Para salvar as antas, esta pesquisadora criou o maior banco de dados sobre a espécie do mundo
Agraciada com os principais prêmios de conservação da biodiversidade do mundo, Patrícia Medici percorre o Pantanal e outros biomas brasileiros há mais de 30 anos para monitorar o comportamento do maior mamífero terrestre da América do Sul.
“O trabalho que ela realiza, você pode colocar dez pessoas para fazer e não vão conseguir”, confidenciou José Maria Aragão, técnico de campo e braço direito de Patrícia Médici, logo nos primeiros quilômetros de estrada.
Fomos até o local de trabalho acompanhar por três dias a mulher referência mundial em pesquisa e conservação das antas. Era o mês de agosto, mês dos ventos e início da seca na maior planície alagável do mundo, o Pantanal.
Saímos de Campo Grande e durante 300 km abrimos e fechamos um sem número de porteiras de pelo menos 18 fazendas. Quase não há uma rota. A navegação no Pantanal sul mato-grossense nessa época do ano é feita na base da intuição do caminho, habilidade que apenas os que conhecem a região possuem. Por sorte, tínhamos um autêntico waze pantaneiro ao volante da picape e chegamos sem percalços ao Hotel Fazenda Baía das Pedras. É ali, no coração do Pantanal, que Patrícia coordena há dez anos a Iniciativa Nacional para a Conservação Anta Brasileira (Incab) – do Instituto de Pesquisas Ecológicas –, o maior projeto de pesquisa sobre a anta brasileira, cientificamente conhecida como Tapirus terrestris.
O acolhimento do projeto no Baía das Pedras é uma iniciativa da família Jurgielewicz, proprietária da terra que também construiu, por iniciativa própria, um laboratório para estudos da anta no lugar. Um belo exemplo de que ciência é feita de iniciativa, resiliência, suor e apoios.
A fazenda mantém a tradição pantaneira – é praticamente certo avistar animais todos os dias. E é ali onde vive a população controle, como é chamado o grupo que habita a região e serve de parâmetro de comparação de comportamento e vida do animal em outros biomas. “Aqui encontramos a anta como deve ser, na sua condição mais natural”, diz Patrícia. “Basicamente livre de ameaças e onde temos uma população saudável, que se reproduz extremamente bem.”
A ansiedade de acompanhar Patrícia em ação era alta. Afinal, o currículo dela é extenso – já recebeu os prêmios Colombus Zoo Commitent to Conservation, Order of the Golden Ark, Whitley Awards e, em junho deste ano, o National Geographic Society Buffett Award for Leadership in Conservation. Além disso, ela é presidente do Grupo de Especialistas em Antas, uma rede global com mais de 150 pessoas em 28 países dedicada a discutir a conservação dos quatro tipos de Antas existentes.
Quando chegamos, Patrícia nos aguardava no laboratório para explicar como seria a logística dos próximos dias. Meia hora de conversa foi o suficiente para compreender a frase do José Maria, que àquela altura já era chamado de Zé por todos nós. A mulher é um dínamo. Quando percebi, já estávamos na caçamba da camionete do projeto para checar as armadilhas que no dia seguinte percorreríamos.
Patrícia está conectada ao Pantanal. Assim como essa região é o paraíso para a anta, é para pesquisadora também. “É um lugar que para mim funciona como um recarregador de baterias, um laboratório a céu aberto. Aqui somos capazes de coletar algumas pecinhas do quebra-cabeça de informações que jamais conseguiríamos coletar em outro lugar. E é a esperança de que, se todo o resto der errado, aqui temos um porto seguro para esse bicho”, diz a pesquisadora, que cresceu na Mata Atlântica e desde criança teve contato intenso com a natureza.
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Com ela ao volante, percorremos a imensa área onde estão posicionadas 16 armadilhas espalhadas pela fazenda. O sistema criado por ela e Zé possibilita o acesso seguro aos animais e, consequentemente, às peças desse quebra-cabeça. Se uma armadilha está desmontada, o que é comum acontecer por inúmeros fatores como vento ou pela passagem de outro animal, Patrícia e Zé fazem os ajustes: montam a armadilha, colocam o sal para atrair as antas, desfazem as pegadas e revisam a câmera. Uma operação repetida diariamente.
A equipe da pesquisadora já está há mais de uma semana dormindo em barracas na área da fazenda. Ela acorda as 3h30 para as sessões de yoga que ajudam no controle de uma hérnia na cervical. Às 6h, logo após o café da manhã, todos estão prontos na caçamba da camionete para a patrulha das armadilhas – tanto as físicas, que capturam as antas, quanto as fotográficas, que as registram.
