Pampa

Com diversidade de gramíneas e leguminosas, Pampa permite pecuária sustentável

Ignorada por décadas e restrita no Brasil apenas ao Rio Grande do Sul, a região campestre era sequer reconhecida como um bioma até 2004. Novos levantamentos de fauna e flora revelam riqueza da biodiversidade.

O trabalho de campo de um biólogo nos Pampas possui um ingrediente interessante: por ali, há gado pastando em grande parte das áreas. A princípio, os animais estranham os pesquisadores, mas a curiosidade acaba por vencer o medo e, logo, bois, vacas e bezerros chegam perto para entender qual o objetivo dos visitantes. E esse objetivo não poderia ser mais valioso: descobrir e mostrar para o mundo a riqueza da biodiversidade de um bioma que, durante décadas, foi praticamente ignorado.

Mapa do bioma Pampa
Segundo bioma mais devastado, o Pampa tem menos de 50% de sua vegetação original e apenas 3,3% de sua área protegida por unidades de conservação.

“Quando se procura algo sobre os Pampas, parece que existe dificuldade em encontrar informações”, diz Tiago Gomes, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). À época de sua graduação, lembra Gomes, entre o fim dos anos 1990 e o começo dos 2000, a região sequer era reconhecida como um bioma. O poder público considerava tudo como campos sulinos, que incluía tanto o Pampa propriamente dito quanto campos de altitude, uma área caracterizada pela Mata Atlântica. O cenário mudou em 2004, quando o Pampa entrou para o Mapa de Biomas Brasileiros, estabelecido em parceria entre o IBGE e o Ministério do Meio Ambiente (MMA). Único bioma restrito a apenas um estado, o Rio Grande do Sul, o Pampa abarca o equivalente a 2,3% do território nacional.

Mesmo reconhecido, entretanto, o bioma ainda precisava superar uma ideia persistente: a de que se tratava apenas de uma paisagem monótona e desinteressante de pasto. Esse erro fica evidente pela variedade de gramíneas encontradas em um único m² de Pampa próximo à cidade de Quaraí no fim de 2014: 56 espécies diferentes. “Certamente é um número muito alto, não encontramos nada na literatura científica que mostre algo semelhante no Brasil”, afirma Gerhard Overbeck, professor do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um dos responsáveis por encontrar esse recorte superdiverso. Em 2019, Overbeck juntou um grupo de pesquisadores para uma tarefa inédita: sistematizar o número de espécies de flora e fauna conhecidas do Pampa.

Diversidade vegetal e gado próspero

Síntese da Biodiversidade do Pampa é o provável nome do projeto de Overbeck. Na flora, foram contabilizadas até agora 3.530 espécies. Considerando as plantas recolhidas nos campos do Pampa no Uruguai e Argentina, o número sobe para 4,9 mil. Só no Brasil, de todo modo, 400 espécies são endêmicas – ou 8% do total. “Esse número é preliminar”, aponta Overbeck, “estamos trabalhando em atualizações e a probabilidade é de que haja um aumento”. Do total, diz ele, 2,2 mil são espécies das áreas de campo propriamente dita, o que exclui regiões florestais próximas a rios, por exemplo. Entre essas, há uma presença significativa de gramíneas e leguminosas – o que, aos olhos destreinados, apresenta-se como pasto uniforme.

1m2

Pesquisadores brasileiros analisaram 1.170 áreas de 1x1 m em campos do Pampa. E em apenas uma dessas áreas, no município de Quaraí (RS) encontraram o recorde de 56 espécies diferentes de planta. Entre elas, o capim-caninha, grama forquilha, pega-pega e trevo nativo.

“Nós temos o capim-caninha, uma planta mais alta, assim como o capim-santa-fé, que é bem emblemático do Pampa. Já a grama-forquilha e a grama-tapete são mais rasteiras, típicas de ambiente com pressão de pastejo relativamente alta”, exemplifica o professor da UFRGS. “Também há muitas [do gênero] Asteraceaes, como diversas margaridas, e plantas medicinais como as carquejas ou as macelas.” Essa variedade de espécies resulta em um menu perfeito para a criação de gado livre. “É um grande trunfo. O Pampa fornece de graça todo o coquetel de pasto, incluindo leguminosas, de que o gado precisa, por isso sustenta uma pecuária de altíssima qualidade”, diz Glayson Bencke, pesquisador do Museu de Ciências Naturais da Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul.

