Falta de fertilizantes pode levar à crise alimentar global. Haveria uma solução?

Sanções à Rússia por causa da guerra na Ucrânia, mau tempo e cortes nas exportações contribuem para uma grave escassez de fertilizantes, o que faz com que os agricultores lutem e busquem soluções para manter o mundo alimentado.

Por Joel K. Bourne, Jr.
Publicado 2 de jun. de 2022, 18:19 BRT
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Fertilizantes são misturados na Golden Fertilizers em Lagos, Nigéria. A falta desses produtos está ameaçando o sucesso das colheitas do mundo e pode levar a uma escassez generalizada de alimentos, dizem os especialistas.

Foto de Peter Essick Nat Geo Image Collection (269113)

Agricultores e consumidores de várias partes do mundo enfrentam os efeitos causados pela escassez global de fertilizantes. As exportações desses produtos químicos diminuíram drasticamente devido às sanções à Rússia por causa da guerra na Ucrânia. Além disso, o mau tempo e o bloqueio das exportações de grãos do leste europeu tornaram ainda maior o desafio de manter o mundo alimentado, apontam especialistas.

De acordo com o pesquisador de energia canadense Vaclav Smil, dois quintos da humanidade (mais de três bilhões de pessoas) estão vivos por causa do fertilizante de nitrogênio, o principal ingrediente da Revolução Verde que impulsionou o setor agrícola na década de 1960. Os produtos químicos (nitrogênio, fósforo e potássio) que triplicaram a produção global de grãos permitiram o maior crescimento populacional humano que o planeta já viu. Agora, eles estão em falta, e agricultores, empresas de fertilizantes e governos em todo o mundo estão lutando para evitar uma queda aparentemente inevitável nos rendimentos das colheitas.

“Não tenho certeza se é mais possível evitar uma crise alimentar”, diz o presidente da Organização Mundial de Agricultores, Theo de Jager. “A questão é quão larga e profunda ela será. Mais importante ainda: os agricultores precisam de paz. E a paz precisa de agricultores”, complementa.

A invasão da Ucrânia por Vladimir Putin foi um golpe para uma indústria que foi martelada por vários eventos por mais de um ano. A Rússia normalmente exporta quase 20% dos fertilizantes nitrogenados do mundo e, combinado com sua vizinha Belarus, respondem a 40% do potássio exportado do mundo, segundo analistas do Rabobank. A maior parte dessa produção está, atualmente, fora do alcance dos agricultores do mundo, devido às sanções ocidentais e às recentes restrições à exportação de fertilizantes da Rússia.

“Se você fala com um agricultor na América do Norte ou Oceania, a conversa principal é sobre fertilizantes, especificamente o preço e a disponibilidade desses produtos”, disse Jager, em uma conferência virtual sobre o assunto, recentemente. “Os preços estão mais ou menos 78% acima da média de 2021, e isso está acabando com a produção agrícola. Em muitas regiões, os agricultores simplesmente não têm condições de adquirir fertilizantes, ou mesmo que pudessem, esses produtos não estão disponíveis para eles. E não são apenas fertilizantes, mas também agroquímicos e combustíveis. Esta é uma crise global e requer uma resposta global.”

A maior parte da resposta até agora tem sido bastante ad hoc, com cada fazenda e cada governo por si. Mas na semana passada, os EUA e os bancos globais de desenvolvimento anunciaram um grande “plano de ação” sobre segurança alimentar global, totalizando mais de 30 bilhões de dólares em ajuda, na esperança de evitar uma repetição dos distúrbios alimentares que derrubaram governos durante a última crise de preços de alimentos em 2008 e 2012.

Agricultores sentem os efeitos

Agricultor em Indiana, nos Estados Unidos, Rodney Rulon está melhor do que muitos fazendeiros neste ano. Ele vem usando técnicas de plantio direto, plantas de cobertura e cama de frango (fertilizante natural que mistura de excrementos desses animais, ração, penas, dentre outros) nos 2,9 mil hectares de campos de milho e soja de sua família desde 1992. Combinado a extensos testes de solo a cada ano, o agricultor conta que cortou o uso de fertilizantes químicos de 20 a 30%.

