Estereótipos impulsionaram aumento do turismo em região gélida do norte da Europa

Por décadas, experiências turísticas, como passeios de trenó puxado por cães, criaram uma falsa narrativa das tradições dos indígenas sami.

Por Karen Gardiner
Publicado 24 de fev. de 2021, 07:00 BRT
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Turistas fazem passeio em trenós puxados por renas em Levi, na Lapônia finlandesa, o lar ancestral de quase 10 mil povos indígenas sami do país.

Foto de Parkerphotography, Alamy Stock Photo

O TURISMO DE INVERNO do Ártico europeu oferece diversas atividades aos turistas, desde perseguir a aurora boreal até a prática de esqui cross-country e, uma atração que cresce a cada ano são as corridas na neve em um trenó puxado por uma matilha de cães da raça husky siberiano.

Nos últimos anos, o passeio de trenó puxado por cães se tornou um símbolo do extremo norte da Europa — região conhecida como Sápmi pelos quase cem mil indígenas sami que vivem no local. Na realidade, um relatório de 2018 divulgado pelo site Animal Tourism Finland constatou que quatro mil huskies estavam sendo utilizados para a atividade apenas na Lapônia finlandesa. Qual o problema disso? “O passeio de trenó puxado por cães foi emprestado de outras culturas e incluído no cenário turístico da Lapônia na década de 1980”, conta Tuomas Aslak Juuso, presidente do Parlamento Sami da Finlândia, órgão representativo dos cerca de 10 mil samis que vivem no país. “Não faz parte da cultura sami ou finlandesa.”

Além de ser culturalmente inautêntico, o trenó puxado por cães cria tensão com os samis pastores de renas. Cães soltos ou fugitivos correm o risco de assustar, atacar e matar renas. “A atividade de trenós puxados por cães também é considerada culturalmente invasiva”, acrescenta Juuso, “causando danos ecológicos, financeiros, de saúde e sociais aos meios de subsistência tradicionais sami que são originalmente parte de nossa natureza nórdica.”

Esta foto, tirada por volta de 1890, mostra indígenas sami do lado de fora de uma casa tradicional. Os samis são um povo indígena fino-úgrico que vive em Sápmi, região que hoje abrange o norte da Noruega, Suécia, Finlândia e a Península de Kola, na Rússia.

Foto de Pump Park Vintage Photography, Alamy Stock Photo

De trenós puxados por cães a imagens estereotipadas do povo sami em trajes tradicionais, representações imprecisas das comunidades indígenas da região têm sido comercializadas para turistas há décadas. Com o crescimento do turismo no Ártico europeu — a receita na Lapônia sueca aumentou 86% nos últimos 10 anos — samis estão buscando maneiras de confrontar a indústria para que possam contar suas histórias com precisão.

Na Finlândia, o Parlamento Sami adotou, em 2018, os Princípios para o Turismo Sami Responsável e Eticamente Sustentável, um conjunto de diretrizes voltado principalmente para quem comercializa atividades turísticas que não envolvem a cultura sami e que trabalham na região nativa dos samis, bem como para os turistas.

Destacando o trenó puxado por cães (junto com os hotéis “iglu” que surgiram recentemente na região), as diretrizes afirmam o dano em potencial dessas “tradições emprestadas” — homogeneização, “por meio das quais as paisagens turísticas da região ártica começam a se assemelhar com outras, independentemente de [sua] diversidade e riqueza”.

As diretrizes da Finlândia são apenas um passo para contar a verdadeira história do povo sami. Em Sápmi, os moradores estão se unindo para corrigir essa história, na esperança de enriquecer a experiência de viagem na região para todos.

Direito público de acesso à natureza mal interpretado

A região nativa do povo sami na Finlândia é uma parte de Sápmi, uma área grande e diversa que abrange o norte da Noruega, a Suécia e a Península de Kola, na Rússia. Embora as regiões mais setentrionais da Suécia e da Finlândia sejam chamadas de Lapônia, toda a área de Sápmi foi imprecisamente chamada de “Lapônia” e promovida como “região selvagem intocada”, apesar da vasta presença de pessoas que vivem e trabalham na região.

“Embora a natureza possa parecer intocada em muitas regiões do norte, ainda é frequentemente utilizada pela população local”, afirma Juuso. “Os samis ainda utilizam a área para pastoreio de renas, pesca, caça, colheita de frutas silvestres e também de outras formas tradicionais. É importante levar isso em consideração quando a indústria do turismo divulga a tradicional lei finlandesa de ‘direito público de acesso à natureza’”.

