Caatinga

Único bioma 100% brasileiro, Caatinga esconde riquezas naturais subestimadas

Para muito além de cactos e solo rachado, o semiárido com maior densidade populacional do mundo abriga alto índice de espécies endêmicas, mas perdeu mais de 40% da vegetação nativa.

Um grupo de aves brasileiras extintas na natureza será reintroduzido em seu habitat natural nos primeiros meses de 2021. Uma delas é a ararinha-azul, pássaro vistoso de pouco mais de 50 cm de comprimento que havia desaparecido na natureza em 2000 por conta da ação de caçadores e traficantes de animais. O caso é emblemático entre os esforços de conservação no país, mas este é apenas o começo.

Mapa do bioma caatinga
A Caatinga é a região semiárida com maior densidade populacional do mundo e funciona como zona de transição entre Mata Atlântica e Amazônia, abrigando espécies dos dois biomas.

Endêmica da Caatinga, o único bioma brasileiro que ocorre de maneira exclusiva no país, a bela ararinha-azul pode ser vista como um símbolo da biodiversidade da região, subestimada ao longo da história. “Muitos de nós mais ao sul do país temos no imaginário coletivo a Caatinga como uma área pobre, de solos rachados e cactos, onde a vida quase não é possível”, diz Hugo Fernandes, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), que pesquisa mamíferos de grande porte. “Na verdade, este bioma negligenciado é muito rico e tem um nível de endemismo muito alto.” A região em que a Caatinga ocorre – todo o Nordeste do Brasil, mais um pedaço de Minas Gerais – ocupa um décimo do território nacional e foi protagonista na época da colonização portuguesa. Mesmo assim, sua riqueza animal e vegetal é pouco conhecida pelo grande público. “Sem bairrismo, posso dizer que a Caatinga é o mais brasileiro dos biomas”, afirma Daniel Fernandes, coordenador-geral da Associação Caatinga.

De acordo com estudo publicado em 2018, o bioma conta com 371 espécies nativas de peixes, 98 de anfíbios, 224 de répteis, 548 de aves e 183 mamíferos. Em relação à flora, outro inventário taxonômico indica a existência de quase 3,2 mil espécies, com uma taxa de endemismo de 23% – ou seja, mais de um quinto dessas plantas só existem por ali.

Nova chance

Ararinhas-azuis criadas em cativeiro desembarcaram no Brasil em março de 2020 para serem reintroduzidas na Caatinga depois de extintas na natureza. Os animais devem passar por um período de adaptação em criadouro de Curaça (BA), e a expectativa é que os primeiros indivíduos sejam libertados em 2021.

2000

Extinta

Morre último macho
livre na natureza

2021

Reintroduzida

52 aves vindas
da Alemanha

Terra branca

O nome Caatinga vem do tupi e se traduz em “terra branca”, uma referência ao modo como o sol penetrava no mato durante o período de seca, quando havia o desfolhamento das plantas. O termo, no entanto, traz uma miríade de significados, dentre eles tanto o bioma quanto um tipo específico de vegetação. “As pessoas fazem uma interpretação comumente errônea e confundem semiárido e domínio climático com o tipo de vegetação”, diz Francisca Soares, coordenadora do programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais da UFC. A pesquisadora explica que a região comporta vários tipos de vegetação diferentes. Um dos menos discutidos é o carrasco, que Soares pesquisa desde o início da década de 1990. Caracterizado por árvores arbustivas entre 2 e 5 metros de altura emaranhadas em tal densidade que é difícil caminhar por dentro, o carrasco era tido como uma espécie de cerradão – um dos tipos de vegetação do bioma Cerrado – degradado.

“Havia pouco conhecimento. Demonstramos que o carrasco possui vegetação e composição florística próprias”, explica ela. Na comparação com a vegetação da Caatinga propriamente dita, o carrasco é mais rico. “É uma fisionomia mais densa, há 5 mil indivíduos por hectare, enquanto [no resto da] Caatinga são 2 mil.”