“Estamos fazendo grandes cortes no gasto em fertilizantes este ano”, conta Rulon. “São 1,2 mil dólares, a tonelada, de fósforo e potássio. Foram 450 dólares no ano passado. O nitrogênio foi de 500 a 550 dólares a tonelada, em 2021. Agora, é bem mais de mil dólares. Nossa maior despesa dobrou.”

Ele não consegue nem mesmo obter as 3 mil toneladas de cama de frango que normalmente usa no lugar do fósforo e do potássio. Rulon tinha um acordo de cavalheiros com seu fornecedor para comprar por 60 dólares a tonelada do fertilizante natural, mas o produto foi vendido para outra pessoa por um preço mais alto.

Os altos preços dos fertilizantes causaram uma corrida ao estrume em muitas partes do país, à medida que os agricultores buscam alternativas para reduzir os gastos em produtos químicos. Isso pode não ser uma coisa ruim, diz Antonio Mallarino, cientista do solo e especialista em nutrientes de plantas, da Iowa State University, nos EUA. Há décadas ele tenta fazer com que os agricultores diminuam o uso de fertilizantes.

“Em 50 a 60% dos campos em Iowa você não precisaria aplicar P (fósforo) e K (potássio) por dez anos, e eles estariam bem”, ressalta Mallarino.

Bom para o meio ambiente

Embora o preço do milho tenha chegado a 8 dólares por bushel (35 litros) em fevereiro, perto do recorde de 2012, muitos agricultores estão mudando para a soja, que exige menos nutrientes e, portanto, menos fertilizantes. A pesquisa de plantio do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês), divulgada em 31 de março, mostrou que os agricultores pretendem plantar um recorde de 36,82 milhões de hectares de soja este ano, 4% a mais que no ano passado, enquanto os hectares de milho caíram para 36,01 milhões, o menor em cinco anos.

“Se essa situação continuar, pode ser bom para o meio ambiente", diz Mallarino. "Podemos não ter todo esse excesso de nitrogênio e fósforo indo para os rios e lagos.”

Bert Frost ouviu mais do que alguns resmungos de agricultores sobre os preços dos fertilizantes. Ele é o vice-presidente sênior de vendas, cadeia de suprimentos e desenvolvimento de mercado da Indústrias CF, dos EUA, um dos maiores produtores de fertilizantes nitrogenados do mundo. A interação suave de oferta e demanda que manteve os preços do nitrogênio em estabilidade nos últimos 10 anos não está mais funcionando, porque tanto a oferta quanto a demanda foram atingidas por choques externos, explica.

“O que temos hoje é uma confluência de todos os fatores que não funcionam em conjunto”, diz Frost.

Efeitos do mau tempo

No pós-pandemia, uma recuperação das indústrias que utilizam ingredientes brutos de fertilizantes, combinada com baixos estoques globais de grãos alimentícios, impulsionaram a demanda. Os fornecedores, por outro lado, foram prejudicados por eventos climáticos extremos.

A tempestade de inverno Uri, em fevereiro de 2021, literalmente congelou a produção em fábricas de fertilizantes de Iowa ao Texas, que paralisaram as atividades por um mês ou mais. Seis meses depois, o furacão Ida atravessou a Louisiana, também prejudicando vários produtores de fertilizantes, incluindo o complexo Donaldsonville, da CF. Com suas seis plantas de amônia e quatro de ureia (fertilizante quimicamente derivado do nitrogênio), é a maior instalação do tipo no mundo. A empresa foi forçada a cancelar seus contratos por um tempo.

