Pesquisadores correm para coletar informações biológicas de animais do Pantanal

A Arca Xenarthra é o primeiro banco de germoplasma da superordem dos tatus, preguiças e tamanduás do mundo. Projeto visa resguardar para gerações futuras informações biológicas de populações chaves ameaçadas.

Por Paulina Chamorro
Publicado 12 de nov. de 2020, 11:51 BRT, Atualizado 12 de nov. de 2020, 22:10 BRT

Flávia Miranda, pesquisadora presidente do Instituto Tamanduá, guarda amostra de pele de animal resgatado no Pantanal em um tanque de nitrogênio líquido. As informações biológicas devem sobreviver por tempo indeterminado e servirão para pesquisas futuras de conservação e manejo da biodiversidade.

Foto de Gustavo Eufigenio Gomes, Instituto Tamanduá

A mistura de sentimentos estava evidente no rosto de Flávia Miranda. Recém-chegada de uma expedição que rodou mais de cinco mil quilômetros em dez dias entre o Pantanal de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, a veterinária fundadora e presidente do Instituto Tamanduá demonstrava uma preocupação permanente com o bioma. “Cenário triste, de uma perda grande do Pantanal, com baixa regeneração ainda. Nunca tinha visto uma queimada tão grande”, disse em entrevista por vídeochamada. “Agora, temos que quebrar cabeça e pensar na regeneração deste ambiente, da fauna e da flora, porque tudo está conectado”

Mesmo assim, era possível perceber a expectativa de dar início a um projeto ainda inédito no mundo. Com as queimadas, Miranda decidiu antecipar a criação de um banco de germoplasma, um esforço para armazenar material biológico em nitrogênio líquido para garantir a diversidade genética de espécies ameaçadas de extinção, principalmente o tamanduá-bandeira, no Pantanal.

A expedição teve como missão implantar uma nova ferramenta para a conservação dos xenarthra, superordem de mamíferos mais antigos do continente sul-americano que engloba os tatus, as preguiças e os tamanduás. O esforço visa preservar informações biológicas de populações cruciais para a manutenção de espécies inteiras em tempo reduzido. “As estratégias de conservação vêm mudando, conforme muda a necessidade de preservar. E estamos vendo a importância de conservar unidades evolutivas significativas, que a gente chama de crio zoo”, disse ela. “Recentemente, descrevi seis novas espécies de cyclopes, os tamanduaís. Mas foram dez anos para estudar a taxonomia deles. Quando não temos esse tempo, começamos a trabalhar com o crio zoo.”

A ideia do projeto, chamado provisoriamente de Arca Xenarthra, já vinha sendo pensada pela equipe do Instituto Tamanduá para ser estabelecida na Bahia, no Piauí e no Pantanal, áreas de atuação da ONG onde seriam criados protocolos para a coleta de material das espécies.

Só que a agressividade e a expansão dos incêndios no Pantanal em 2020 aceleraram tudo. Virou um projeto de emergência.

“Com a perda de quatro milhões de hectares e essa quantidade de animais queimados, e em áreas extremamente importantes de variedade genética, como [os municípios de] Barão de Melgaço e Miranda, de forma emergencial criamos esta expedição para coletar os animais que estavam chegando nesses resgates”, explica a pesquisadora.

O Pantanal Chama, com Luan Santana, no National Geographic
O cantor apresenta uma live musical em prol do bioma devastado pelas queimadas no dia 22 de novembro, às 17h.

As características genéticas do tamanduá-bandeira no Pantanal, conta Miranda, são únicas desse ambiente. E para ter sucesso em uma etapa de refaunação, o processo de restaurar a fauna, a compatibilidade é extremamente importante.

Em uma caminhonete, Flávia Miranda e Alexandre Martins, biólogo vice-presidente do Instituto Tamanduá, seguiram por estradas no interior do Pantanal Norte e Sul, ajudando no resgate dos animais e visitando centros de acolhida de animais selvagens.

Além dos dois pesquisadores, o veículo carregava o equipamento necessário para o trabalho em campo em diferentes situações – de anestesia a armazenamento de células vivas em botijões de nitrogênio líquido. Tudo isso em pleno Pantanal pegando fogo.

Como é feita a coleta

Ao todo, os pesquisadores coletaram material de quinze animais – entre eles, tatus, tamanduás-mirins e, principalmente, tamanduás-bandeira. O processo é feito sempre com animais vivos e passa pela anestesia inalatória e uma biopsia de pele. Depois de retirada, a amostra é colocada em geladeira por três horas antes de ser congelada em botijões com nitrogênio líquido.

É uma amostra de pele de meio centímetro que faz toda a diferença.