Hoje referência mundial, esse trabalho começou com uma trajetória intuitiva e precoce na conservação. Ainda estudante de engenharia florestal, Patrícia participou da fundação do Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê) em 1992, criado para ser um centro de excelência em conservação de espécies. Na lista dos sonhos dos animais com os quais os fundadores queriam trabalhar, a anta apareceu como um animal pouco estudado e que exigia uma intervenção. Foi na anta que Patrícia mirou, começando um projeto pequeno de coleta de informações na Mata Atlântica, bioma de principal atuação do Ipê até hoje. Logo ela descobriu que existiam tantas incógnitas que seria necessário muito mais: era preciso criar metodologias e pontos de partidas para os estudos. E foi assim – dessa história nada romântica, mas com uma lógica por trás, como Patrícia gosta de brincar – que começou a se formar o que é hoje o maior banco de dados sobre anta do mundo.
Neste momento, o objetivo do trabalho é construir uma árvore genealógica da espécie, e entre as pecinhas restantes estão informações sobre reprodução e organização social. Foi essa busca que pudemos acompanhar.
Um dia de campo
No segundo dia tivemos a experiência e a comprovação da enorme quantidade de informações que um ambiente protegido pode proporcionar sobre um animal tão importante para a biodiversidade brasileira. Apesar de ocorrer em todas as regiões do país, no Pantanal as populações de anta estão melhores conservadas.
Acompanhar Patrícia não é fácil, e a frase do Zé não sai da cabeça. Uma hora no volante, outra hora na caçamba, ela se movimenta como se estivesse com adrenalina nas alturas. Logo após a checagem de algumas armadilhas que estavam intactas, veio a primeira emoção.
Encontramos uma jovem fêmea, de cerca de 30 meses, presa na armadilha. Atenção e silêncio total da equipe. O indivíduo já era conhecido, mas eles queriam capturá-la para colocar o colar de GPS e colher mais informações da Donna, como a chamavam. Com cautela, Patrícia se aproxima da armadilha para reconhecer o bicho. A equipe de duas veterinárias e um veterinário aguarda. A aproximação deve ser lenta e silenciosa. Nos agachamos por um tempo. Depois do disparo do dardo anestésico, e apenas quando o animal já está no chão, começa a ação. Foi um trabalho de 40 minutos, com coleta de sangue para ser analisado em laboratório e colocação de colar com GPS. Com ele é possível monitorar à o território por onde a jovem anta caminha. “É um colar que expande. Conforme ela for crescendo, o colar vai expandindo. Se eu conseguir um ou dois meses que este colar se mantenha, já está excelente”, comenta Patrícia.
Um dos grandes desafios nesse momento é não estressar o animal para que o trabalho seja feito com tranquilidade e segurança. O estresse acaba acelerando o efeito anestésico e pode ser um perigo para a equipe em campo. De fato, um encontro com um animal tão grande e estressado não deve ser nada agradável.
Enquanto observava Patrícia, fiquei pensando sobre a dor de cabeça que até mesmo os menores desafios podem trazer. Toda anta carrega muitos carrapatos. Depois de um trabalho intensivo de manuseio, dá para imaginar como é o resultado para os pesquisadores.
Seguimos pelas trilhas e, às 10 da manhã, outra surpresa, pura sorte. Mais uma jovem anta é encontrada. Era a Texas, que não foi tranquilizada – teve apenas seu material biológico coletado com dardos de biopsia. Quando a armadilha é aberta para ela escapar, Texas reluta um pouco, desconfiada, e depois sai em disparada. Seguimos a rotina de revisar as armadilhas. Faltando apenas uma, localizada numa belíssima área de várzea que fica metade do ano embaixo d´água, caminhamos com cautela para a última surpresa da manhã.
Um macho jovem desconhecido da equipe nos aguardava. Batizado de Simon, ele também não foi tranquilizado. O material coletado pelos dardos deve fornecer informações genéticas para uma análise inicial do indivíduo. Soubemos depois que testemunhamos uma das melhores campanhas recentes da equipe no Pantanal: foram 16 capturas em 14 dias de campo.
De tarde, o trabalho seguiu intenso no laboratório próximo à sede da fazenda. A equipe organizava metodicamente as informações colhidas em campo e passava as imagens gravadas pelas armadilhas fotográficas. Dois estrangeiros também participaram dessa expedição. Nascida nos EUA, Emilia Roberts é recém-formada em biologia e conheceu Patrícia por meio de uma palestra do TED Talk, em 2015, quando ela contou sobre o estado de conservação da anta e as ameaças em ambientes degradados, como no Cerrado brasileiro. Encantada, Emilia pediu para acompanhá-la como voluntária nesta temporada no Pantanal. Já o Dr. Gordon Howard Orians é um reconhecido ornitólogo e ecologista americano octagenário com pique impressionante, tão intenso quanto o de Patrícia. Incansável, a pesquisadora ficou sistematizando dados junto com a equipe até oito da noite. Sem parar.
