Por que o câncer de mama se espalha mais agressivamente durante o sono?

Mais células cancerosas estão presentes na circulação sanguínea durante a noite, sugerindo que o horário do dia pode desempenhar um papel no diagnóstico e no tratamento.

Por Sanjay Mishra
Publicado 19 de jul. de 2022, 08:27 BRT
Esta imagem de microscópio eletrônico de varredura revela um aglomerado de células tumorais circulantes (CTC)

Esta imagem de microscópio eletrônico de varredura revela um aglomerado de células tumorais circulantes (CTC), observado por dentro dos filtros de um dispositivo microfluídico utilizado para processar amostras de sangue. Cada célula é proveniente do mesmo paciente. Esse aglomerado de células metastáticas, que é menor do que um ponto final em uma página, flutua pelo sangue e se instala em tecidos saudáveis, permitindo que o câncer se espalhe. 

Foto de Martin Oeggerli

Mais do que apenas um cronômetro biológico de 24 horas que nos faz adormecer à noite e despertar pela manhã, o relógio mestre embutido no cérebro humano também controla a flutuação hormonal diária, regula a temperatura corporal, indica a fome e programa a digestão, entre centenas de funções fisiológicas. Agora, um novo estudo de pacientes com câncer de mama revela que as células cancerosas aproveitam esses ciclos hormonais para se espalhar durante o sono.

Os cânceres se espalham em novos locais quando as células se separam do tumor original e se deslocam a tecidos distantes através dos sistemas circulatório ou linfático depois de escapar pelas paredes dos vasos sanguíneos. Essa disseminação ou “metástase” causa a maioria das mortes por câncer. Os cientistas acreditavam que essas células tumorais circulantes livres, ou CTCs, fossem liberadas continuamente ao longo do dia na corrente sanguínea. Mas um novo estudo revelou que, em pacientes com câncer de mama, a maioria das CTCs é liberada durante a fase tardia do sono, pouco antes do nascer do Sol, e não durante as horas ativas do dia. 

“Quando o paciente está adormecido, o tumor desperta”, afirma Nicola Aceto, oncologista molecular do Instituto Federal Suíço de Tecnologia (ETH), em Zurique, na Suíça, que liderou o estudo. 

A nova pesquisa fornece informações sobre os mecanismos biológicos que permitem que o câncer se espalhe, além de uma observação inestimável que pode ser utilizada por médicos para rastrear o crescimento e a metástase do câncer ao coletar amostras de sangue em determinados horários. 

“Demonstramos claramente que o momento de uma biópsia é muito relevante para um melhor diagnóstico”, observa Zoi Diamantopoulou, bióloga de células cancerosas do laboratório de Aceto e autora principal do estudo.

Os cientistas fizeram questão de esclarecer que o estudo não significa que os cânceres sejam causados pelo sono ou pelo repouso. O que foi revelado é que, uma vez estabelecido o câncer, sua progressão é afetada pelo sono e pelas alterações hormonais associadas. “Para pacientes que já têm câncer, o sono contínuo é vital para garantir que o restante do organismo fique fortalecido o suficiente para suportar o tratamento e combater a doença”, afirma Harrison Ball, pós-graduando da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, convidado a comentar o estudo de Aceto. 

O sono promove um sistema imune forte, o que  ajuda a proteger contra o câncer. “Nosso sistema imune alcança seu auge quando dormimos o suficiente”, reitera Sunitha Nagrath, engenheira química da Universidade de Michigan Ann Arbor, nos Estados Unidos, que desenvolve mecanismos para isolar e estudar células raras de pacientes com câncer. “O câncer pode se espalhar agressivamente durante a noite, mas o organismo pode enfrentá-lo se possuir um ótimo sistema imune.” 

As conclusões do estudo preenchem uma lacuna crucial nos conhecimentos da biologia do câncer, “sobretudo por indicar que as CTCs tendem a ser mais numerosas e agressivas à noite”, observa Francis Lévi, oncologista da Universidade Paris-Saclay, na França, que passou as três últimas décadas estudando como ritmos circadianos influenciam a saúde e a doença. As próprias contribuições de Lévi incluem a demonstração de que a toxicidade e os efeitos colaterais de certos medicamentos contra o câncer podem ser reduzidos alterando o momento em que são administrados – um campo atualmente conhecido como cronoterapia – e levando em consideração que esses momentos divergem entre homens e mulheres. 

“Ainda serão necessárias décadas e, provavelmente, pesquisas clínicas futuras para os médicos perceberem que o horário do dia tem relevância”, afirma Christoph Scheiermann, imunologista da Universidade de Genebra, na Suíça. Contudo, com base nesse estudo, a amostragem de sangue nos momentos propícios pode ter efeitos diagnósticos imediatos, acredita Scheiermann. 

Como o câncer de mama influencia os ritmos circadianos?

