Então Tabom: comunidade de ex-escravos retornados a Gana mantêm tradições do Brasil do século 19
Apesar de a língua portuguesa ter se perdido, a influência brasileira ainda é evidente na culinária, na religião e em diversos nomes. Termo de batismo surgiu de uma frase corriqueira: “tá bom!”.
Quando os primeiros grupos de afro-brasileiros desembarcaram na Costa do Ouro – onde hoje é Gana, na África –, na década de 1830, ninguém falava nenhum dos inúmeros idiomas pelos quais os nativos e os europeus se comunicavam na região. Eles desconheciam tanto a língua do povo ga quanto os idiomas falados por ingleses, holandeses e dinamarqueses.
Os habitantes locais também não conseguiam distinguir quase nada do que falavam os recém-chegados. Apenas uma expressão, dita repetidas vezes, destoava: "está bom". Assim, o que a tradição oral diz ter sido uma tentativa dos brasileiros de dar fim a uma conversa entre interlocutores que não se entendiam (“tá bom, tá bom, tá bom…”), virou o nome de um povo que até hoje vive na capital de Gana, na costa oeste africana.
Os tabons – assim como os agudás e os amarôs, que se fixaram no Togo, no Benin e na Nigéria – são descendentes de um dos vários grupos de afro-brasileiros que deixaram o Brasil e voltaram para a África entre meados do século 18 e início do século 20, em um movimento descrito por alguns pesquisadores como "diáspora reversa". Esse retorno em massa – estima-se entre 3 e 8 mil pessoas – ocorreu depois que uma série de revoltas populares eclodiu no Brasil Império.
Por falta de documentos, há pouca certeza sobre a origem brasileira dos retornados. Contudo, segundo a tradição oral, muitos eram escravos afro-brasileiros libertos que, vítimas de racismo, resolveram retornar ao continente africano. Também havia nesse grupo africanos que foram trazidos como escravos, passaram alguns anos no Brasil e voltaram na primeira oportunidade. Muitos dos tabons, aliás, eram da etnia muçulmana huaça, e é possível que tenham sido deportados depois de organizar a Revolta do Malês, em Salvador, no ano de 1935.
Evidências dos retornados podem ser encontradas em boa parte da costa oeste africana. Na Nigéria, onde sobrenomes como Martins, Silva e Moreira ainda são comuns, há um bairro chamado Brazil Quarter, com traços da arquitetura brasileira do século 19. No Benim, onde uma mesquita parecida com as igrejas coloniais brasileiras foi construída, ainda se comemora a burrinha (uma espécie de bumba-meu-boi) e se come feijoadá e kouzidou.
Profissões recorrentes
Em Gana, os tabons foram muito bem recebidos pelo povo ga, que legou frações de terra aos afro-brasileiros. Azumah Nelson, hoje conhecido como o primeiro chefe tabom – Nii Azumah I – ficou com a responsabilidade de partilhar as terras concedidas.
O povo ga ocupava a região costeira, era composto principalmente por pescadores e tinha o Mantse Nii Kwaku Ankrah como chefe. Ele viu com bons olhos a chegada dos imigrantes, afinal, entre os recém-chegados, havia arquitetos, carpinteiros, agricultores e alfaiates – profissões pelas quais os tabons ainda são reconhecidos. Até hoje, os mais importantes costureiros de Gana são descendentes de afro-brasileiros como Dan Morton, talvez o mais famoso deles.
Em depoimento no livro Tabom voices, Dan Morton conta que fazia os ternos de Kwame Nkrumah – ex-primeiro-ministro, ex-presidente de Gana e um dos fundadores do Pan-Africanismo – e atribui o talento do povo tabom aos seus ancestrais. "Eu treinei mais de 50 alfaiates neste país. Todos eles trabalham bem porque eles [os primeiros tabons] trouxeram a alfaiataria não de qualquer lugar, mas do Brasil. Essa é a inspiração que fez quem eu sou", disse Don.
Quase 200 anos depois da chegada dos primeiros brasileiros, os tabons assimilaram a cultura ga e já nem falam português. Sem uma liderança efetiva depois da morte de Nii Azumah IV, o quinto chefe tabom, em 1983, a questão brasileira foi se perdendo em meio a conflitos e intrigas dentro do clã.