Esse intercâmbio, assim como a comunicação sobre conservação e sobre o papel das antas na natureza é fundamental. Patrícia claramente é uma inspiração para várias gerações. “Eu sou uma profissional da conservação que alguns anos atrás decidi que, para ser feliz nesse caminho profissional, eu preciso estar no campo. Nunca vou conseguir ser feliz como conservacionista no escritório ou numa sala de aula. Então eu acho que aqui, fazendo o que eu sei fazer de melhor, a pesquisa in loco, eu consigo ser esse exemplo”, avalia Patrícia. “Por isso treinamos muita gente, trazemos para esse ambiente, para essa atmosfera onde as pessoas podem ver a gente em ação. Assim, futuros conservacionistas podem ver, se inspirar e levar algo consigo para o futuro. “
Ao todo, já são mais de duas décadas dedicadas a entender esse animal fundamental para a biodiversidade brasileira. Desde 1996, o Incab/Ipê já catalogou 156 antas, a grande maioria, 86, no Pantanal, onde os estudos seguem em andamento. Na Mata Atlântica, com 35 indivíduos, e no Cerrado, com mais 35, os dados já foram processados e as capturas finalizadas. Todos esses anos de acompanhamento são um dos motivos que faz do trabalho de Patrícia referência mundial. Só com tempo é possível criar métodos, coletar dados de qualidade e extrair conclusões contundentes.
“Precisamos desses projetos de longo prazo para construir bancos de dados que possibilitem elaborar estratégias de conservação. Então é isso que estamos fazendo”, diz Patrícia. “A questão da organização social ainda tem pontos nebulosos que a gente precisa desvendar para entender o que é uma população saudável, em comparação com outra que está desmantelada, como no Cerrado.”
A anta fora do paraíso
Mais um dia no Pantanal e seguimos conversando na caçamba da picape enquanto percorremos áreas conservadas de biodiversidade abundante, muito diferentes da situação dos demais biomas brasileiros. No Cerrado, o trabalho do Ipê mostrou que a fragmentação dos habitats não ajuda a construir populações de antas. Na verdade, os dados de destruição, de mortes, de mutações genéticas, da contaminação por agrotóxicos, levaram Patrícia a se questionar, e levantar uma dúvida sobre o papel dos conservacionistas no mundo de hoje: estamos documentando a extinção de espécies ou estamos ainda lutando pela sua conservação? “Gosto de pensar que na contagem final a contribuição está sendo feita”, diz ela.
O próximo passo do Incab em 2020 será em outro terreno árduo, a Amazônia, próximo ao arco do desmatamento. Não será em um paraíso como esse que testemunhamos nos três dias que passamos no Pantanal. “Decidimos que não vamos trabalhar na Amazônia protegida, lá não somos necessários. Somos necessários em áreas antropizadas, onde os bichos estão sofrendo os impactos”, diz Patrícia.
“Gosto de pensar que na contagem final a contribuição está sendo feita”
Com mais de duas décadas abrindo caminhos e criando metodologias, Patrícia carrega hoje a convicção da importância da comunicação para a conservação da anta brasileira. Ela veste diariamente a camiseta com #AntaÉelogio, a mesma hashtag que estampa adesivos nas camionetes de campo. Criar empatia com este animal é, hoje, uma grande estratégia de conservação, segundo a pesquisadora.
A anta merece mais do que a pecha, ainda incompreensível e só vigente no Brasil, de pouca inteligência. A floresta tropical sem esse animal seria diferente. Pelo seu grande porte, ela consome enorme quantidade de frutos e dispersa muitas sementes. Por isso são conhecidas como jardineiras da floresta. “É um animal que, se removido do ambiente, do habitat, perde-se o papel de dispersão de sementes desempenhado com maestria pela anta”, diz Patrícia. “Se esse trabalho não for realizado intuitivamente pelo animal, as florestas não serão as mesmas. Tanto em termos de composição, quanto de estrutura e diversidade. Essa é a principal mensagem que tentamos disseminar.”
Ainda há muito por descobrir sobre as antas brasileiras e é isso que move Patrícia e sua equipe. Saímos do Pantanal energizados por ter convivido com uma das grandes mulheres da conservação no Brasil.
Esta reportagem foi parcialmente financiada pela Fundação Toyota do Brasil. Paulina Chamorro é jornalista e João Marcos Rosa, fotógrafo, ambos colaboradores da National Geographic Brasil. Conheça o trabalhos deles no Instagram: @Pauli_Chamorro e @JoaoMarcosRosa.
Confira o especial Dia Internacional da Mulher, no National Geographic. Domingo, 8 de março, a partir das 18h.