Pandemia ameaça meio século de iniciativas de proteção aos micos-leões-dourados

Propagação da covid-19 pelo Brasil suspendeu importante programa de vacinação contra a febre amarela para proteger o carismático primata ameaçado de extinção.

Por Jill Langlois
Publicado 25 de ago. de 2020, 16:03 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Micos-leões-dourados em um galho na Mata Atlântica do Brasil. Apesar da recuperação das poucas centenas de ...

Micos-leões-dourados em um galho na Mata Atlântica do Brasil. Apesar da recuperação das poucas centenas de indivíduos na década de 1970 para os atuais milhares, os surtos de febre amarela podem desfazer esse progresso.

Foto de Leo Correa, Associated Press

A PROPAGAÇÃO DESENFREADA da covid-19 pelo Brasil está pondo em risco mais de meio século de iniciativas de conservação para proteger o pequeno macaco de pelagem alaranjada chamado mico-leão-dourado.

Encontrados apenas no Brasil, seu nome é devido à pelagem na cabeça, semelhante à juba de um leão. Na década de 1970, a população de micos-leões-dourados foi reduzida a apenas 200 indivíduos devido a sua captura para o comércio de animais de estimação e à destruição e fragmentação de seu habitat na Mata Atlântica.

Uma série de iniciativas — como pesquisas genéticas e reprodutivas, reprodução em cativeiro e transferências de indivíduos para áreas de habitat com maior necessidade de aumento populacional — recuperou sua população para cerca de 3,7 mil em 2014

[Relacionado: ‘Leia sobre a criação de um corredor ecológico na Mata Atlântica para ajudar o mico-leão-dourado a atravessar uma movimentada rodovia e entrar em um novo território’].

Mas houve outro contratempo: um surto de febre amarela matou, em 2017, aproximadamente 30% das populações recuperadas. Agora, uma iniciativa de vacinação que vem sendo implementada há alguns anos para proteger os macacos da febre amarela foi suspensa por causa da pandemia do coronavírus.

“Foi inesperada a morte dos micos em decorrência da febre amarela”, afirma Russ Mittermeier, diretor de conservação da Global Wildlife Conservation, organização sem fins lucrativos que estuda o mico-leão-dourado desde a década de 1970. Era conhecida a vulnerabilidade de outras espécies de macacos à doença, mas não a de micos-leões-dourados. “Outro surto provocaria um desastre.”

Até 2018, os cientistas não sabiam que a febre amarela poderia adoecer os micos-leões-dourados, mas testes e levantamentos populacionais confirmaram que um surto recente reduziu sua população em 30%.

Foto de Silvia Izquierdo, Associated Press

A população despencou

Em meados de 2017, os micos-leões-dourados começaram a desaparecer.

Primatólogo da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Carlos Ramon Ruiz-Miranda e seus colegas estavam na etapa de conclusão de um levantamento de rotina da população dos micos. O Brasil passava por seu pior surto de febre amarela em 80 anos, que havia assolado todo o sudeste do país, matando mais de 250 pessoas e milhares de macacos na Mata Atlântica.

Quando Ruiz-Miranda não encontrou nenhum mico-leão-dourado na Reserva Biológica de Poço das Antas, principal região de estudos desde 1985, ficou desconcertado.

“Fiquei preocupado e até um pouco assustado porque é uma população grande e, de repente, percebi que algo terrível havia acontecido”, conta ele.

Logo, moradores começaram a entrar em contato com o pesquisador avisando sobre micos-leões-dourados doentes no chão, incapazes de subir nas árvores.

“É muito raro encontrar micos-leões-dourados mortos jogados no pasto”, explica Ruiz-Miranda, que também é presidente da Associação Mico-Leão-Dourado, grupo conservacionista sem fins lucrativos com sede no Brasil. Os macacos não costumam sair da mata e atravessam as pastagens apenas brevemente para passar de um fragmento da mata a outro. Em geral, suas carcaças desaparecem rapidamente por causa de predadores e da elevada umidade do local. “Durante todos os meus anos de estudos, nunca havia observado isso.”