Por se tratar de um bioma campestre, a região necessita de distúrbios que removam a biomassa acumulada. No Cerrado, por exemplo, isso é feito pelas queimadas que ocorrem naturalmente em intervalos de alguns anos. Já na região Sul, a responsabilidade tem caído sob os rebanhos bovinos. Vale ressaltar, no entanto, que, para ser feito de forma sustentável, tal atividade demanda uma tecnologia de manejo, com dosagem de carga – número de animais por área –, além de rodízio de locais utilizados para pasto.

A própria formação do Pampa está relacionada ao pastejo. Se, por um lado, o clima frio e seco favoreceu o desenvolvimento da vegetação rasteira, por outro uma megafauna extinta há cerca de 10 mil anos e que incluía preguiças-gigantes e parentes de cavalos e tatus de grande porte já se alimentava das gramíneas e herbáceas da região. “A reintrodução pelos europeus do gado ajudou na manutenção desse ecossistema campestre”, explica Gomes, da Unipampa.

Tuco-tuco-das-dunas

Nome científico: Ctenomys flamarioni

Tamanho: 15 m

Peso: 200 g


Risco de extinção (Ibama):

Vulnerável

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Curiosidade:

Por passarem mais de 90% da vida no subsolo e se camuflarem na areia, os tuco-tucos são quase impossíveis de se avistar. O nome é uma referência ao som que produz quando ameaçado.

Da mesma forma, criou inúmeros ambientes propícios para a fauna local. Entre as aves, são 566 espécies. O nível de endemismo, contudo, é baixo, com apenas 10 espécies exclusivas. Glayson Bencke, especializado nesse grupo, explica que, entre os pássaros, há tanto aqueles que preferem os campos mais limpos quanto os que necessitam de gramas mais altas. São caboclinhos, papa-moscas-do-campo e corruíras que aproveitam as touceiras de grama para fazerem seus ninhos. Ao longo das estradas que cortam a região, também é comum avistar emas, a maior ave das Américas. Elas andam em grandes grupos, com diversos filhotes do tamanho de galos acompanhando o macho. Na espécie, é o macho responsável por chocar os ovos, botados por mais de uma fêmea em um mesmo ninho.

Roedores subterrâneos e peixes minúsculos

Bem mais difíceis de ver são os tuco-tucos, pequenos roedores que passam a maior parte da vida embaixo da terra. No Brasil, há nove espécies de tuco-tuco, e cinco delas são encontradas apenas no Pampa. “São roedores subterrâneos, só saem esporadicamente para coletar alimento e fazer limpeza das tocas”, explica Thales Renato Freitas, professor do Departamento de Genética da UFRGS e coordenador do Projeto Tuco-tuco.

Dentre as cinco espécies, duas ocorrem nos campos do interior do Rio Grande do Sul, o Ctenomys torquatus e o Ctenomys ibicuiensis. As outras três estão distribuídas na área litorânea de maneira que é possível entender como ficaram isoladas e se especiaram ao longo do tempo. O C. flamarioni vive nas dunas próximas ao mar. Em seguida, o C. minutus está em campos mais arenosos. Por fim, o C. lami ocupa um terreno mais distante do oceano. “São três espécies paralelas ocupando dunas diferentes, há uma relação bastante forte com a geologia da formação da planície costeira a partir da separação da África com a América do Sul”, explica Freitas. Há outras 151 espécies de mamíferos no Pampa – entre eles, animais grandes como capivaras e o gato-dos-pampas.

Cardeal-amarelo

Nome científico: Gubernatrix cristata

Tamanho: 20 cm

Peso: 42 g


Risco de extinção (IUCN):

Em perigo

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Curiosidade:

Dotado de extraordinária beleza física e sonora, o cardeal-amarelo é visado tanto por observadores de aves quanto por colecionadores de pássaros canoros.

