Fotógrafa do urso-polar faminto relembra o que deu errado

Um ano depois, Cristina Mittermeier explica o que ela e sua equipe queriam alcançar com esta imagem de cortar o coração.

Por Cristina G Mittermeier
Publicado 3 de ago. de 2018, 17:26 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Urso-polar faminto vaga por terras descongeladas em arquipélago canadense
Cientistas explicam que o aumento da temperatura global e o derretimento das calotas polares impedem que o animal se alimente adequadamente.

Esta reportagem está na edição de agosto da revista National Geographic Brasil.

As mudanças climáticas de forma lenta e indireta: através de incêndios, secas, geadas e escassez de alimentos. A conexão entre a morte de um animal específico e as alterações no clima raramente é óbvia – mesmo quando o animal está tão depauperado quanto este urso-polar.

O fotógrafo Paul Nicklen e eu estamos empenhados em captar imagens que chamem a atenção para a iminência das alterações climáticas. Não é fácil fazer o registro de tal impacto na fauna silvestre. Com esta foto, nos ocorreu que havíamos encontrado uma forma de ajudar as pessoas a visualizar as possíveis consequências dessa ameaça. Talvez tenha sido uma ingenuidade. A imagem acabou viralizando mundo afora – e as pessoas a interpretaram de modo literal.

Um ano atrás, Paul avistou este urso-polar durante uma viagem a uma remota baía na Ilha Somerset, no Ártico canadense. Imediatamente, ele me pediu que acionasse a equipe SeaSwat, da SeaLegacy. Essa organização, que fundamos em 2014, usa a fotografia para difundir uma mensagem em prol da conservação dos oceanos. No dia seguinte à solicitação de Paul, a nossa equipe voou até um vilarejo inuíte na Baía Resolute. Não havia como saber se encontraríamos o urso ou, em caso afirmativo, se ainda estava vivo.

Foto de Cristina Mittermeier em Uma Expedição Da Sealegacy

Assim que chegamos à baía, em um barco doado à nossa organização, esquadrinhei a praia com os binóculos. Nada vi além de edificações arruinadas, tambores de combustível vazios, e a paisagem desolada do que parecia ter sido um acampamento de pescadores. Não se via o urso em parte alguma. Somente quando ele ergueu a cabeça, conseguimos, afinal, localizá-lo, esparramado no solo, como um tapete abandonado, quase sem vida. Pelo formato do corpo, parecia um macho de grande porte.

Como tínhamos de chegar mais perto, entramos num bote Zodiac e seguimos para a ilha. Protegidos num dos edifícios vazios, ficamos observando o urso. Ele permaneceu imóvel por quase uma hora. Quando, por fim, se levantou, perdi o fôlego por um instante. Paul já me alertara para o estado do urso, mas nada poderia evitar o choque que senti. O pelame do animal, antes branco, agora estava esfiapado e sujo. Do corpo, antes robusto, restavam apenas ossos e pele. Cada um de seus passos era arrastado e dificultoso. Não havia dúvida de que estava enfermo ou ferido e que passava fome. Fiz as fotos e Paul gravou um vídeo. Enquanto o urso se aproximava de tambores vazios de combustível em busca de comida, eu podia ouvir os meus colegas chorando.

Ao postar o vídeo no Instagram, Paul escreveu: “É assim que se morre de fome”. E comentou que, na opinião dos cientistas, os ursos-polares vão ser levados à extinção nos próximos 100 anos. Também se perguntou se a população mundial de ursos-polares, hoje com 25 mil indivíduos, iria morrer da mesma maneira que aquele urso. E Paul instigou as pessoas a fazerem todo o possível para reduzir o seu impacto de carbono e evitar que isso ocorresse. Mas não chegou a dizer que aquele urso em particular havia sido morto por causa das mudanças climáticas.

Ao reproduzir o vídeo, a National Geographic acrescentou legendas. Logo se tornou o vídeo mais visto no site em todos os tempos – nós estimamos por volta de 2,5 bilhões de pessoas. A nossa missão havia sido bem-sucedida, mas restava um problema: tínhamos perdido o controle da narrativa. A primeira linha que se via no vídeo divulgado pela National Geographic dizia “É assim que se morre das mudanças climáticas” – com a expressão “mudanças climáticas” sublinhada pela característica linha amarela da marca. Outros órgãos jornalísticos publicaram manchetes dramáticas, como esta do jornal Washington Post: “‘Ficamos ali chorando’: urso-polar esquelético visto em vídeo e fotos ‘de virar o estômago’”.

“Talvez tenha sido um erro não contar toda a história – que estávamos em busca de uma imagem que fosse uma antevisão do futuro”

Provavelmente não deveríamos ficar surpresos de que as pessoas não estavam levando em conta as nuances que procuramos preservar na história. Mesmo assim, ficamos chocados com a reação. Muita gente expressou gratidão por termos chamado a atenção para as mudanças climáticas, mas outras perguntaram, furiosas, por que não havíamos alimentado o urso ou coberto o animal com mantas ou levado o urso até um veterinário. Tais reações revelam quão desconectadas estão as pessoas em relação à fauna silvestre, à ecologia e até mesmo à geografia. E houve aqueles empenhados em negar as alterações no clima. Para eles, não passávamos de mais um exemplo dos exageros ambientalistas.

Talvez tenha sido um erro não contar toda a história – que estávamos em busca de uma imagem que fosse uma antevisão do futuro e que, simplesmente, nada sabíamos a respeito do que havia, de fato, ocorrido com aquele urso-polar em particular.

Não posso afirmar que esse urso estava morrendo de fome devido às mudanças climáticas, mas de uma coisa eu sei: os ursos-polares dependem, para caçar, de uma plataforma de gelo flutuante. Uma das consequências do aquecimento do Ártico é o desaparecimento, por períodos cada vez mais longos a cada ano, desse gelo flutuante, a banquisa. Isso significa que cada vez mais ursos vão acabar presos em terra firme, em que não podem buscar os leões-marinhos e as baleias que lhes servem de presa – e ali, pouco a pouco, ficam condenados a morrer de fome.

Ao não achar nada nos tambores de combustível, o urso entrou no mar e se afastou nadando. Paul ainda se preocupou com o fato de que, assim, desperdiçaria a pouca energia que lhe restava. Logo ele sumiu numa curva da baía. Nunca mais o vimos, mas esperamos que as imagens desse urso agonizante permitam o debate sobre as mudanças no clima, e ali esse símbolo deve permanecer até que seja resolvido o problema.

Até chegar tal momento, toda vez que depararmos com uma cena parecida, não vamos hesitar em divulgá-la para o resto do mundo – tomando todo o cuidado para que nossas intenções fiquem claras e que não nos escape o controle da narrativa.

Cristina Mittermeier é colaborada da National Geographic como fotógrafa, palestrante e exploradora. Ela é cofundadora, diretora executiva e estrategista visual da SeaLegacy, uma organização sem fins lucrativos voltada para a proteção dos oceanos.

Nota da editora: A National Geographic reconhece que estabeleceu indevidamente uma conexão entre as mudanças climáticas e o urso-polar agonizante na legenda de abertura do vídeo em que aparece o animal. Embora pesquisas científicas tenham estabelecido que há um forte vínculo entre o derretimento do gelo marinho e a morte dos ursos-polares, não há como saber com certeza se esse urso em particular estava à beira da morte.

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