Peregrinações podem ser a próxima tendência de viagem no pós-pandemia

Tradicionalmente religiosas, as rotas de peregrinação podem oferecer uma oportunidade de encontrar paz interior e reconexão com o mundo a tipos variados de viajantes.

Depois de mais de um ano de isolamentos forçados devido à pandemia, turistas optam por explorar rotas de peregrinação, como esta retratada na foto, no cume do vulcão Ol Doinyo Lengai, conhecido como “Montanha de Deus”, na Tanzânia.

Foto de Nichole Sobecki, Vii, Redux
Por Kerry Walker
Publicado 1 de ago. de 2021, 07:00 BRT

Assim como muitas pessoas que percorreram a rede de rotas de peregrinação do Caminho de Santiago, Sherly Cho não tinha nenhuma motivação claramente religiosa. Porém ela não imaginava que a jornada de aproximadamente 800 quilômetros entre Saint-Jean-Pied-de-Port, na região francesa dos Pireneus, e Santiago de Compostela, localizada na Galícia, na Espanha, inspiraria grandes mudanças em sua vida.

“Percorrer a rota sozinha foi uma boa escolha”, diz Cho. “Fiz amigos que levarei para a vida toda. Nós compartilhávamos tudo: dormitórios, uma maçã, nossos sentimentos mais íntimos. Percebi que é possível viver sem coisas materiais; elas são um peso. Agora estou reduzindo o tamanho da minha casa e organizando minha vida.”

Mais do que nunca, turistas embarcam em peregrinações, uma tendência que pode crescer no mundo após a pandemia de covid-19, à medida que as pessoas optam por passar menos tempo em aviões ao fazer viagens com maior duração e com propósitos definidos, em vez de pequenas viagens a cidades.

“Nos últimos anos, as reservas para viagens de peregrinação aumentaram significativamente”, afirma Tim Williamson, da empresa de viagens britânica Responsible Travel. “São muito populares entre pessoas que viajam sozinhas, mas muitas famílias também estão optando por elas. O confinamento nos mostrou que a comunidade é importante; as pessoas querem espaço, mas sentem falta das conexões humanas. As peregrinações preenchem muitos desses requisitos.”

No ano antes de a pandemia de covid-19 estagnar o setor de turismo internacional, o Caminho de Santiago testemunhou um número recorde de peregrinos. De acordo com o Centro de Acolhimento ao Peregrino da Catedral de Santiago de Compostela, 347,5 mil caminhantes receberam o Certificado de Compostela (comprovante oficial) em 2019, o que representou um aumento anual de 6%. Os registros também mostram um número crescente de peregrinos solitários, como Cho, e que apenas 40% de todos os peregrinos afirmaram que a religião era a única motivação.

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    Duas pessoas descansam no alto de uma colina com vista para a catedral de Santiago de Compostela, na Galícia, depois de chegarem pelo Caminho de Santiago.

    Foto de Samuel Aranda, Panos Pictures, Redux

    Entre 2016 e 2019, as vendas de pacotes de viagem para todas as rotas do Caminho de Santiago dispararam. O Caminho Português (rotas de peregrinação que tem início em Portugal) teve o aumento mais drástico, de quase 100%. Rotas menos conhecidas estão se popularizando cada vez mais, como o Caminho de Inverno; essa rota alternativa, para os amantes da solidão que chegam no fim do outono e início do inverno, passa por muitas capelas e vinhedos em estilo romanesco na Espanha.

    A previsão é que as reservas para rotas tradicionais também  disparem em 2021. “Esperamos um aumento no número de reservas em 2021 devido ao Ano Jacobeu, ou Ano Santo, quando a celebração em homenagem ao Apóstolo Santiago (que acontece no dia 25 de julho) cai em um domingo. A última vez em que isso aconteceu foi em 2010”, explica Mary Lawless, da empresa Macs Adventure, especializada em caminhadas sem guias. “Assim, os peregrinos que percorrerem o Caminho de Santiago poderão entrar na catedral pela ‘Porta Santa’. E aqueles que visitarem o túmulo do apóstolo receberão indulgência plenária: o perdão de todos os pecados.”

    Remédio natural

    Partir em uma jornada de imersão na natureza — razão cada vez mais citada para se fazer uma peregrinação — era algo comum para os primeiros santos celtas dos séculos 5 e 6, como São Davi. Durante a Idade Média, a cidade galesa que leva seu nome era um destino de peregrinação que concorria com Santiago, na Espanha. O Santuário de São Davi, em sua resplandecente catedral medieval, é o ápice de uma nova rota de peregrinação, com duração de uma semana, inaugurada em 2021, que forja a conexão celta entre a Irlanda e o País de Gales à medida que segue as pegadas santas ao longo das costas castigadas pelas ondas no condado de Wexford e Pembrokeshire.