Nos países nórdicos, o “direito público de acesso à natureza” é considerado um direito humano básico. Na Finlândia, Suécia e Noruega, qualquer pessoa pode caminhar, andar de bicicleta, esquiar e acampar praticamente em qualquer lugar. Junto com esse direito vem a responsabilidade de se comportar respeitosamente, mas os visitantes muitas vezes parecem menos cientes desse princípio.

Outi Kugapi, pesquisador de turismo da Universidade da Lapônia, na Finlândia, diz que a má interpretação dessa liberdade gerou tensão entre moradores e empresas que gerenciam passeios de trenós puxados por cães em outros países. “Eles não sabem nada sobre a região, não conhecem ninguém, então não se comunicam efetivamente com os locais”, ela conta. “[Mas] eles leram o direito público de acesso à natureza, sabem que têm o direito de estar lá e realizar essas atividades.”

O equívoco levou turistas a “passearem pelos quintais das pessoas e olhar pelas janelas”, pensando “que não há problema em fazer isso”, salienta Kugapi. Os empreendedores cometem o mesmo erro, mas em uma escala maior. Estâncias de esqui construídas em pastagens tradicionais de renas impactam negativamente uma indústria sami fundamental. Entretanto, os samis veem “o grande número de turistas, o lixo deixado por eles e cada vez mais turistas usufruindo da terra, mas [os sami veem] muito pouco do lucro com esse turismo”, esclarece Lennart Pittja, profissional de turismo de longa data na Suécia.

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    Embora o trenó puxado por cães não seja uma tradição autêntica do povo indígena sami que vive na Lapônia finlandesa, ele costuma ser comercializado para turistas como uma experiência indígena.

    Foto de Jonathan Nackstrand, AFP/ Getty Images

    Kugapi espera que o projeto Turismo Sensível à Cultura no Ártico (Arctisen) criado por ela em conjunto com um grupo de pesquisadores ajude. O Arctisen apoia empresas de turismo na Finlândia, Suécia e Noruega na criação de produtos que refletem e beneficiam a região com precisão. Por meio de publicações, kits de ferramentas digitais e um curso on-line gratuito que será lançado em breve, o projeto destaca experiências negativas e incentiva as comunidades locais a indicar como suas culturas são empregadas no turismo.

    “Os empreendedores terão ferramentas concretas” para tornar seus negócios mais sensíveis à cultura, salienta Kugapi. “Nossas atividades já aumentaram a conscientização e os fizeram pensar [sobre] o turismo de forma diferente.

    A sensibilidade cultural não é algo que você pode alcançar, é mais como um estado de espírito, uma forma de trabalhar”, continuou Kugapi. “Esperamos que o material que criamos melhore a disposição dos empresários de turismo [e] dos tomadores de decisão de tratarem a cultura com mais sensibilidade no futuro.”

    Propaganda enganosa

    O equívoco vai além dos espaços físicos, abrangendo também a identidade. Na Finlândia, onde está localizada a maior parte das empresas de turismo do Ártico, divulgações errôneas sobre quem são os samis ocorrem desde meados do século 20, quando as pessoas começaram a viajar para esquiar na Lapônia finlandesa.

    O povo sami se tornou “um atrativo e passou a ser utilizado no marketing turístico”, conta Kugapi. A demanda dos turistas para ver samis vestidos em roupas tradicionais tornou-se tão grande que trabalhadores foram orientados a se fantasiar e fingir que eram samis. Agora existe uma imagem única e estereotipada esperada pelos turistas.

    Pior ainda, foram inventados rituais, como o “batismo da Lapônia”, cerimônia em que um “xamã” com vestimentas sami batiza os turistas. Essa prática dúbia ocorre até os dias hoje.

    Tenda sami tradicional, chamada lavvu, sob a dança da aurora boreal em Abisko, na Lapônia sueca.

    Foto de Roberto Moiola, Alamy Stock Photo

    Para os visitantes, buscar experiências conduzidas e aprovadas por samis pode ser complicado. Um grande problema, conta Juuso, é que essas experiências são comercializadas juntamente com produtos não autênticos. “Os visitantes enfrentam uma séria incompatibilidade de produtos que podem ser comercializados sob o mesmo nicho de ‘autenticidade’, embora apenas alguns dos produtos sejam realmente de origem local”, ele afirma. “E os turistas não sabem como distingui-los.”

    O Parlamento Sami na Finlândia prevê um futuro certificado ou selo de turismo sami com critérios compartilhados e específicos do país, bem como um Centro de Informações Turísticas Sami para oferecer orientações aos visitantes.