Há também uma inversão no tipo de plantas presentes. Por se tratar de um mato aberto, a Caatinga tem uma presença maior de herbáceas – de 60 a 70 espécies por hectare, contra de 20 a 30 no carrasco. Se o objeto de comparação forem árvores lenhosas de maior porte, os números se invertem: 50 a 70 espécies no último, contra 20 a 30 na primeira. “A riqueza da Caatinga está no componente herbáceo e do carrasco no componente lenhoso”, afirma Soares, que cita o pau-branco, endêmico do bioma, como uma árvore característica desta segunda vegetação, assim como uma espécie de aroeira, o mofumbo e a caatingueira.

Cacto mandacaru

Nome científico: Cereus jamacaru

Altura: Até 6 m

Curiosidade:

Utilizado para alimentação do gado, o mandacaru possui uma flor branca que desabrocha no meio da primavera e, segundo a sabedoria sertaneja, anuncia a chegada da chuva.

Espécies endêmicas

Para se ter uma melhor ideia da biodiversidade do bioma, vale citar a Chapada Diamantina, um dos principais destinos de ecoturismo no país. “Na parte baixa da Chapada, encontra-se a Caatinga. Nas encostas, uma vegetação semelhante à Mata Atlântica. E, no topo, o Cerrado”, conta Adrian Antonio Garda, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especializado em répteis e anfíbios, o professor conta que o grupo que trabalha em seu laboratório tem artigos com a descrição de quatro novos sapos para publicação. Entre eles, um animal descoberto no topo da Chapada Diamantina que só existe por ali, primo de outra espécie endêmica da Caatinga, o Corythomantis greeningi.

Assim como o primo já conhecido, o novo sapo tem uma característica interessante: ele é capaz de inocular veneno por meio de microespinhos no crânio. “Foi a primeira espécie de sapo peçonhento do mundo, e agora vemos que esse grupo na verdade são várias espécies”, detalha Garda. A descrição de novas espécies de sapos faz com que a taxa de endemismo para o grupo aumente – dos 98 animais conhecidos no bioma hoje, 20 são encontrados apenas por lá. Há também um endemismo alto entre serpentes (22 de 112 espécies conhecidas). Essa relação dá um salto quando se fala em lagartos e chega a quase 50%. “É impressionante”, conta o professor da UFRN, que destaca a região das Dunas do São Francisco, onde há um número significativo de serpentes e lagartos endêmicos. Entre eles, o Scriptosaura catimbau. O pequeno lagartinho praticamente sem patas deixa desenhos na areia conforme se locomove, por isso o scripto no nome.

Quando o quesito são nomes populares, no entanto, esses animais ficam devendo na imaginação. Garda aponta uma citação histórica do zoólogo e sambista Paulo Vanzolini. “O sertanejo”, teria dito Vanzolini em referência às pessoas que moravam no interior, “é um excelente botânico [plantas], um mastozoólogo [mamíferos], um ornitólogo [aves] razoável e um péssimo herpetólogo [répteis]”. Para Garda, “as pessoas não têm interesse, só entendem melhor os bichos e plantas que têm alguma utilidade”.

Carnaúba

Nome científico: Copernicia prunifera

Altura: 9 a 12 m

Curiosidade:

Conhecida como árvore da vida, os frutos servem de alimento para animais, as raízes são medicinais, o tronco vira madeira, as folhas fazem cabanas e artesanato e a cera é usada em cosméticos.

Vida aquática

Os peixes, por sua vez, costumam ser bastante úteis. Com nível de endemismo significativo (209 das 386 espécies observadas no bioma são exclusivas dali), os rios são um tesouro, não só pela vida que contém, mas também pela água rara nas áreas do semiárido. No São Francisco, bacia mais famosa da região, vale citar o endêmico pacamã, uma espécie de bagre de corpo achatado e boca larga, que chega a mais de 70 cm e 5 kg.

Mas, claro, novas espécies têm sido descobertas a todo momento. “De 2003, quando fizemos o primeiro levantamento de peixes da Caatinga, para o último, publicado em 2008, o número aumentou em mais de 100 espécies”, diz Sérgio Lima, do Laboratório de Ictiologia Sistemática e Evolutiva da UFRN. Recentemente, Lima contribuiu para a descrição de duas novas espécies de pequenos cascudinhos. Uma delas, encontrada na bacia do rio Paraíba, ganhou um nome curioso graças a uma lenda da região – Parotocinclus cabessadecuia. Diz a história que, no Paranaíba, uma entidade foi amaldiçoada a viver como um monstro subaquático até capturar sete virgens. O nome do bicho? Cabeça de cuia. “Como o cascudinho tem uma cabeça arredondada formada por placas ósseas que parecem uma pequena cuia, serviu de inspiração”, relata ele.