    “Nessas costas, é possível sentir a conexão espiritual com a paisagem viva”, reflete Iain Tweedale, guia das empresas Journeying e Guided Pilgrimage e que estará à frente dessa nova expedição. “É o que os celtas chamam de ‘lugar estreito’, onde a distância entre o céu e a terra é pequena,” ele complementa. “Após vários dias de caminhada, quando a mente se acalma, passamos a observar os arredores com mais atenção, notar coisas simples como pedras, flores e pássaros como se fosse a primeira vez. A jornada exterior de um lugar a outro passa a ser uma jornada interior, da mente ao coração.”

    Se, assim como Tweedale sugere, os passos lentos da peregrinação costeira nos reconectam a um ritmo que perdemos — onde as marés e as estações, e não o relógio, são nossos pontos de referência — as peregrinações poderiam ajudar a nos curar e fornecer outras perspectivas em um mundo pós-pandemia?

    “A pandemia de covid-19 nos forçou a parar, pensar e questionar nossos pressupostos sobre a vida”, pondera Tweedale. “À medida que saímos do confinamento, as peregrinações se tornam mais relevantes do que nunca, pois nos permitem fazer um balanço da vida e repensar nosso caminho. Algumas pessoas vão lamentar perdas ou repensar relacionamentos. Outras vão agradecer pelas superações.”

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      Mochileiros percorrem a rota de peregrinação Kumano Kodo, na cordilheira Kii, localizada no Japão. A rota, considerada um Patrimônio Mundial pela Unesco, atravessa a península Kii Hanto até o Kumano Sanzan, ou os Três Grandes Santuários de Kumano.

      Foto de Stefan Boness, Visum, Redux

      “A peregrinação moderna nos permite explorar nosso lado espiritual sem precisar ser uma pessoa religiosa”, ele afirma. “Conforme caminhamos, estabelecemos uma união com a natureza. E esse amor e apreço recém-descobertos nos fazem querer protegê-la. Então, peregrinações talvez possam nos preparar para enfrentar as mudanças climáticas, o maior desafio do nosso tempo, após o fim da pandemia de covid-19.”

      De acordo com uma pesquisa de opinião conduzida pelo British Pilgrimage Trust, cerca de metade dos entrevistados citaram bem-estar emocional, conexão com a natureza, espiritualidade ou patrimônio cultural como suas principais motivações. Apenas 13% citaram a prática religiosa — e se muitas das peregrinações atuais são laicas, o que diferencia cada uma dessas jornadas de uma simples caminhada longa?

      “Geralmente há um motivo para a peregrinação — resolver um problema, mudar alguma coisa, abrir mão de outra”, diz Guy Hayward, cofundador da British Pilgrimage Trust e coautor do guia Britain’s Pilgrim Places (Locais de peregrinação na Grã-Bretanha, em tradução livre). Ele acredita que a essência da verdadeira peregrinação é a intenção, estabelecida pelo coração e executada pelos pés.

      “Não há nada intrinsecamente religioso ou laico no ato de se conectar com suas necessidades mais profundas”, ele afirma. “A holy (sagrado) vem do inglês antigo hālig, que significa ‘que traz saúde’. Lugares sagrados podem ser uma árvore antiga ou o topo de uma colina, uma sinagoga ou um círculo de pedras.”

      “Desde tempos imemoriais, peregrinações oferecem um caminho físico com um destino claro, permitindo-nos estruturar nossa busca por direção interior em épocas de mudança e crise”, ele acrescenta.

      Um passo à frente

      Para muitas pessoas, peregrinações são um “investimento”, não necessariamente do ponto de vista físico ou monetário, mas na disposição de se abrir às mudanças e suas consequências. A pandemia de covid-19 apresentou desafios e restrições que poucas pessoas haviam enfrentado antes. O resultado disso é que muitas pessoas buscarão jornadas que possam oferecer mudanças e recompensas terapêuticas.

      “Há muitos sentimentos de dor e luto em decorrência da pandemia que ainda não estão resolvidos”, afirma Dee Dyas, diretora do Centro de Estudos de Peregrinação da Universidade de York e autora do livro The Dynamics of Pilgrimage, (A dinâmica da peregrinação, em tradução livre). “As pessoas estão desesperadas; elas precisam processar suas vidas, encontrar sentido em locais especiais, criar memórias positivas, fazer suas despedidas.”