“Com essa amostra conseguimos separar célula de tecido conjuntivo, o fibroblasto, que vai dar origem a outras células.”

O grande desafio do Arca Xenarthra é manter as células dos animais vivas dentro do crio protetor, o tubo que contém a amostra.

Já existe experiência semelhante com grandes felinos e com o cervo-do-pantanal, um projeto liderado pelo professor Dr. José Mauricio Barbanti, coordenador do Núcleo de Pesquisa e Conservação de Cervídeos (Nupece), na Universidade Estadual Paulista, em Jaboticabal (SP). “Ele é o grande mentor sobre germoplasma no Brasil”, conta Flavia.

O material coletado pelo Instituto Tamanduá ficará preservado no mesmo núcleo, em Jaboticabal. A próxima fase será desenvolver um trabalho para manter as células vivas, se reproduzindo, e verificar se o crio protetor funcionou.

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    Junto com o material biológico, também são catalogadas as medidas dos animais. 

    Foto de Gustavo Eufigenio Gomes, Instituto Tamanduá

    Uma amostra de cerca de meio centímetro de pele é retirada do animal, neste caso, um tamanduá-bandeira.

    Foto de Gustavo Eufigenio Gomes, Instituto Tamanduá

    As quinze amostras coletadas agora em outubro “valem ouro”. Se tudo der certo, o banco de fibroblastos estará disponível por tempo indeterminado para pesquisadores estudarem a variabilidade genética e a as características biológicas dos animais do Pantanal, mesmo que esses venham a desaparecer. As informações serão essenciais

    A rede de parceiros para levar a cabo a experiência inédita envolveu o Nupece, o Centro de Recuperação de Animais Silvestres de Campo Grande, a Universidade Federal de Mato Grosso, o Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul, a Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso, a Universidade Estadual de Santa Cruz, da Bahia, e o ICMBio.

    Os recursos para a viagem são do próprio Instituto, frutos de doações de instituições e empresas e usados para momento de emergência como este.

    Ao longo do caminho, os pesquisadores também aproveitaram o grande número de animais atropelados para coletarem material genético para outro projeto, o Genoma Xenathra, cujo objetivo é criar um banco de informações genéticas compartilhado entre pesquisadores de outros países, como Peru, Colômbia e Equador. Como não envolve imobilização nem sedação dos animais, o procedimento é mais simples.

    Foram 50 amostras de animais atropelados, número que revela um pouco impacto na fauna pantaneira. Flávia, que cresceu no Pantanal e deu início aos seus estudos e projetos nesse bioma, nunca tinha visto tantos animais nessa situação.

    Novas frentes de conservação

    Agora, os trabalhos pós-fogo no Pantanal envolvem a alimentação dos animais sobreviventes. Em um segundo estágio, os pesquisadores tentarão reintroduzir e restaurar o ambiente.

    O biólogo Alexandre Martins ajusta o equipamento de sedação do animal.

    Foto de Gustavo Eufigenio Gomes, Instituto Tamanduá

    A veterinária Flávia Miranda mostra o tatu-peba que teve uma amostra de pele recolhida e armazenada.

    Foto de Gustavo Eufigenio Gomes, Instituto Tamanduá

    O trabalho de Flávia Miranda, retratada na série de reportagens Mulheres na Conservação, tenta tirar lições do grupo de mamíferos mais antigo do continente americano. Os xenarthra estão por aqui há pelo menos 60 milhões de anos e sobreviveram a sete épocas geológicas, mas estão gravemente ameaçados pela espécie humana. Das 19 espécies que ocorrem no Brasil, três estão classificadas como vulneráveis à extinção e uma em perigo. Algumas espécies – como o tamanduá-bandeira, que já foi extinto no Pampa e corre risco de desaparecer da Mata Atlântica e da Caatinga – serão essenciais para a regeneração dos ambientes queimados no Pantanal.

    O momento é de uma mistura de sentimentos. Flávia me diz que se sente triste, mas, ao mesmo tempo, fortalecida para seguir depois da expedição. Por vezes se emociona. Não só na vídeo-chamada, mas em outras conversas que tivemos ao longo dos intermináveis dias de fogo e destruição cujos danos ainda são incalculáveis no Pantanal.

    Ao encerrar a entrevista, ela me conta que havia acabado de receber um telefonema do Piauí. Colaboradores do projeto que estuda tamanduás-mirins no Nordeste a avisaram que um dos animais que receberam coleiras de monitoramento tinha virado ensopado. Justo em uma das comunidades onde os pesquisadores instalaram uma base do Instituto Tamanduá e trabalhavam na educação ambiental da população.

    “É a prova que temos que seguir trabalhando”, me disse.

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