Já dentro dos rios, há 272 espécies de peixes. Só no Ibicuí, importante afluente do Rio Uruguai, são 111 animais diferentes, entre eles alguns muito procurados para a pesca esportiva como dourado e surubim, conta Everton Behr, professor da Universidade Federal de Santa Maria que mapeou a ictiofauna do Ibicuí em tese de doutorado. “Para peixes, temos poucas espécies endêmicas do bioma. Há alguns lambaris e principalmente o grupo dos peixes-anuais”, afirma o professor.

Peixes-anuais são minúsculos, cabem na palma da mão, e chamam atenção pelos belos padrões coloridos, o que os tornam cobiçados por aquaristas. Além disso, eles têm um ciclo de vida curioso. Ocupam pequenas poças d´água temporárias e, quando elas secam, os ovos dos peixinhos ficam enterrados e só eclodem quando a água ressurge. São 28 espécies de peixes-anuais no Pampa, todas endêmicas. Entre elas, 15 são encontradas apenas na porção brasileira do bioma. Os animais do grupo são especialmente vulneráveis por conta do seu habitat. “Qualquer alteração pode causar uma redução drástica na população e até a extinção”, diz Matheus Volcan, pesquisador e coordenador do Instituto Pró-Pampa. É o caso do Austrolebias bagual, descrito por ele junto a um grupo de pesquisadores em 2014. Até onde se sabe, o peixinho é encontrado em apenas três poças minúsculas dentro de uma mesma propriedade rural próxima à cidade de Encruzilhada do Sul (RS).

De novo, quando há criação tradicional e adequada de gado, essas pequenas poças estão razoavelmente protegidas. No entanto, na medida em que a matriz produtiva da região muda para a plantação de soja, por exemplo, áreas como essa são aterradas sem qualquer preocupação – até porque, durante grande parte do ano, sequer é possível saber que há água por ali. “Empreendimentos imobiliários são outro problema”, afirma Volcan.

Peixe-das-nuvens

Nome científico: Austrolebias charrua

Tamanho: 5 cm

Peso: 0,13 a 0,75 g


Risco de extinção (Ibama):

Em perigo

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Curiosidade:

Peixes-das-nuves existem na América Latina e na África, mas o Pampa possui várias espécies endêmicas. Ocorrem em poças temporárias, onde adultos deixam ovos que sobrevivem ao período de seca.

E o problema não para nos peixes-anuais. Tiago Gomes, da Unipampa, trabalha com anfíbios e explica que há inúmeros sapinhos que habitam as mesmas poças. Ao todo, são 63 espécies de anfíbios no bioma. “Eu moro há dez anos em São Gabriel (RS) e, a cada safra da soja, vivencio a abertura de novas lavouras em áreas campestres”, diz ele. Ainda que a legislação brasileira proteja corpos d’água, as pequenas poças são indefesas na prática. “A maior parte da diversidade de anfíbios nem gosta de grandes lagoas, preferem pocinhas. Se alguém passar um trator por cima, ninguém nem nota que desapareceram”, observa Gomes.

Campos desprotegidos

Na opinião de Gerhard Overbeck, a incapacidade da legislação de proteger as poças sintetiza um certo descuido do governo em relação a paisagens não florestais. Enquanto o desmatamento na Amazônia e Mata Atlântica é sempre motivo de preocupação, o Pampa fica à margem. “Até pouco tempo atrás, a legislação não considerava esses biomas ao chamar-se de Código Florestal”, diz ele. Em 2012, uma nova lei que discrimina quais cuidados são necessários em áreas de vegetação nativa foi aprovada sob o nome de Lei de Proteção da Vegetação Nativa. No entanto, ainda é mais conhecida como código florestal.

Overbeck chama atenção para os dispositivos que garantem a proteção de matas ciliares. A vegetação ao redor dos rios e grandes corpos d’água acaba por favorecer áreas florestais. Em outras palavras, os campos do Pampa estão desprotegidos e começam a sumir à medida que a criação de gado tradicional dá lugar à agricultura, silvicultura e mesmo pecuária, que substituem o pasto nativo por espécies exóticas.

