Pegadas antigas sugerem existência de parente misterioso dos humanos

Há muito tempo consideradas rastros de urso, pegadas em um sítio arqueológico na Tanzânia sugerem que os primeiros humanos andavam sobre dois pés de maneiras surpreendentemente diferentes. Mas ainda há muito a ser compreendido.

Por Maya Wei-Haas
Publicado 9 de dez. de 2021, 07:00 BRT
Ancient Footprint

Estas imagens mostram pegadas de 3,66 milhões de anos encontradas em um local na Tanzânia. Os pesquisadores que estão estudando as pegadas acreditam que podem ter pertencido a um parente humano primitivo não identificado com um estranho “andar cruzado”.

Photographs by Austin C. Hill and Catherine Miller

A chuva caía entre as cinzas vulcânicas recém-depositadas no norte da Tanzânia, há aproximadamente 3,66 milhões de anos. Antes que o solo ficasse completamente seco — possivelmente enquanto o vulcão ainda fumegava — três antigos parentes humanos passeavam pelos sedimentos úmidos, deixando suas marcas nas cinzas que se encontravam em lento processo de cimentação.

Ao serem descobertas, essas pegadas fossilizadas abalaram o mundo da paleontologia na década de 1970. Pertencentes a indivíduos da mesma espécie do famoso hominídeo do sexo feminino chamado Lucy, Australopithacus afarensis, as pegadas foram a primeira evidência clara de nossos ancestrais caminhando apenas sobre os pés.

Recentemente, uma nova análise de um conjunto de impressões há muito esquecidas nas proximidades sugere que esses primeiros humanos não estavam sozinhos. Se os cientistas estiverem certos, um misterioso hominídeo que andava em postura ereta também deixou sua marca nas cinzas.

“É possível imaginá-los observando a paisagem, observando uns aos outros”, afirma Ellie McNutt, paleoantropologista da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, e principal autora de um novo estudo que documenta as impressões no periódico Nature.

Há 45 anos, a paleoantropologista britânica Mary Leakey liderou a equipe que descobriu os cinco curiosos vestígios que podem pertencer a hominídeos. A maneira como estavam dispostas as pegadas fazia com que parecessem ter sido deixadas por um bípede que caminhava cruzando um pé na frente do outro, “aparentemente mancando”, descreveram Leaky e seu colega Richard Hay.

Para dizer de maneira mais elegante, “uma outra descrição dessas pegadas seria como o andar de uma modelo”, diz McNutt.

Ainda não se sabe quem deixou essas pegadas — e se o padrão de caminhada sugerido era de um indivíduo que estava mancando ou se possuía uma postura regular. Alguns cientistas ainda não estão convencidos de que há evidências suficientes para poder afirmar que outra espécie humana coexistiu com os A. afarensis. Mas, se confirmadas, as enigmáticas pegadas podem conter pistas sobre as diversas maneiras como os primeiros humanos caminhavam sobre duas pernas.

Caminhar sobre dois pés já chegou a ser considerado um comportamento derivado de uma combinação específica de características físicas. Mas, com o tempo, os cientistas foram percebendo que há mais de uma maneira de ser bípede, e este novo estudo sugere ainda mais diversidade, observa o paleoantropologista William Harcourt-Smith, da Universidade da Cidade de Nova York, que não integrou a equipe do estudo.

“Isso em si é empolgante — seja um hominídeo ou não, é muito interessante.”

O caminhante trôpego

As cinco pegadas se encontram em um sítio conhecido como sítio de Laetoli — uma zona de cinzas vulcânicas na qual um grupo de animais ancestrais vagava, entre os quais estão parentes de elefantes e rinocerontes e até pequenas galinhas-d’angola. Leakey e sua equipe encontraram as pegadas dos excêntricos caminhantes em uma zona de Laetoli, conhecida como sítio A.

Essas pegadas caíram no esquecimento científico apenas dois anos depois de terem sido descobertas, quando os pesquisadores encontraram os rastros de A. afarensis perfeitamente preservados nas proximidades do sítio. A análise na década de 1980 sugeriu que os rastros entrecruzados do sítio A poderiam ter sido deixados por um urso caminhando em postura ereta — o que fez com que o interesse científico da descoberta diminuísse ainda mais.

McNutt soube da curiosa trilha formada por essas pegadas décadas depois. Na ocasião ela estudava a evolução do calcanhar humano em seu trabalho de doutorado e utilizava os ursos como modelo, então tinha a capacidade ideal para determinar que tipo de criatura deixou as pegadas de Laetoli.

McNutt juntou-se a Benjamin e Phoebe Kilham do centro de resgate de animais Kilham Bear Center, em New Hampshire, Estados Unidos, para pesquisar a locomoção dos ursos-negros. Depois de quase 51 horas de análise de vídeo, os pesquisadores concluíram que é extremamente raro os ursos andarem sobre as patas traseiras. A probabilidade de um urso dar quatro passos consecutivos em postura ereta, como observado nas gravuras de Laetoli, é de apenas 0,003%. “Isso simplesmente não acontece”, diz McNutt.