Em maio de 2018, cientistas confirmaram a primeira morte de mico-leão-dourado por febre amarela. No ano seguinte, um estudo mostrou como a situação era desesperadora: o surto de febre amarela dizimou quase um terço da população, restando apenas cerca de 2,5 mil macacos hoje. Na Reserva Biológica de Poço das Antas, no Rio de Janeiro, pesquisadores confirmaram que 30 micos-leões-dourados ainda habitavam o local, mas a população da reserva despencou 70%.

Ruiz-Miranda e outros membros da Associação Mico-Leão-Dourado e da Save the Golden Lion Tamarin, instituição beneficente com sede nos Estados Unidos, decidiram que uma vacina era a melhor chance de salvar a espécie.

Em muitos casos, seria impossível vacinar populações inteiras de primatas, mas como os micos-leões-dourados vivem em uma região pequena e são acompanhados de perto por pesquisadores, pareceu viável, conta Sérgio Lucena, primatólogo e diretor do Instituto Nacional da Mata Atlântica. Para ter êxito, ele explica que “a vacina tem que ser aplicada com precisão e dentro de uma área restrita”.

Depois que a primeira dose de vacinas — uma versão diluída da dose administrada a humanos — foi aplicada em micos-leões-dourados mantidos em cativeiro e considerada segura, o maior obstáculo passou a ser conseguir autorização para aplicá-la nos macacos na mata. Foi a primeira vez que um pedido assim foi feito ao governo e não havia um processo definido para sua aprovação.

Então, enquanto Ruiz-Miranda e sua equipe aguardavam por uma última autorização antes de seguir para a mata e vacinar cinco grupos sociais de macacos, veio a pandemia de covid-19.

Vacinando macacos em plena pandemia

Limitados ao trabalho em casa e sem poder ir à mata para prosseguir com a imunização, os pesquisadores perderam sete meses aguardando.

“Ficamos muito frustrados e irritados com a burocracia”, afirma Ruiz-Miranda. “Telefonávamos a cada semana para tentar algum progresso com a vacinação e ter uma resposta rápida à perda apurada dos micos.”

A insistência finalmente trouxe resultados em agosto. Com a autorização em mãos, a equipe está pronta para voltar ao campo neste mês de setembro. Após a vacinação e transferência dos primeiros grupos, os animais ficarão em observação entre seis meses e um ano antes que outros recebam o mesmo tratamento.

Para proteger os pesquisadores da disseminação da covid-19, equipes compostas por apenas dois profissionais serão enviadas à mata, exigindo mais veículos e aumentando o tempo e os custos necessários para realizar o trabalho. Serão autorizadas apenas três pessoas no laboratório por vez e o uso de máscaras será obrigatório em tempo integral, não apenas ao manusear os macacos.

Não há evidências de que micos-de-leão-dourado possam contrair o coronavírus de pessoas, mas também não há evidências do contrário.

São necessários até três dias para encontrar os micos-leões dourados monitorados com telemetria; aqueles sem radiotransmissores podem demorar dois meses para serem localizados. Uma vez encontrados, são colocados em uma armadilha especial onde são sedados para colher amostras de sangue, materiais para testes de esfregaço e realizar um exame de saúde completo. A vacina contra a febre amarela pode ser administrada em macacos acordados.

Se tudo correr bem, o objetivo é vacinar 500 micos-leões-dourados, população mínima viável para manter a espécie viva na natureza. Ruiz-Miranda espera que o tempo desperdiçado com a covid-19 ainda não tenha afetado demais a saúde da população.

“Quanto menor a população, maior a chance de um pequeno evento catastrófico eliminá-la”, afirma ele. “Se nada for feito, é possível que ocorram extinções locais.”

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