Outra singularidade é que os felinos habitantes da Caatinga são menores em relação aos equivalentes de outras regiões, explica Hugo Fernandes, da UFC. “Há um padrão muito interessante. Como os recursos não são tão abundantes, nossos animais tendem a ser bem menores”, afirma ele. “As onças-pardas, apesar de termos poucas medidas, tem diferença entre 10 a 20 kg em relação às onças do Pantanal. As onças-pintadas, cujas maiores concentrações no bioma estão na Serra da Capivara, pesam entre 60 e 70 kg, enquanto um macho adulto no Pantanal chega a 140 kg.”

Ararinha-azul

Nome científico: Cyanopsitta spixii

Tamanho: 55 a 60 cm

Peso: 286 a 410 g


Risco de extinção (Ibama):

Extinta na natureza

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Curiosidade:

Estrela da animação Rio (2011), a ararinha-azul hoje só existe em cativeiro. Cerca de 110 indivíduos estão na mão de colecionadores e institutos de pesquisa no Brasil, Alemanha, Qatar, Espanha e Suíça.

Invasores

Uma das árvores mais emblemáticas da Caatinga é a carnaúba, palmeira endêmica do bioma. Ela é uma ótima referência do potencial de exploração econômico sustentável da biodiversidade. “Como há um longo período de seca, a flora tem uma série de adaptações para sobreviver. A carnaúba, por exemplo, tem uma cera que impermeabilizada suas palhas, evita a transpiração e faz com que ela perca menos água no período seco”, explica Daniel Fernandes, da Associação Caatinga.

Essa cera, o óleo de carnaúba, está por todos os lados – é utilizada pelo setor de cosméticos, de tintas e polimentos automotivos, da indústria alimentícia e de dispositivos para computadores. Tal cenário faz com que a espécie tenha uma importância social e econômica significativa para habitantes das regiões onde ela é explorada. No passado, o óleo chegou a ser o quinto item de exportação do Ceará. Hoje, está na oitava posição. “A extração é feita de forma sustentável, retira-se a palha e deixa-se o olho. Em seguida, tudo rebrota”, detalha Fernandes. “É uma atividade que gera emprego para cerca de 100 mil pessoas no Ceará, Rio Grande do Norte e Piauí, justamente no período da seca.”

Mesmo assim, a carnaúba corre risco. A unha-do-diabo, uma trepadeira originária de Madagascar, foi trazida ao Brasil para ser utilizada como ornamento, mas chegou à natureza e se adaptou muito bem à Caatinga. Ela se instala sobre a vegetação local, como a carnaúba, cria sombras que impedem a fotossíntese e acaba por matá-la. “Nós ainda não temos dados quantificando a perda de produtividade, mas já vemos várias áreas de carnaubais morrendo ou totalmente ocupadas pela unha-do-diabo”, observa a professora Francisca Soares, da UFC. Enquanto a trepadeira de Madagascar se espalha, Soares alerta para outra espécie exótica: o nim, uma árvore asiática utilizada na arborização de cidades como Fortaleza, com alto potencial invasivo. Nem sempre, no entanto, os invasores vêm de longe. Diversos pesquisadores estudam qual o impacto da transposição do rio São Francisco nas bacias do Paraíba do Norte, Jaguaribe e Piranhas-Açu. Além de mudar o regime hídrico, com a transformação de rios temporários em perenes, há uma expectativa em entender se espécies de peixes chegarão a essas outras regiões e qual o impacto isso traria para as populações locais.

Uma pesquisa de doutorado de modelagem de nicho ecológico orientado pelo professor Sérgio Lima, da UFRN, sugeriu que há um potencial que 20% das espécies do São Francisco se estabeleçam nessas outras bacias. No projeto de transposição, há barreiras ecológicas que deveriam impedir esse movimento. Porém, no Paraíba do Norte, banhado pelo canal leste da transposição, o único com obras terminadas, já foram encontrados peixes do São Francisco. “Isso sugere que as barreiras não são 100% efetivas”, afirma Lima. “O objetivo não é assumir uma postura contrária à transposição, mas fazer estudos, ter cautela.”

