Está faltando uma parte enorme da crosta terrestre, e agora talvez saibamos o porquê
Um quinto da história geológica da Terra pode ter desaparecido porque as geleiras de todo o planeta enterraram as evidências.
O Grand Canyon é uma enorme biblioteca geológica, com camadas rochosas que contam muito da história da Terra. Curiosamente, uma camada de tamanho considerável que representa algum ponto entre 250 milhões de anos e 1,2 bilhão de anos está faltando.
Conhecida como a Grande Inconformidade, essa enorme lacuna temporal não é encontrada apenas nessa famosa fenda, mas também em locais do mundo inteiro. Em uma camada, temos o Período Cambriano, que teve início há aproximadamente 540 milhões de anos e deixou para trás rochas sedimentares cheias de fósseis de vida complexa e multicelular. Diretamente abaixo, temos rochas de embasamento cristalino livre de fósseis, que se formaram cerca de um bilhão ou mais de anos atrás.
Então para onde foi toda a rocha que pertence ao intervalo desses períodos de tempo? Utilizando diversas linhas de evidências, uma equipe internacional de geocientistas calcula que o ladrão tenha sido a Terra Bola de Neve, um período hipotético em que o planeta foi coberto de gelo em grande parte, se não todo.
De acordo com a equipe, nos intervalos entre esses bilhões ou mais de anos, até um terço da crosta terrestre foi serrada pelas geleiras que vagavam pela Terra Bola de Neve e também por suas capacidades erosivas. O sedimento resultante foi despejado nos oceanos cobertos de lama, onde foi então sugado para o manto por placas tectônicas de subducção.
Efetivamente, em muitos lugares, a Terra enterrou as evidências de cerca de um quinto de sua história geológica, a equipe discute na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences. A noção é elegante, mas provocante, e os próprios autores preveem que alguns geocientistas demonstrarão ceticismo.
“No entanto, acredito que temos provas extraordinárias para corroborar essa afirmação,” diz o líder do estudo, C. Brenhin Keller, membro pesquisador de pós-doutorado no Centro de Geocronologia de Berkeley.
Fantasmas geoquímicos
Embora suas nuances, gatilhos e mecanismos de desligamento continuem sendo discutidos, a ideia de que a Terra tenha sido uma gigantesca e rígida “bola de neve” cerca de 700 milhões de anos atrás está sendo cada vez mais aceita pela comunidade científica. E, de forma semelhante ao que vemos na Antártida hoje, muitas das geleiras da Terra Bola de Neve teriam sido poderosos agentes de erosão: A pressão sobrejacente do gelo cria bases molhadas que movem o sedimento, apesar das temperaturas extremamente baixas na superfície.
A Grande Inconformidade, por sua vez, foi muitas vezes indicada como uma característica erosiva, mas alguns geólogos rejeitaram a ideia de essa enorme quantidade de crosta da Terra ter sido varrida tão completamente.
No entanto, Keller encontrou novas pistas escondidas em antigas zircônias. Esses resilientes minerais prendem as condições geoquímicas de seu ambiente quando se cristalizam, e os cientistas têm a possibilidade de diferenciá-las bilhões de anos depois para descobrir como a Terra foi um dia.
Especificamente, essas zircônias contêm vários isótopos radioativos que conservam o registro. Isótopos de urânio permitem que os pesquisadores descubram as eras de formação dos cristais com notável precisão. Outros, como os isótopos do háfnio, revelam o que estava acontecendo com a crosta e o manto, pois determinados isótopos preferem uma configuração geológica a outra.
Utilizando uma abundância de zircônias, Keller e sua equipe cuidadosamente desenrolaram a evolução geoquímica da crosta terrestre do período de 4,4 bilhões de anos. Eles viram que uma mudança geoquímica colossal ocorreu no teórico início das glaciações em todo o planeta no período da Terra Bola de Neve, que só pode ser explicada se grande parte da crosta terrestre estivesse sendo reciclada em novos reservatórios de magma.
Isótopos de oxigênio nessas zircônias indicaram que a crosta também sofreu alterações hidrotérmicas de baixas temperaturas. Isso significa que era o topo da crosta—em contato com água e gelo—que estava sendo eliminado e subduzido, não a parte mais profunda.
Juntas, essas evidências sugerem que um imenso evento de erosão aconteceu na superfície. Embora essa erosão não tenha ocorrido de maneira uniforme no planeta, ela corresponde a uma camada sedimentar média de 3,0 a 4,8 quilômetros de profundidade sendo varrida.
Descobertas fortuitas em sedimentos suspeitos
A evidência geoquímica é poderosa, mas discussões do acaso em uma recente conferência científica fez cada futuro coautor perceber que há mais nessa história.
Primeiro, “cerca de 600 a 700 milhões de anos atrás, a Terra perde suas crateras,” observa o coautor do estudo, Bill Bottke, cientista planetário e especialista em asteroides no Instituto de Pesquisa do Sudoeste em Boulder, Colorado. Algumas crateras antigas ainda existem em núcleos continentais estáveis, chamados de crátons, mas são poucas e distantes umas das outras.
A explicação fácil para esse mistério também era um gigantesco evento de erosão, mas, até agora, evidências para isso foram difíceis de serem encontradas. Diferentemente de muitos outros mundos, a “Terra faz um ótimo trabalho em apagar os rastros do passado,” diz Bottke. Felizmente, a geoquímica de Keller deixou claro que a Terra Bola de Neve fornece uma explicação natural.
Então, houve esse grande aumento nas taxas de sedimentação no início do período Cambriano. Todo esse novo sedimento precisava de bastante espaço para cair, algo que só teria sido possível se níveis enormes de erosão tivessem acontecido antecipadamente, diz o coautor Thomas Gernon, professor associado de geociências na Universidade de Southampton.
Como os pesquisadores indicam, um problema com seus dados é que ainda existe uma lacuna de tempo de muitos milhões de anos entre o final previsto do período da Terra Bola de Neve e o início do período Cambriano. O motivo para a formação de novas camadas de rocha ter levado tanto tempo para começar após toda aquela erosão ter terminado não está claro.
Embora provavelmente sejam diversos fatores, uma possibilidade é que a erosão da Terra Bola de Neve tenha sido tão significativa que não sobrou muita topografia para erodir quando tudo acabou. O planeta simplesmente precisava produzir mais terra primeiro, e isso leva tempo.
A teoria de tudo
Compreensivelmente, nem tudo se encaixa perfeitamente, mas a narrativa do estudo é “bastante plausível,” e seus argumentos são “bem inteligentes,” diz Ian Fairchild, professor emérito de geociências na Universidade de Birmingham, que não participou da pesquisa.
Bottke espera que a equipe esteja certa, mas, de qualquer forma, está feliz com o fato de que esse artigo contribuirá para o debate sobre um prolífico mistério geológico.
“Essa conversa é o que ajuda a impulsionar a ciência,” diz ele.
Caso seja validada, as implicações dessa história podem ser consideravelmente significativas. Afinal, esse estudo sinaliza que vida complexa surgiu pela primeira vez quando a monstruosa hora da refeição do período da Terra Bola de Neve chegou ao fim. As geleiras teriam esculpido áreas marinhas rasas, como fiordes, que poderiam ter sido refúgios para a vida, conforme o planeta aquecia novamente. Esse colossal consumo de crosta também pode ter coincidido com grandes alterações geoquímicas e ambientais que foram possivelmente benéficas para a evolução biológica.
Em essência, existe a possibilidade de que a diversificação de animais multicelulares seja consequência direta da destruição da crosta do planeta por antigas geleiras.