Cágado-rajado

Nome científico: Phrynops williamsi

Tamanho: 33 cm (carapaça)

Peso: 3 kg


Risco de extinção (Ibama):

Vulnerável

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Curiosidade:

Também conhecida como cágado-de-ferradura, a espécie ainda é pouco conhecida. Modificações na mandíbula indicam que se alimentam triturando conchas de moluscos, artrópodes aquáticos e peixes.

No caso da silvicultura – plantação de árvores de grande porte como eucaliptos para uso da madeira –, toda a flora rasteira some, o que altera de maneira significativa o ecossistema local. Tiago Gomes conta que um grupo da sua universidade fez um estudo de caso próximo a São Gabriel comparando a fauna de anfíbios e répteis em áreas de campo nativo com e de plantação de eucaliptos. Entre os eucaliptos, havia uma pobreza de espécies, principalmente répteis. No campo, por outro lado, o resultado foi animador. “Na ocasião, nós inclusive fotografamos uma serpente chamada Xenodon histricus que nunca havia sido registrada viva no Brasil”, diz ele.

Como o Pampa é comum a Uruguai e Argentina, há vários casos semelhantes de espécies que sumiram na porção brasileira mas continuam a ser encontradas nos vizinhos. Um grupo de pesquisadores dos três países, por exemplo, trabalha em um projeto de ciência cidadã para reencontrar no Brasil o sapo-untanha, também conhecido como gigante de las pampas. Mais triste é o caso do peito-vermelho-grande, pássaro exclusivo do Pampa e desaparecido do Brasil há 100 anos. “Nós sequer entendemos porque ele desapareceu, é uma ave que precisa de um campo nem tão baixo nem tão alto”, explica Glayson Bencke.

Habitats em perigo

Os riscos não param por aí – o aumento das temperaturas como resultado das mudanças climáticas podem afetar gravemente o bioma. Modelagens climáticas mostram que várias espécies de sapinhos-da-barriga-vermelha, por exemplo, vão ter uma perda significativa do seu habitat. “Alguns desses animais vêm da costa do Uruguai, sobem pelo litoral e entram no Rio Grande do Sul. No futuro, não vai existir habitat compatível com a demanda dessas espécies”, afirma Tiago Gomes.

Amendoim forrageiro

Nome científico: Arachis burkartii

Curiosidade:

O amendoim cultivado em larga escala é plantado por povos sulamericanos há pelo menos 8,5 mil anos, mas há cerca de 80 espécies silvestres, como esta, endêmica do Pampa.

Thales Freitas cita outro problema: usinas termelétricas alimentadas por carvão. Um estudo coordenado por ele identificou que populações de tuco-tucos que moram próximo a usinas instaladas em Bagé e Candiota (RS) apresentam danos genéticos muito fortes. “Costumo dizer que o tuco-tuco tem uma biologia parecida com a nossa, o subterrâneo é casa dele, nós vivemos dentro de casa, então existe um paralelo”, explica o professor. “Nós ainda não analisamos as pessoas, mas se eles têm quebras cromossômicas, é possível que nós também.” Entre as consequências, está uma chance mais elevada de desenvolver câncer. Espécies emblemáticas do bioma correm sério risco de desaparecer. É o caso do cardeal-amarelo, uma das aves em situação mais crítica no país. De coloração belíssima, o cardeal-amarelo foi alvo de uma captura sem limites para comércio ilegal. Há mais de 3 mil espécimes registrados em cativeiro no país. Já na natureza, eles contam apenas 50, todos no Parque Estadual do Espinilho.

Por outro lado, Everton Behr coordena um projeto chamado Olha o Passarinho!, que leva alunos das redes pública e privada de Santa Maria (RS) para observar aves. Segundo o professor, foram mais de 4,5 mil participantes desde 2011 e algumas crianças contam que o dia foi o preferido em toda história escolar. Como o projeto é feito nas imediações das escolas, normalmente são vistos pássaros comuns em áreas urbanas, mas pode haver surpresas, como o cardeal. “Eu conheci essa espécie em gaiolas. Hoje, os alunos podem ver eles na natureza”, diz Behr. “É um sinal de que os tempos podem melhorar.”

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