      “E peregrinações não precisam ser caminhadas longas — existem muitos outros aspectos além disso”, acrescenta Dyas. “As pessoas são programadas para reagir a lugares especiais e recorrer a algo maior que si mesmas. Existem ‘peregrinos por acidente’ que se encaixam na categoria ‘não-religiosa’, mas acabam encontrando iluminação espiritual — até mesmo Deus. Peregrinação é uma metáfora para a vida: a união das jornadas interior e exterior.”

      Em sua forma mais básica, as peregrinações mudaram pouco desde a Idade Média, época em que Chaucer escreveu a coleção de histórias Os contos de Cantuária, sobre um grupo de peregrinos viajando para o santuário de São Tomás Becket— uma obra que acabou resumindo a prática.

      “Três anos depois da morte violenta de Becket (no ano de 1170), 700 milagres foram atribuídos a ele, e os peregrinos se aglomeraram em Cantuária para venerar seu túmulo”, conta Naomi Speakman, curadora da exposição do Museu Britânico, estreada em 2021, Thomas Becket: assassinato e surgimento de um santo. “A peregrinação até Cantuária é parte central da nossa exposição, e Os contos de Cantuária ainda fazem sentido para o público moderno.”

      Thomas Becket não foi o único santo a deixar uma marca permanente nas paisagens da Grã-Bretanha, abrindo caminhos para futuros peregrinos. Com inauguração programada para 2021, as Northern Saints Trails revitalizarão seis rotas antigas ao longo do nordeste do país, prestando homenagem a santos nortenhos, como São CutebertEdano de LindisfarneSanta Hilda.

      “Peregrinos teriam chegado a Durham vindos de diferentes direções na era medieval; é o que essas trilhas refletem”, explica David Pott, coordenador da rota. “A principal motivação naquela época era a busca pela cura. Isso ainda acontece na atualidade, mas de uma maneira diferente. Não é por acaso que muitas pessoas fazem peregrinações após passaram por crises. Eu acredito na frase atribuída a Santo Agostinhosolvitur ambulando (‘resolve-se caminhando’).”

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        Devotos hindus se preparam para se banhar na confluência dos rios Ganges, Yamuna e Sarasvati em Alaabade, no estado indiano de Uttar Pradesh, em 14 de janeiro de 2016. O ritual faz parte do festival Kumbha Mela, realizado em um ciclo de 12 anos, que atrai milhões de pessoas em busca de absolvição dos pecados.

        Foto de Xinhua News Agency, Eyevine, Redux

        Com multidões e manifestações extremas de fé, em muitas partes do mundo as peregrinações podem parecer a antítese de caminhadas para contemplação silenciosa. Como exemplo, há o festival Kumbha Mela, maior encontro de peregrinação do mundo; é celebrado em quatro pontos do Rio Ganges ao longo de um ciclo de 12 anos, onde 120 milhões de hindus se dirigem às águas sagradas, orando pela libertação do ciclo de renascimento. Na Arábia Saudita, a haje movimenta 2,5 milhões de peregrinos muçulmanos até a Grande Mesquita de Meca.

        Israel está recebendo mais peregrinos do que nunca: um recorde de 4,5 milhões em 2019. E, para muitas pessoas, o objetivo da peregrinação é exatamente esses números imensos, a massa da humanidade.

        Se “intenção” é o início e “investimento” é a essência de toda peregrinação, então “gratidão” é a recompensa final: pela vida e pela boa saúde, pela natureza e suas maravilhas. Foi por este último motivo que, em 2019, o fotógrafo Tim Bird decidiu trilhar de bicicleta a então recém-inaugurada St. Olav Waterway, uma rota de peregrinação costeira entre a Finlândia e a Suécia.

        “A peregrinação foi meditativa e espiritual, mas não de uma maneira religiosa”, ele conta. “Gostei da natureza remota, da renovação física após o longo inverno finlandês. Os ventos e chuvas foram desafiadores, mas a vida selvagem foi impressionante: pássaros migratórios, cervos, lebres e, ocasionalmente, alces nadando de uma ilha a outra. O encontro com um bando de grous recém-chegados foi encantador.”

        Em uma era digital frenética, em que frequentemente estamos desconectados do nosso ambiente, dos elementos e de nosso eu mais verdadeiro, o ritmo lento da peregrinação e o espaço físico e mental que ela cria podem nos ajudar a refletir, redefinir nossos objetivos e recomeçar.

        Ao enfrentarmos o longo caminho pós-crise que temos pela frente, podemos nos enxergar como peregrinos em um admirável mundo novo, onde nada é mais poderoso ou necessário do que o simples ato de agradecer e dar um passo de cada vez.

        “Eu acordava às seis da manhã e caminhava oito horas por dia”, relembra Cho. “Nunca me senti mais feliz e saudável do que quando fiz o Caminho de Santiago.”

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