Pegada esquerda de um jovem urso-negro no Kilham Bear Center em Lyme, estado de New Hampshire.

Foto de Ellison McNutt

Para obter mais pistas sobre a identidade do misterioso caminhante, a equipe voltou ao local de Laetoli, redescobrindo e reescavando sua trilha. Em certo sentido, eles estavam seguindo os passos de Mary Leaky, revela o autor do estudo Charles Musiba, da Universidade do Colorado em Denver, nos Estados Unidos, que foi aprendiz de Leakey quando ainda era estudante de graduação.

“Visitar aquele sítio trouxe muitas emoções”, diz Musiba. Enquanto trabalhava, Musiba tentou imaginar o que Leakey e outros pensaram quando descobriram e analisaram as pegadas.

Desta vez, no entanto, a equipe estava equipada com tecnologia do século 21. Eles utilizaram digitalização a laser e fotogrametria tridimensional para documentar cada pegada, compararam as medidas coletadas com as outras pegadas de Laetoli, pegadas fossilizadas mais recentes do sítio Engare Sero, na Tanzânia, bem como impressões modernas de humanos, ursos, e chimpanzés.

Extraindo informações

A análise revelou que as pegadas do sítio A não foram feitas por ursos ou chimpanzés e eram mais semelhantes a pegadas de hominídeos. No entanto, as dimensões da impressão diferiam muito daquelas encontradas em rastros de A. afarensis em Laetoli, sugerindo a presença de uma segunda espécie de hominídeo na região.

Os resultados se encaixam na imagem cada vez mais complexa de nossos parentes antigos. Cada espécie recém-descoberta possuía uma gama surpreendente de características. Segundo Musiba, pode haver ainda mais informações a serem descobertas sobre os A. afarensis. O grupo possui uma ampla gama de características, talvez sugerindo que havia mais de uma espécie convivendo no local.

Definitivamente, afirmar que as pegadas pertenciam a uma nova espécie de hominídeo, ou que o caminhante era, de fato, de outra espécie, é “uma possibilidade realmente intrigante”, mas difícil de descobrir apenas com as pegadas, diz David Raichlen, biólogo evolucionário da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos.

Alguns cientistas estão menos convencidos sobre a possibilidade de haver evidências de outra espécie de hominídeo em Laetoli. “Meu coração quer acreditar, mas meu cérebro diz que não”, afirma Matthew Bennett, geólogo da Universidade de Bournemouth, na Inglaterra, que se especializou em rastros fósseis. Uma de suas grandes preocupações são os poucos vestígios encontrados no sítio A até agora. Das cinco pegadas, apenas duas são marcas do pé por inteiro.

Em um estudo publicado no início deste ano, Bennett e seus colegas descobriram que é necessária a análise de um mínimo de 10 a 20 pegadas para caracterizar adequadamente as variações entre as pegadas de um único indivíduo — e muito mais são necessárias para tirar conclusões sobre um grupo mais amplo de indivíduos.

Mais pegadas também são necessárias para entender a peculiar passada cruzada do indivíduo. Um terreno irregular ou escorregadio pode forçar um passo desequilibrado, reconhece McNutt, mas acrescenta que isso poderia ser uma característica do caminhar desse indivíduo — ou mesmo uma característica de toda uma espécie de hominídeo.

Exemplares de pequenas dimensões como essas não são incomuns na paleontologia. “Assim é a vida de quem trabalha com pegadas desse período”, comenta Raichlen. “Não se consegue um tamanho de amostra grande para trabalhar, então extraímos o máximo de informações possível das pequenas amostras.”

Bennett afirma que ainda há mais informações que poderão ser descobertas sobre os rastros de Laetoli. A equipe comparou as medidas individuais das pegadas, incluindo largura e comprimento, mas as medidas e proporções não são capazes de oferecer toda a informação complexa que uma pegada possui, observa o geólogo. Muitos cientistas, em vez disso, usam as formas tridimensionais de todas as pegadas de um grupo para produzir uma pegada padrão, que pode ser usada para estudar variações “pixel por pixel, elemento por elemento”, explica ele.

Bennett também observa que, assim que ele e outros criarem essas pegadas padrão a partir da análise de conjuntos de pegadas dos A. afarensisde de Laetoli, a comparação com as pegadas do sítio A deve ser bastante direta.

A equipe de McNutt tem mais planos para o sítio A, incluindo uma operação de busca por outras pegadas utilizando radar de penetração no solo para procurar pegadas escondidas nas cinzas de forma não destrutiva. Musiba está otimista: “estou convencido de que haverá mais pegadas”.

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