O sexto chefe tabom, Nii Azumah V, assumiu em 1998 com a missão de reunificar a comunidade. Em depoimento no livro Tabom voices, ele se considera “tanto ganês quanto brasileiro”, mas confessa que a cultura afro-brasileira estava se dissipando. “Quase perdemos nossa cultura brasileira, diferente de Benin. Benin, por exemplo, [conseguiu manter] sua cultura e seus costumes”, disse o líder.
Do lado de cá
No Brasil, a história dos afro-brasileiros retornados ficou esquecida por muitos anos. Foi somente em 1961, quando Raymundo de Souza Dantas foi enviado por Jânio Quadros a Gana para fundar a primeira embaixada brasileira na África pós-colonial, que alguma relação entre os retornados e sua terra ancestral foi restabelecida.
Em seu livro de memórias África difícil, Dantas, o primeiro embaixador brasileiro negro, conta que se surpreendeu ao encontrar descendentes de brasileiros em Acra que ainda falavam português. Certa vez, o embaixador e sua esposa, Ideline Souza Dantas, foram recepcionados com uma grande celebração que "teve caráter eminentemente africano, prevalecendo, porém, sobrevivências de costumes e coisas trazidas da Bahia". Por fim, sua esposa foi convidada ao terreiro para dançar "sob aplausos e ao som de uma velha cantiga baiana, com o refrão 'Viva Iáiá, Viva Iáiá'".
Mas a primeira visita de um chefe de estado brasileiro a Gana e ao povo tabom aconteceu só em 2005, quando uma comitiva liderada pelo ex-presidente Lula e os então ministros Gilberto Gil e Celso Amorim viajou ao país africano. Na ocasião, a Brazil House, sobrado construído no século 19 pelos primeiros afro-brasileiros a chegarem na cidade, foi restaurada e transformada em museu.
Hoje, porém, o museu está fechado. A embaixada brasileira em Acra achou que a construção apresentava riscos aos visitantes e precisava de uma nova reforma. Apesar de esforços para restaurar a casa no mesmo estilo que o original, as negociações com os atuais proprietários do sobrado falharam e o projeto foi deixado de lado.
Nos últimos anos, houve outras tentativas pontuais da embaixada brasileira em Acra de reaproximar os tabons do Brasil. Entre elas, a reedição do livro Tabom, a Comunidade Afro-brasileira no Gana, de Marco Aurelio Schaumloeffel – uma das fontes desta reportagem –, a produção de um livro de entrevistas com membros importantes da comunidade – o Tabom voices –, e a organização da visita do mestre percursionista Eric Morton à Bahia.
Líder tabom
Eric Morton é uma espécie de líder cultural da comunidade. Mestre de percussão tabom – autoridade responsável pelos funerais e cerimônias relacionadas a Xangô –, ele veio ao Brasil em 2016 e, entre outras atividades, tocou ritmos afro-brasileiros com músicos baianos, visitou terreiros de candomblé, participou de rodas de capoeira e ensaios dos Filhos de Ghandi e do Olodum.
Para Morton, a visita também serviu para que os brasileiros conhecessem ele e sua cultura. “Vou ensinar a eles algo sobre o agbe [a música tradicional tabom] de Gana e do Brasil, juntos”, disse Morton no documentário Tabom in Bahia, de Nilton Pereira e Juan Diego Diaz, que registrou a passagem do músico pela Bahia.
Morton também foi o responsável por apresentar seus conterrâneos ao fotojornalista Fellipe Abreu e ao produtor Henrique Hedler. Fellipe e Henrique visitaram o país em 2017. Curiosos pela história dos afro-brasileiros em Acra, pediram ajuda à embaixada brasileira, que os colocou em contato com Morton. "Desde o começo, fomos muito bem recebidos pelo Eric. Ao longo de uma semana ele nos abriu todas as portas para conhecermos o que ainda resta da cultura tabom”.
Fellipe conta que, apesar de a língua portuguesa ter se perdido, a influência brasileira ainda é evidente nos pequenos detalhes: na culinária, na religião, nos nomes aportuguesados de algumas ruas e nos sobrenomes de algumas famílias. “É como se fôssemos testemunhas de uma parte importante da história do nosso país”, disse Fellipe.
A intenção de Fellipe ao fotografar os tabons era disseminar uma história importante, mas desconhecida da maior parte dos brasileiros. "Os tabons, assim como os outros grupos que retornaram para a costa oeste da África, são uma parte de nossa história que pouca gente conhece no Brasil, mas que deveria ser estudada nas nossas salas de aula, assim como a cultura africana em geral”, disse Fellipe. “Só assim vamos aprender a reconhecer e valorizar nossas raízes".