Patrimônios da Humanidade, capoeira, Círio de Nazaré e frevo contam a história do Brasil
Unesco reconhece seis bens imateriais brasileiros como saberes e hábitos humanos que ajudam a registrar e preservar a história do país.
Sítios arqueológicos, monumentos arquitetônicos, cidades únicas. Espalhados pelo globo, os patrimônios culturais mundiais são um atestado da engenhosidade humana. As pessoas, no entanto, ficaram um pouco de lado nesse jogo. Após décadas de reflexão, isso foi corrigido com a instituição de um mecanismo que reconhece formas de expressão, conhecimentos e rituais dos mais variados: o Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Na série de reportagens da National Geographic que aborda os patrimônios mundiais e da humanidade brasileiros, vamos mostrar como os saberes e hábitos humanos ganharam protagonismo no projeto de registrar e preservar nossa história.
Ainda que à época da convenção sobre o Patrimônio Mundial, no início da década de 1970, diversas nações já tivessem políticas voltadas para a necessidade de registrar e proteger conhecimentos tradicionais, o documento da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) entendia o patrimônio como um bem físico e, no caso dos culturais, com um foco na originalidade.
“É uma valorização material e de preservação das coisas que vêm de um pensamento ocidental. Enquanto isso, desde a década de 1950, países asiáticos capitaneados por Japão, Coreia, China e Tailândia tinham um olhar diferente e valorizavam muito mais o chamado patrimônio vivo, as pessoas”, diz Hermano Queiroz, diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Hermano conta que, em diversas oportunidades, o Japão tentou inscrever templos na lista de Patrimônio Cultural Mundial que não eram aceitos pelo fato de serem constantemente destruídos por terremotos e reconstruídos. As técnicas construtivas tradicionais utilizadas nesse processo não eram reconhecidas dentro desse contexto.
Ao longo dos anos, esse entendimento começou a mudar, até que a Unesco estabeleceu a Convenção Para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial em 2003. O Brasil foi parte importante desse processo. Isso porque, três anos antes, em 2000, o país já havia estabelecido uma política nacional de Patrimônio Imaterial.
“Era uma discussão que vinha de muitos anos, mas o Brasil realmente estava na vanguarda”, afirma Isabel de Paula, coordenadora interina de Cultura da Unesco no Brasil.
A convenção do Patrimônio Imaterial estabeleceu três listas: Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, Lista do Patrimônio Cultural Imaterial que Requer Medidas Urgentes de Salvaguarda e a lista de programas, projetos e atividades para a salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial que melhor refletem os princípios e objetivos da Convenção.
Para ser inscrito em uma das duas primeiras, os bens precisam refletir um ou mais de cinco domínios: tradições orais e expressões, incluindo a linguagem como veículo do Patrimônio Cultural Imaterial; artes performáticas; práticas sociais, rituais e eventos festivos; conhecimentos e práticas que dizem respeito à natureza e ao universo; e ofícios tradicionais.
Hoje, são 508 os bens imateriais reconhecidos pela Unesco. O Brasil tem seis deles, além de dois registros de boas práticas de salvaguarda.
Assim como no caso dos patrimônios culturais e naturais mundiais, o título é uma espécie de reconhecimento internacional do registro e das políticas de preservação estabelecidas pelo país de origem. Nesse trabalho, é claro, há uma diferença gritante. Ao contrário de um prédio, que pode ser protegido e restaurado, o bem em questão é um conhecimento humano. Que depende dos humores humanos.
“Nós podemos protegê-los de terceiros, construir planos de salvaguarda a partir de um entendimento em conjunto com os detentores desse bem do que é preciso ser preservado”, explica Hermano. “Mas, se as paneleiras de goiabeiras [um ofício considerado Patrimônio Imaterial Brasileiro] do Espírito Santo resolverem não mais fazer aquilo, eu não posso forçá-las”.
A capoeira e o ofício dos mestres
O último bem brasileiro a ser inscrito na lista representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade foi a roda de capoeira, em 2014, com o entendimento de que essa prática engloba todos os cinco domínios estabelecidos pela Unesco. Até por isso, o “roda” no nome é importante: não é só a capoeira em si que foi reconhecida, mas todos o universo de conhecimentos que a envolvem, o que inclui o ofício dos mestres.
Mestre Duda, presidente do Conselho gestor da Salvaguarda da Capoeira da Bahia, conta que a busca de reconhecimento da prática como patrimônio começou para evitar uma espécie de institucionalização da capoeira. Nos anos 1990, houve uma tentativa do Conselho Regional de Educação Física de regulamentar a modalidade, o que exigiria uma formação para os professores.
“Era uma afronta, por que colocava uma condição bizarra de sobrepujar o conhecimento popular em relação ao científico, além de tirar a autoridade de mestres no processo de transmissão oral do aprendizado”, diz Duda. Em paralelo, havia uma valorização crescente da capoeira como esporte, assim como uma tentativa de retirar da prática características que remontam a tradições religiosas de matrizes africanas num processo de esterilização.
