Pandemia impulsiona caça ilegal em Uganda

Leões, girafas e até um gorila de dorso prateado são vítimas recentes do colapso do ecoturismo.

Por Dina Fine Maron
Publicado 14 de jul. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT

O Parque Nacional Murchison Falls é um reduto para as girafas que ainda restam em Uganda. Durante a pandemia do coronavírus, mais moradores locais estão montando armadilhas para capturar animais como antílopes para comer ou vender a carne. As armadilhas são indiscriminadas — no mês passado, guardas florestais em patrulha no parque encontraram sete girafas mortas que haviam sido pegas.

Foto de Ami Vitale

TODAS AS NOITES, homens se infiltram nas florestas que cobrem o noroeste de Uganda. Eles vão de barco, remando para o leste pelo lago Albert, em canoas feitas de troncos escavados, antes de adentrarem a exuberante vegetação da maior área protegida do país, o Parque Nacional Murchison Falls.

Rapidamente descarregam seus equipamentos — armadilhas mortais de diferentes tipos, reaproveitadas a partir de peças de carros antigos. Uma delas, fabricada com cabo de aço em Uganda e do outro lado da fronteira na República Democrática do Congo, requer pouca habilidade para ser manuseada. Elas também são fortes o suficiente para quebrar a perna de um antílope, girafa ou leão. Os animais presos ao chão podem morrer devido a uma combinação de perda de sangue, desidratação e fome. As armadilhas são indiscriminadas — prendem qualquer animal que passe por elas.

As autoridades acreditam que milhares desses dispositivos ilegais foram escondidos em Murchison e nos outros nove parques nacionais de Uganda desde o início dos bloqueios provocados pelo coronavírus em meados de março que acabaram afetando o setor de turismo de vida selvagem. De acordo com Charles Tumwesigye, vice-diretor de operações de campo da Autoridade de Vida Selvagem de Uganda (UWA), a agência registrou 367 incidentes de caça ilegal nos parques entre fevereiro e maio deste ano, mais que o dobro dos casos ocorridos no mesmo período de 2019. E esses números provavelmente não refletem o problema real porque os animais mortos e as armadilhas podem ser levados antes que as autoridades detectem a atividade.

O turismo é um importante pilar da economia de Uganda, movimentando mais de um bilhão de dólares por ano, e o turismo da vida selvagem, em especial, gera milhares de empregos. Mas a súbita perda dos visitantes nos parques, cuja presença acaba ajudando a deter os caçadores ilegais, dificultou as operações dos guardas florestais. Sem turistas, diz Tumwesigye, é mais fácil para os caçadores monitorar a movimentação dos guardas florestais e agir assim que eles deixam determinada área livre. O turismo também financiava todos os esforços contra a caça ilegal. “Devido à incerteza dos funcionários quanto ao recebimento de seus salários, acredito que o apoio moral e o zelo em combater a caça foram reduzidos”, conta ele. As restrições impostas pela pandemia também fizeram algumas pessoas acreditarem — incorretamente — que os guardas florestais não estão mais patrulhando os parques, incentivando a caça, ele acrescenta.

Na maioria das vezes, diz Tumwesigye, os que colocam as armadilhas são moradores que estão lutando para sustentar suas famílias após o colapso do turismo. Não parece estar relacionado às redes criminosas organizadas que impulsionam a caça comercial para obtenção de marfim de elefante, chifre de rinoceronte e outras partes lucrativas dos animais. Os moradores locais querem pegar antílopes e javalis para obter a carne para venda ou consumo próprio.

No entanto, leões, girafas e até um gorila de dorso prateado foram vítimas recentes. Restam apenas cerca de mil gorilas-das-montanhas no planeta e mais da metade vive em Uganda. O país tem apenas cerca de 300 leões e 2 mil girafas. Esses números baixos tornam a perda de cada animal algo grave, diz Paul Funston, diretor do programa de leões e diretor regional para a África Austral na Panthera, organização global de conservação de felinos selvagens — “especialmente leoas adultas e girafas com filhotes”, diz ele, “pois são essenciais às tendências populacionais futuras.”

A caça ilegal associada à pandemia é apenas o mais recente desafio que a vida selvagem em Uganda precisa enfrentar. Muitos dos animais do país morreram entre as décadas de 1960 e 1990, quando um golpe, uma guerra com a vizinha Tanzânia e uma guerra civil de seis anos de duração alimentaram a caça e mantiveram os visitantes fora dos parques. O número de elefantes caiu de cerca de 30 mil para 2 mil e o número de girafas foi reduzido em 90%. Os leões provavelmente também tiveram sua população reduzida. Nas últimas décadas, porém, a expansão do setor de turismo de vida selvagem em Uganda também permitiu financiar esforços contra a caça ilegal.