“Então, a China e a Rússia impõem restrições à exportação de fertilizantes", explica Frost. "A China exporta 10% da oferta de ureia no mundo. Suas exportações chegaram a zero. A Rússia invade a Ucrânia e todo o inferno começa.”

Em outras palavras, o mercado estava cambaleando mesmo antes da guerra, das sanções e do bloqueio russo aos portos ucranianos do Mar Negro. “Todos os fatores que eu expus antes são inéditos. Então, a logística está afetada, e eu não acho que isso se resolva sozinho”, diz Frost.

América Latina mais vulnerável?

Os agricultores norte-americanos acabarão recebendo o fertilizante de que precisam nesta temporada, diz Frost, mesmo que tenham de pagar caro por isso. Mas são as potências agrícolas da América Latina as mais vulneráveis ​​às interrupções de fertilizantes, particularmente o Brasil, que importa cerca de 85% de seus fertilizantes, um quarto da Rússia.

Se os agricultores brasileiros reduzirem os fertilizantes e seus rendimentos caírem, isso poderá ter um impacto significativo no suprimento global de alimentos. O Brasil está entre os três maiores exportadores mundiais de soja, milho e açúcar, além de carne bovina, de frango e suína, de acordo com um relatório recente do USDA.

A grande temporada de plantio no Hemisfério Sul começa em setembro, e o governo brasileiro luta para encontrar novas fontes de fertilizantes. No início deste ano, chegou a fechar um acordo de troca com o Irã (trabalhando em torno das sanções dos EUA àquele país), no qual o país persa enviaria 400 mil toneladas de ureia ao Brasil em troca de milho e soja. 

Tão críticos são os fertilizantes da Rússia para o Brasil e o suprimento mundial de alimentos, que o governo Biden abriu uma brecha para eles em seu conjunto de sanções russas no final de março. Embora as barreiras financeiras ainda estejam dificultando as entregas, os analistas esperam que a medida alivie a pressão sobre os preços globais dos alimentos.

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“É impossível fazer previsões sobre essa situação”, diz Micaela Bové, diretora de soluções agrícolas da Yara Latinamérica, com sede em Buenos Aires. “Nunca imaginei que a Covid ainda estaria aqui, e ainda assim está. Nunca imaginei que essa invasão se tornaria uma guerra, e assim se tornou. Mas os agricultores são os heróis nisso. Eles foram atingidos por tudo o que você pode imaginar e sempre produzem comida.”

Bové diz que sua divisão da Yara, a gigante norueguesa de fertilizantes, não está vendo escassez em sua região, que vai das pequenas fazendas do México às vastas estâncias da Argentina, excluindo o Brasil. Mas os preços altos estão fazendo com que muitos usem menos. Por isso, ela e sua equipe estão promovendo ferramentas e aplicativos para ajudar os agricultores a usar seus produtos com mais eficiência. “As decisões sobre fertilizantes dependem da cultura, e um agricultor de milho no México tem necessidades diferentes de um agricultor de citrinos ou de um produtor de bananas em outros lugares", explica Bové.

África: de pouco a nada

Os agricultores africanos, em média, usam menos fertilizantes por hectare do mundo e têm os rendimentos mais baixos, principalmente para milho e outros grãos que fornecem a maior parte das calorias do continente. Como resultado, apesar de ter 60% das terras aráveis ​​do mundo, quase metade dos países da África depende do trigo importado da Rússia e da Ucrânia, com 14 países africanos recebendo mais da metade de seu trigo das duas nações em guerra. O aumento dos preços dos alimentos agora ameaça empurrar milhões de famílias africanas para a pobreza e a desnutrição.

E a guerra distante não é o único desafio, diz Agnes Kalibala, presidente da Aliança para uma Revolução Verde na África (Agra), uma organização sem fins lucrativos com sede em Nairóbi, no Quênia, que trabalhou com governos africanos e agências de ajuda estrangeira para aumentar o uso de fertilizantes e sementes melhoradas para aumentar os rendimentos em todo o continente. 