Mocó

Nome científico: Kerodon rupestris

Tamanho: Até 40 cm

Peso: Até 1 kg


Risco de extinção (Ibama):

Vulnerável

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Curiosidade:

Por emitir sons de alarme ao se sentir ameaçado, o mocó é alvo fácil de caçadores, uma de suas principais ameaças. Tanto sua carne quanto sua pelagem são cobiçadas.

Exploração histórica

Problemas de conservação na região, entretanto, não são novos. Com a perda de mais de 40% na área de vegetação nativa, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a Caatinga é um bioma que sofre investidas humanas desde o início da colonização portuguesa, quando foi a primeiro trecho interiorano explorado no país. Conforme o primeiro ciclo econômico se estabelecia baseado na criação de gado – o que demandava abertura de pasto –, a colonização se intensificava. Para se ter uma ideia, atualmente a Caatinga é a região semiárida com maior densidade populacional do mundo.

“O bioma era muito mais rico do que hoje em dia, mas o nível de pobreza extrema causou uma pressão de caça nunca antes vista no Brasil”, explica Hugo Fernandes, que pesquisa a exploração histórica da fauna da Caatinga. Séculos atrás, as onças-pintadas e queixadas eram comuns, assim como as antas. Hoje, tais espécies já não se encontram mais por ali.

Hoje, pesquisadores trabalham com iniciativas que incluem ações educativas com populações locais para reduzir a caça de determinadas espécies ameaçadas, como o tatu-bola da caatinga. Para exemplificar a dificuldade dessa tarefa, no entanto, Fernandes cita o caso do mocó, um pequeno roedor endêmico que pesa menos de 1 kg. “Ele se reproduz muito, tem um período de gestação supercurto, território pequeno: não tinha nenhum motivo para estar sob risco. Mas a pressão da caça é tão forte que o mocó está ameaçado de extinção”, argumenta o professor.

Escrivão

Nome científico: Scriptosaura catimbau

Tamanho: Até 5 cm


Risco de extinção (Ibama):

Pouco preocupante

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Curiosidade:

Apesar de ser um réptil sem pernas, o Scriptosaura catimbau não é uma cobra, mas um lagarto descrito pela ciência apenas em 2008.

Além de representarem uma riqueza por si só, essas espécies são testemunhas da história da formação dos biomas. Encravada na Caatinga cearense, a Serra do Baturité possui uma vegetação semelhante à da Mata Atlântica. Por ali acontece um fenômeno curioso. Habitam a Serra tanto a saripoca-de-gould, um tucano normalmente encontrado apenas na Amazônia, quanto um outro pássaro chamado saíra-militar, exclusivo da Mata Atlântica. “É um elemento puramente amazônico e um elemento puramente atlântico convivendo no meio da Caatinga”, diz o ornitólogo Weber Girão. “A floresta reflete uma época em que Mata Atlântica e Amazônia se encontravam onde hoje é a Caatinga, antes de retrocederem por mudanças do clima. Graças à altitude, essa região mostra onde essas matas se beijaram.”

Girão é responsável pelos esforços contra a extinção do soldadinho-do-araripe, pássaro endêmico da Caatinga descrito na década de 1990. “É uma espécie facilmente reconhecível e extremamente carismática – com as cores branco, preto e vermelho –, o que fez com que se tornasse um símbolo de orgulho da região”, explica o biólogo. Estima-se que existam menos de mil soldadinhos-do-araripe na natureza, todos na Chapada do Araripe, no Ceará, uma área sob forte pressão e que tem perdido território. “De símbolo de orgulho, ele pode virar um símbolo de vergonha, de extinção”, diz Girão.

Ao redor da Chapada do Araripe estão cidades populosas do estado, como Crato e Juazeiro do Norte, na região metropolitana do Cariri. O curioso é que todos esses municípios são abastecidos com água do aquífero da Chapada do Araripe. Ou seja, se o habitat do soldadinho-do-araripe sumir e levar consigo o pássaro, vai ser possível sentir na pele o tamanho do problema. “Cuidar do meio-ambiente”, afirma Girão, “também é cuidar da qualidade de vida das pessoas.”

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