Girafas no chão, leões vulneráveis

Em junho, guardas florestais da UWA e grupos de parceiros se espalharam por um trecho de Murchison em uma patrulha que durou dois dias. Em uma área que antes era famosa entre os turistas, eles encontraram sete girafas mortas presas em armadilhas, diz Michael Keigwin, fundador da organização sem fins lucrativos Uganda Conservation Foundation, que ajudou os guardas florestais da UWA. “Encontramos cinco em um dia e duas no outro, todas em uma única área”, conta ele. “É muito triste.”

Além disso, atualmente, a segurança dos leões é uma preocupação especial em Murchison e em alguns outros parques nacionais. Antes da pandemia, criadores de gado às vezes envenenavam ilegalmente os leões em retaliação por atacarem seus animais, afirma Tumwesigye. Mas o que ele está vendo agora é diferente.

O veterinário de animais silvestres Ludwig Siefert trabalha com Nicholas Nuwaijuka (à esquerda), guarda florestal da Autoridade de Vida Selvagem de Uganda, e outros no Parque Nacional Queen Elizabeth em 2018 para colocar um rastreador por rádio em uma leoa. O aumento da caça ilegal durante a pandemia conferiu urgência aos esforços de monitoramento dos leões, cujos números continuam caindo em todo o continente.

 

 

Foto de Steve Winter

Em 16 de maio, um leão com o corpo mutilado em várias partes foi encontrado no Parque Nacional Queen Elizabeth. Não há muitas informações disponíveis, mas em diversos países africanos, cabeças, caudas e patas de leões são usadas na medicina tradicional, chamada muti, por causa de sua associação com prosperidade ou boa sorte. A caça por muti envolvendo leões aumentou na África do Sul desde 2016, e agora Tumwesigye e sua equipe estão investigando se isso também está acontecendo em Uganda.

Outros leões que vivem no Parque Nacional Queen Elizabeth não têm sido avistados em suas áreas habituais, diz Ludwig Siefert, veterinário de animais silvestres e líder de equipe da Uganda Carnivore Program, uma organização sem fins lucrativos que pesquisa e monitora os grandes carnívoros do país, incluindo leões, leopardos e hienas. E pelo menos quatro leões foram encontrados presos em armadilhas em Murchison durante os últimos meses, segundo Tumwesigye. Os leões foram libertados e provavelmente sobreviveram, diz ele. “Os leões, como espécies sociais, geralmente sobrevivem mesmo com lesões mais debilitantes, desde que possam se beneficiar do grupo social”, explica Siefert.

Para proteger os leões e rastrear seus movimentos, a UWA, a Uganda Carnivore Program e a Uganda Conservation Foundation estão intensificando esforços para colocar rastreadores via satélite nos leões que habitam os parques nacionais. Nos últimos meses, três leões no parque Queen Elizabeth e um em Murchison foram equipados com esses dispositivos, mas, de acordo com Siefert, a falta de recursos financeiros é um impedimento. “Não temos como bancar a colocação de rastreadores em todos os leões”, diz ele, então os grupos estão se concentrando nos animais que sabidamente passeiam por comunidades onde podem estar correndo maior risco.

A perda de um líder gorila

Até os gorilas-das-montanhas, animais famosos do país, sofreram uma perda recente. No mês passado, caçadores ilegais de antílopes confessaram ter atingido um gorila de dorso prateado de 25 anos chamado Rafiki quando ele supostamente os atacou enquanto caçavam. Provavelmente, havia nove anos que um gorila não era morto em Uganda, porque, pelo menos em parte, as comunidades locais se beneficiam do turismo envolvendo os gorilas e querem protegê-los.

“Esse incidente destaca muitos dos desafios de conservação que enfrentamos”, diz Martha Robbins, bióloga e bolsista da National Geographic Society que dirige um projeto de pesquisa de longo prazo sobre os gorilas-das-montanhas da África.

As expedições realizadas para observação de gorilas movimentam grande parte dos dólares provenientes do turismo em Uganda — sendo diretamente favoráveis à geração de empregos para carregadores, cozinheiros, faxineiros e motoristas de veículos turísticos. Antes da pandemia, visitantes estrangeiros tinham que obter uma autorização para observar gorilas com um guia que custava US$ 600. As comunidades que moram perto dos parques nacionais se beneficiaram de acordos de compartilhamento de receita, que lhes davam parte do dinheiro arrecadado com as autorizações e os ingressos dos parques. Mas a ausência de turistas significa a ausência de dinheiro.

“Dada a perda de receita e renda proveniente do turismo, bem como as dificuldades econômicas gerais causadas pelas rigorosas restrições da pandemia, não é de se surpreender que as atividades ilegais aumentaram nos últimos meses. As pessoas estão tentando sobreviver”, diz Robbins. “A conservação precisa de abordagens multifacetadas, e as necessidades das comunidades locais exigem mais atenção para que todo o castelo de cartas não se desmorone quando o turismo global é interrompido.”

 

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