“A parte mais importante para mim, mesmo antes dos fertilizantes, é o quanto os agricultores estão sofrendo com a perspectiva das mudanças climáticas”, diz Kalibata, ex-ministra da Agricultura de Ruanda. “Em países onde não choveu no ano passado, houve geralmente uma queda no interesse por fertilizantes. Portanto, a questão agora é se esse interesse aumentará à medida que as chuvas estiverem chegando a algumas dessas áreas.”

Mas mesmo que os países possam obter fertilizantes, os agricultores, muitas vezes, não podem pagar, como aponta a presidente da Agra. Os governos que normalmente subsidiam fertilizantes estão lutando com uma enorme dívida pós-Covid, que, em alguns países, é superior a 50% do produto interno bruto. O grupo de Kalibata trabalha com a União Africana, o Banco Africano de Desenvolvimento e as nações do G7 para ajudar com financiamento de emergência, mas também incentivam os agricultores a buscar alternativas.

“Na África, nossa produtividade é muito baixa e temos alto esgotamento de nitrato em nossos solos”, diz Kalibata. “É muito difícil cultivar milho ou arroz sem nutrientes. Mas há outras oportunidades, como as favas, cultivadas na Etiópia e no Sudão, que podem suprir 100% de suas necessidades de nitrogênio. Essa é uma oportunidade fantástica.”

Ela explica que a fixação de nitrogênio é um processo simbiótico natural que distingue as leguminosas dos grãos de cereais, que são da família das gramíneas. Bactérias de rizóbios que vivem nas raízes das plantas convertem nitrogênio atmosférico em amônia que a vegetação pode usar, enquanto os vegetais fornecem açúcares para as bactérias. Os grãos são ótimos fixadores de nitrogênio: a soja fornece até 70 ou 80% de suas próprias necessidades. O feijão comum, alimento básico cultivado em toda a África, pode corrigir até 30%.

“Você ainda usa nutrientes, mas usa menos”, complementa Kalibata. Como sempre, o clima ainda é o curinga. Sem chuva, o fertilizante tem pouco ou nenhum efeito. “Se chover em algumas dessas áreas, esses países poderão encontrar alternativas. Se não o fizerem, teremos várias crises em nossas mãos.” 

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    Produtores de orgânicos

    Os únicos agricultores que não estão reclamando dos fertilizantes nesta temporada são os produtores orgânicos. Para quem o mantra é alimentar o solo, não a planta, e evitar fertilizantes químicos e pesticidas. Em vez deles, utilizam culturas de cobertura de leguminosas, rotações de culturas diversificadas e promovem insetos e micróbios benéficos nos campos. Algumas culturas de cobertura, como a ervilhaca peluda, podem produzir até 136 kg de nitrogênio por 4 mil m², de acordo com Jeff Moyer, diretor executivo do Instituto Rodale em Emmaus, Pensilvânia, EUA.

    Rodale, com a ajuda da Universidade Estadual da Pensilvânia, vem comparando, lado a lado, sistemas de cultivo convencionais e orgânicos desde 1981 (o teste de campo mais antigo na América do Norte). Após um período de transição de cinco anos, eles descobriram que os rendimentos orgânicos não eram apenas competitivos com os convencionais, mas também 40% mais altos durante a seca. Mais importante: eles deram aos agricultores três a seis vezes mais lucro, sem liberar produtos químicos tóxicos em rios e córregos.

    “Os fertilizantes são apenas a ponta da lança dos problemas que os agricultores estão enfrentando”, diz Moyer. “Olhe para Kansas e Nebraska. Ambos os estados estão pegando fogo este ano e esta deve ser a estação chuvosa. Com os padrões climáticos mudando e os custos de energia subindo, precisamos revolucionar nossos modelos de produção para minimizar esses impactos."

    No entanto, a conversão para orgânicos leva tempo, algo que também está em falta para muitos agricultores do mundo.

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