Os cientistas estudam os ritmos biológicos do ciclo de vigília e sono, ou cronobiologia, desde o século 18. O astrônomo francês Jean Jacques d’Ortous de Mairan demonstrou pela primeira vez, em 1729, que folhas da planta dormideira continuaram abrindo e fechando durante o ciclo de 24 horas de dia e noite, até mesmo quando mantidas em escuridão permanente, sugerindo que a planta tinha um relógio interno que lhe permitia controlar o tempo. Relógios biológicos semelhantes funcionam sob sinais da luz solar em todos os vertebrados, plantas, fungos e bactérias, mantendo-os em sincronia com o ambiente, o que explica por que alguns animais, como gatos, são noturnos e algumas algas apresentam bioluminescência após o pôr do sol. 

Um relógio mestre no cérebro humano não é uma noção abstrata. Esse relógio é formado por um conjunto de aproximadamente 20 mil neurônios de “células-relógio” localizadas nos núcleos supraquiasmáticos do hipotálamo anterior, que regula um ciclo de 24 horas de mudanças fisiológicas e comportamentais denominadas ritmo circadiano (do latim circa diem, “cerca de um dia”). Esse grupo de neurônios recebe sinais de luz da retina e sincroniza o movimento dos osciladores  em outras regiões do cérebro e órgãos, incluindo fígado e rim, ligando e desligando uma infinidade de genes.

Em 2017, Jeffrey Hall, Michael Rosbash e Michael Young receberam o Prêmio Nobel pela identificação dos genes críticos que impulsionam os mecanismos desse relógio interno. Em humanos, ao menos 30% de todos os genes que produzem proteínas demonstram atividade cíclica em diversos órgãos, um percentual que provavelmente aumentará com a obtenção de mais informações sobre atividades gênicas. 

Embora a maioria dos genes de células saudáveis seja mais ativa durante o início da manhã e no fim da tarde, outros atingem o pico no início da noite, durante o sono, quando não há ingestão de alimentos. “Normalmente, essa sincronização é feita por meio da liberação de diversas moléculas sinalizadoras, como hormônios, que circulam por todo o organismo”, explica Ball. 

Em humanos, quando os níveis de luz são reduzidos, os neurônios do relógio circadiano secretam o hormônio do sono: a melatonina. Os genes que produzem outros hormônios – como a leptina, indutora da fome, que regula o apetite, e o cortisol, que responde ao estresse, nos acorda pela manhã e combate doenças – também respondem aos ciclos em que há luz ou escuro. 

Quando a atividade humana entra em conflito com o ciclo de vigília e sono de 24 horas – como trabalhadores ativos em turnos no período noturno e que dormem quando está claro – a incompatibilidade circadiana aumenta o risco de desenvolver câncer. Comissários de bordo e enfermeiros têm um risco modestamente aumentado de contrair câncer de mama, possivelmente devido à interrupção nos ritmos circadianos. Em estudos de laboratório, ratos também apresentaram risco aumentado de desenvolver tumores mamários em simulações de trabalho por turnos. É por isso que a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer considera o trabalho por turnos em horários incomuns, como o de comissários de bordo e enfermeiros noturnos, como “provavelmente cancerígeno”.

Os riscos do trabalho por turnos vão além do câncer de mama, estando associados também ao câncer de próstata, doenças cardiovasculares e diversas outras enfermidades crônicas. Essa população também tem maior chance de contrair infecções, conta Lévi.

Medieval Cancer- Painting of death

Embora não esteja claro por que distúrbios frequentes nos ciclos de sono-vigília estejam associados ao aumento do risco de câncer, estudos sugerem que a imunossupressão, inflamação crônica ou aumento da proliferação celular podem ser os responsáveis. 

“As células imunes também têm relógio circadiano e sua função apresenta flutuações diárias”, afirma Kazuhiro Yagita, médico da Universidade de Medicina da Prefeitura de Quioto, no Japão. 

Os níveis de circulação de glóbulos brancos, que ajudam o organismo a combater infecções e outras doenças, atingem o pico durante a fase de repouso: à noite para humanos e durante o dia para ratos. O desalinhamento entre o ciclo ambiental e os relógios circadianos internos provoca estragos metabólicos nas células, resultando em mau funcionamento, explica Yagita. Por outro lado, “o sono é muito bom para proteger ou reduzir o risco de câncer”.

Mas após as células se tornarem cancerosas, elas se desvencilham dos ritmos circadianos. “As células cancerosas e os tumores normalmente não exibem as oscilações presentes em tecidos saudáveis”, comenta Scheiermann. “Elas não saberiam que horas são.” É por isso que é uma surpresa para cientistas que os principais hormônios do ritmo circadiano, como a melatonina e a testosterona, afetem diretamente a dinâmica da geração de CTCs no estudo de Zurique.

