “Às vezes você tem o solo pouco espesso e a rocha logo em seguida, impermeável. A água não entra nessa rocha, então ela encharca a terra criando uma pressão entre os grãos, eliminando o atrito e a coesão do solo, e você tem um aumento da pressão no contato do solo com a rocha.”

        A princípio, a vegetação na encosta protege contra o impacto da água da chuva e atua como uma trama que segura o solo. No entanto, há um limite para essa defesa. “Quando temos um evento extremo como esse, a mata não suporta esse volume de chuva, e aí não tem jeito”, diz Gramani. “É quando ocorrem esses grandes movimentos de massa, num efeito dominó. Quando tem gente no caminho, isso é fatal.”

        No caso de Petrópolis, o pesquisador diz ter observado enxurradas com alta carga de sedimentos, que aumenta muito o impacto e o poder de arrasto, características da de uma corrida de detritos. No entanto, no Morro da Oficina, onde a maioria das mortes foram registradas, ele acredita que não ocorreu uma corrida de detrítica, mas um grande escorregamento.

        O município sofre há décadas com inundações e deslizamentos. As principais enchentes até agora haviam sido as de 1988, em que 134 pessoas morreram, e 2011, quando a queda de encostas devastou a região serrana do Rio de Janeiro e fez 73 óbitos no município. No total, mais de mil pessoas morreram, a maioria na cidade de Nova Friburgo.

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          Vista de um escorregamento de terra em um morro do bairro Chácara Flora. As ocupações muitas vezes ilegais de encostas, margens de rios e outras áreas de risco são um desafio para evitar vítimas durante chuvas intensas. Especialistas apontam que a solução deve vir do combate à desigualdade, a aplicação de planos de risco, simulações, treinamento e envolvimento das comunidades nos projetos de prevenção.

          Foto de Lucas Ninno

          Desastre natural: clima e áreas de risco

          “A combinação de chuvas e população em vulnerabilidade é a receita para um desastre natural”, disse, em entrevista à reportagem, José Marengo, coordenador geral de pesquisas e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), orgão criado pelo governo federal em 2011 como resposta ao megadesastre na região serrana carioca ocorrido no mesmo ano. “Esses desastres são uma combinação da parte climática, que se pode prever, com outros fatores que não tem nada a ver com o clima – a vulnerabilidade da população e as pessoas que vivem em áreas expostas.”

          Em entrevista à CNN, o diretor do Cemaden Osvaldo Moraes afirmou que no dia 14 o órgão emitiu um alerta à Defesa Civil nacional de que “havia condições metereológicas propícias para um evento metereológico muito intenso”.

          Marengo é enfático: “A chuva não mata pessoas, o que mata é a chuva quando cai em áreas de risco”.

          De acordo com um relatório do Serviço Geológico do Brasil, 48,82 % da área do município, ou 386,7 km², possui alto risco de deslizamentos. Desse total, 13,42 % possuem algum tipo de edificação. Entre os pontos onde os pesquisadores encontraram cicatrizes de deslizamentos recentes, que aumentam a suscetibilidade a novas quedas, está justamente o Morro da Oficina.

          Levantamento do MapBiomas mostrou que ocupações irregulares em Petrópolis mais que dobraram entre 1985 e 2020. Os ‘aglomerados subnormais’ – classificação do IBGE para assentamentos irregulares como “favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas, entre outros” – aumentaram 108% nesse período.

          O Atlas de Mortalidade e Perdas Econômicas Causadas por Extremos Climáticos, editado pela Organização Meteorológica Mundial, lista 193 desastres ocorridos no Brasil entre 1970 e 2019, resultando na maior média da América do Sul – quatro eventos extremos por ano. Nos últimos três meses, enchentes arrasaram cidades na Bahia, Minas Gerais, São Paulo e, a região de Petrópolis, no Rio de Janeiro, junto com parte do Espírito Santo.

          As inundações são a maior causa de mortes em crises climáticas na América do Sul – 57.892 mortes em quase cinco décadas. Dessas, 30 mil ocorreram na Venezuela em 1999,  na chamada Tragédia de Vargas, o pior desastre natural já registrado no continente.

          Um dado da pesquisa corrobora a visão de cientistas e ativistas sobre a importância de ações de combate à desigualdade social em conjunto com soluções ambientais: 82% das mortes por extremos do clima em todo o mundo acometem famílias de renda baixa e média-baixa.

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            Morador procura por sobreviventes entre a lama e escombros provocados por um deslizamento no Morro da Oficina. De acordo com geólogos, a quantidade de energia de grandes movimentos de massa pode carregar pedras de várias toneladas, troncos de árvores e outros detritos, aumentando a violência e o número de fatalidades nesse tipo de emergência.

            Foto de Lucas Ninno

            Futuro com mais eventos extremos

            Com as mudanças do clima, eventos extremos serão cada vez mais comuns. “O aumento global da temperatura está sendo observado em todo o mundo – os últimos 22 anos foram os anos mais quentes”, explica Marengo. “E isso está gerando um aumento na frequência de extremos. Quando falo de extremos, posso estar falando de ondas de calor, como aconteceu no Hemisfério Norte, com ondas de calor seco no Canadá, na Índia, no Japão, tempestades de neve nos Estados Unidos, enchentes fortíssimas que mataram pessoas na Alemanha, na Bélgica, na Suíca e, agora, essas enchentes e enxurradas que atingem o Brasil.”

            “Ou seja, esses extremos já estão acontecendo. Já tem provas que mostram isso”, completa Marengo.

            O Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas aponta que no cenário atual, com aumento de temperatura média global de 1ºC em comparação aos níveis pré-industriais, precipitações (chuva e neve) severas que aconteciam uma vez a cada dez anos já estão caindo 1,3 vezes no mesmo período e são 6,7% mais intensas.

            Caso o ritmo de emissões de carbono atual siga inalterado e a temperatura global aumente 2ºC, essas tempestades severas serão 14% mais intensas e ocorrerão 1,7 vezes a cada dez anos. Com 4º, número que atingiremos em 2100 caso nada mude, serão 30,2% mais intensas e ocorrerão 2,7 vezes a cada dez anos.

            “Os extremos estão aumentando, mas a vulnerabilidade da população dos centros urbanos também está aumentando”, diz José Maaerngo, do Cemaden. “Sabemos que o clima vai ser mais extremo, então precisamos proteger a população. Como? Com estrutura física, com realocação das pessoas, com proteção dos córregos, diques para conter a elevação do nível do mar. São coisas que já não dependem da natureza, dependem do ser humano.”

            Para o geólogo Marcelo Gramani é preciso botar em prática os planos de gestão de risco. “Com os recursos técnicos que temos hoje, não podemos mais deixar isso acontecer” diz ele. “Precisamos de planos, formação de núcleos de defesa civil, simulações, treinamentos e envolver a comunidade. A resposta é antecipação, comunicação e capacitação da comunidade.”

            Enquanto o esforço da ciência não se transforma em ações governamentais práticas, a comunidade em Petrópolis mal consegue tempo para chorar seus mortos. Na tarde da quinta-feira, 17 de fevereiro, dois dias depois da tragédia, as sirenes voltaram a soar nos morros quando o tempo fechou sobre a cidade imperial.

            Um trabalhador consertava a porta automática de um hotel e parou o serviço quando as primeiras gotas caíram sobre o asfalto da rua ainda molhada. Ele sacou o celular do bolso e discou algum número. Quando atenderam a chamada, olhando para as nuvens escuras, disse: “Amor, fica em casa por favor. Está chovendo de novo”.

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