    “Há uma grande necessidade de criação de critérios, normas e um sistema de monitoramento para garantir a autenticidade, responsabilidade e sustentabilidade ética do turismo com base na cultura sami, conforme definido e aceito pela própria comunidade sami”, diz Juuso.

    Auxiliando turistas a encontrar produtos autênticos

    Esse programa de autenticidade existia na Suécia há cerca de 10 anos. Antes de ser cancelado por falta de financiamento, a iniciativa VisitSápmi concedia o selo “Experiência Sápmi” a empresas que oferecem experiências sami genuínas, éticas e sustentáveis. A organização que incentiva o turismo sustentável também tentou promover “uma publicidade diferenciada sobre a verdadeira identidade de Sápmi, fugindo desse estereótipo focado nas vestimentas”, comentou Lennart Pittja, ex-gerente de projeto do programa.

    Outros esforços semelhantes estão surgindo por toda a região nórdica. O selo O Melhor da Natureza Sápmi premia produtos de turismo administrados pelos samis que atendem aos critérios baseados no programa de sustentabilidade do Parlamento Sami da Suécia, Eallinbiras (“o ambiente em que vivemos” em sami do norte). “Um dos motivos mais importantes para se ter um selo ‘O Melhor da Natureza Sápmi’ é permitir que o próprio povo sami conte sua história à sua maneira”, segundo descrição do site.

    Na Noruega, um projeto colaborativo entre o Parlamento Sami do país e o município de Tromsø foi lançado em 2019 para garantir que as informações sobre a cultura sami sejam respeitosas. O objetivo do projeto, denominado Vahca (“neve fresca”), é “que Tromsø seja um município pioneiro na gestão da cultura sami no turismo”, segundo nota divulgada no site do Parlamento.

    De volta à Finlândia, a organização de turismo Visit Finland divulga as diretrizes do Parlamento Sami do país em seu workshop educacional “Viagem Sustentável à Finlândia”, lançado no ano passado. “Se tivermos conhecimento de práticas antiéticas de turismo sami na Finlândia, entramos em contato com a empresa e discutimos os princípios do turismo sami eticamente responsável com a empresa em questão”, explica Liisa Kokkarinen, gerente do projeto de Desenvolvimento Sustentável da Visit Finland.

    Um pastor de renas sami conta histórias sobre a vida e a cultura sami para turistas em Tromsø, na Noruega.

    Foto de Joanna Kalafatis, Alamy Stock Photo

    Samis indicando o caminho

    O mais importante é que as indústrias do turismo nesses países estão reconhecendo o valor de ter o povo sami na liderança. O Projeto Johtit, cujo nome se traduz como “em movimento”, é um exemplo. Administrado pelo Conselho de Turismo do norte da Noruega e apoiado pelo Parlamento Sami da Noruega, o projeto é uma rede de 21 empresas de turismo de propriedade dos samis que oferecem atividades que vão além dos estereótipos.

    A Gerente de Desenvolvimento Estratégico, Anja Christensen, conta que o projeto surgiu de preocupações sobre como o turismo sami era comercializado, geralmente com um sami vestido em traje tradicional, posando ao lado de uma rena e um lavvu (uma tenda tradicional). “Esta não é a imagem correta para apresentar ao mundo, porque a cultura sami também é uma cultura moderna”, salienta Christensen. “Queremos apresentar a cultura sami tradicional e moderna [e] desenvolver novas experiências turísticas. O conselho também adotou diretrizes fotográficas para garantir que suas imagens “mostrem uma vida autêntica, não apenas a visão de conto de fadas da cultura sami”.

    Na empresa Sápmi Nature, de Pittja, as experiências de ‘camping de luxo’ na Área de Patrimônio Mundial da Lapônia, na Lapônia sueca, se concentram em contar histórias e compartilhar o conhecimento e os valores do povo sami com os hóspedes. Ele comenta que esse tipo de turismo sustentável de pequena escala promove conhecimento e respeito mútuo por sua comunidade, ao passo que beneficia as economias locais. O turismo também pode, segundo ele, “servir de contrapeso a outras indústrias mais prejudiciais”, como mineração, silvicultura e fazendas eólicas, que buscam explorar os recursos naturais de Sápmi.

    Ao longo dos anos, Pittja conta que viu os samis ganharem mais controle sobre como suas culturas são empregadas no turismo. No entanto, ainda são necessários mais empresários samis na indústria de viagens.

    “O turismo veio para ficar. Nós, como comunidades sami, não podemos dizer não ao turismo, isso não está mais em nossas mãos”, conclui Pittja. “Podemos apenas nos envolver mais na criação de um turismo melhor e mais benéfico com base nos valores e práticas indígenas.”

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