Câncer de mama: o que revelou uma pesquisa noturna?

Quando cientistas notaram discrepâncias no número de células cancerosas detectadas em amostras de sangue coletadas de pacientes com câncer em diferentes momentos, ficaram instigados a investigar mais, afirma Aceto. “Concluímos que a liberação de CTCs não era constante durante o dia, mas aumentava e diminuía”, observa Diamantopoulou. “Isso nos deixou empolgados em continuar pesquisando como ocorre a regulação da liberação de CTCs.” 

Os cientistas suspeitavam que hormônios como a melatonina, que regula o sono; e corticoides, que equilibram a resposta ao estresse, o fluxo de energia, a temperatura corporal, o equilíbrio hídrico, entre outros processos essenciais, poderiam ser os sinais que determinam o momento da liberação das células cancerosas. Esses hormônios são conhecidos como reguladores dos ritmos circadianos e ambos atingem níveis máximos no sangue entre 3h e 4h30. 

Por isso, Diamantopoulou coletou sangue de 30 pacientes hospitalizadas com câncer de mama, uma vez às 4h e novamente às 10h. “Gostaria que fosse um pouco mais tarde ou um pouco mais cedo; teria sido mais conveniente e mais fácil analisar as amostras”, conta ela. 

Diamantopoulou constatou que quase 80% das CTCs foram detectadas nas amostras de sangue coletadas às 4h, quando as pacientes estavam dormindo. Para entender melhor seus resultados, os cientistas reproduziram seus resultados em ratos com câncer induzido experimentalmente. Como os ratos são noturnos, seus níveis de CTC aumentaram 88 vezes durante o dia, quando os animais estavam repousando, em comparação com as noites, quando estavam ativos. A interrupção do ciclo de sono e vigília dos ratos diminuiu as células cancerosas no sangue. 

Durante a fase de repouso, as células cancerosas liberadas se dividiram mais rapidamente do que as células saudáveis. Essas células também eram mais propensas a se transformar em novos tumores, sugerindo que as CTCs liberadas durante o sono eram de alguma forma mais eficazes na metástase. 

“Essas células tumorais circulantes provavelmente são liberadas e depois absorvidas por outro tecido, então, a meu ver, essa é a parte mais empolgante do estudo”, afirma Scheiermann. “É surpreendente que não apenas o número de células fosse diferente, mas que as CTCs da fase de repouso fossem mais agressivas quando comparadas às CTCs de apenas algumas horas depois”, observa Nagrath.

Como a melatonina aumentou a produção de CTCs e o crescimento tumoral, um composto químico que bloqueia a melatonina poderia reverter seus efeitos. A insulina, por outro lado, promoveu a proliferação de células tumorais, o que sugere que as células cancerosas ainda respondem a alguns dos sinais do ciclo de vigília e sono e do ritmo circadiano. 

“Faz muito sentido que as células cancerosas circulantes tenham maior probabilidade de crescer e se multiplicar durante o repouso – um padrão também presente em células não cancerosas”, explica Ball. Essa proliferação aumentada também torna essas células mais “agressivas”, ou seja, mais propensas a se espalhar e formar tumores secundários. Os resultados deste estudo podem suscitar novos métodos para realizar biópsias de câncer e também fazer com que se cogite se tratamentos devem ser administrados em horários diferentes durante o dia. 

Embora a ideia de programar a dose de um medicamento para corresponder ao ritmo circadiano de um paciente por meio da cronoterapia ainda esteja em seus primórdios, a pesquisa de Lévi revela que considerar o relógio circadiano pode influenciar a eficácia e a tolerância de dezenas de medicamentos contra o câncer. Outros estudos sugeriram que a cronoterapia ainda poderia beneficiar cânceres de mama, ovário e pulmão. 

“Encontramos diferenças importantes – de até cinco vezes – na toxicidade e quase o dobro da eficácia do mesmo regime de quimioterapia, quando administrada em infusão cronomodulada em comparação com uma taxa constante”, afirma Lévi. Um estudo sobre câncer colorretal liderado por Lévi sugere que agendar doses que correspondam a ritmos circadianos podem até trazer benefícios específicos de gênero para homens e mulheres. 

Lévi afirma que as descobertas de Aceto estabelecem uma base importante, mas há muito mais a se pesquisar. “Esse estudo testou apenas dois horários, o que é insuficiente”, observa Lévi. Também pode haver variações nos ritmos circadianos entre pacientes, como observado nos ratos estudados. “Os pacientes podem ter cronotipos diferentes”, acrescenta, como os que acordam cedo em relação aos mais noturnos. A natureza do tumor e a quimioterapia também podem perturbar os ritmos circadianos de pacientes.

E o que acontece a seguir? Nagrath responde: “É preciso verificar se essas observações são válidas para todos os cânceres ou apenas para cânceres sensíveis a hormônios, como o câncer de mama”.

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