Como diz o texto de candidatura da roda de capoeira ao título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, “a roda também trabalha para disseminar os símbolos e valores ligados à diáspora africana no território brasileiro. Ela contém uma mensagem de resistência contra o regime escravista. O carisma e a competência dos mestres, a habilidade e o vigor dos praticantes constantemente atraem novos praticantes ao redor do mundo. A roda de capoeira é publicizada como um símbolo de brasilidade, capaz de estabelecer um diálogo entre pessoas e nações diferentes”.
Por ironia, essa riqueza de conhecimentos que tornou a capoeira tão atraente se perde conforme ela é praticada num modelo mais próximo ao do esporte em outros países, principalmente na Europa, longe das políticas de salvaguarda brasileiras. “Todo tipo de reconhecimento é importante, e é uma questão de orgulho para nós. Mas isso não adianta sem o reconhecimento institucional do Estado”, observa Mestre Duda. “A Unesco trouxe um fortalecimento das iniciativas que o Iphan já fazia”.
Expressões orais e gráficas
Na outra ponta da história do título de Patrimônio Imaterial, as expressões orais e gráficas dos wajãpi foram o primeiro bem brasileiro inscrito na lista representativa, em 2008, quando a convenção entrou em efeito. Antes disso, em 2003, essas mesmas expressões, que se materializam em desenhos chamados kusiwa, haviam sido consideradas uma obra-prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unesco.
“Isso é um conjunto de conhecimentos e práticas que dizem respeito à relação dos humanos com outros seres, que os wajãpi chamam de gente, que ocupam o universo”, explica a antropóloga Dominique Tilkin Gallois, que trabalha com a etnia há 40 anos. Os desenhos mimetizam os padrões corporais de diversos animais, como onças, jacarés, tartarugas e peixes de espécies variadas.
No entanto, enfatiza Dominique, um grafismo nunca utiliza apenas o padrão de um único ser – dentro da cosmologia wajãpi, isso os aproximaria de tal maneira desse ser que o indígena poderia ser capturado por ele. “A excepcionalidade da arte kusiwa é a arte da composição, da escrita. Nunca dois corpos são pintados da mesma maneira”, conta a antropóloga. “Mas é importante notar que esse tipo de pensamento, essa cosmologia, é regional. Os vizinhos pensam exatamente da mesma maneira”.
Os wajãpis vivem em uma terra indígena do mesmo nome no noroeste do Amapá. Segundo um levantamento de 2014, eles são cerca de 1.250 espalhados por 81 aldeias – outros 1,1 mil moram na Guiana Francesa, mas não há grande contato entre os dois grupos. Quando representantes da etnia começaram a interlocução junto ao Iphan para registrar o kusiwa como Patrimônio Imaterial, num processo com participação significativa do Museu do Índio, o grande problema enfrentado por eles era a exploração comercial dos desenhos por pessoas de fora da comunidade.
Apesar de episódios do tipo continuarem a acontecer, as políticas de salvaguarda estabelecidas desde então deram mais capacidade aos wajãpi sobre as expressões gráficas, além de permitirem a formação de pesquisadores indígenas que têm se debruçado sobre os aspectos orais e a cosmologia por trás dos desenhos. Nesse contexto, o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade aumentou a capacidade de barganha da etnia – além de ser um motivo de orgulho, é claro.
E é um reforço cuja necessidade tende a aumentar. Segundo Dominique, nos últimos anos, o avanço de missões evangélicas tem feito algumas famílias wajãpi abandonarem essas tradições por associá-las a práticas demoníacas. Além disso, a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil aumentou a pressão na região como um todo.
No começo de abril, quando foi a Macapá participar da inauguração do aeroporto internacional da cidade, Bolsonaro fez menção à exploração mineral na Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), uma área que corta a terra dos wajãpi.
“Eles precisam da visibilidade para proteger o modo de vida, os conhecimentos”, diz Dominique. “Não porque perdem a cultura, mas porque sempre há um desejo de usar os territórios para exploração. Os wajãpi sempre estão sob ameaça”.
Arte e dança
Em 2008, a mistura de música, dança e arte do samba de roda do Recôncavo Baiano foi considerada Patrimônio Imaterial da Humanidade. Assim como a roda de capoeira, a prática também remonta a expressões culturais dos escravos africanos.
Quatro anos depois, em 2012, foi a vez do frevo entrar para a lista representativa do Patrimônio Imaterial. Tanto a música quanto a dança características do frevo são em elemento fundamental do carnaval de Pernambuco.
No ano seguinte, em 2013, a honraria coube à procissão da imagem da Nossa Senhora de Nazaré, que ocorre todos os anos durante o Círio de Nazaré, em Belém do Pará.
O Brasil tem um único bem na lista de Patrimônio Imaterial que requer medidas urgentes de salvaguarda. O Yaokaw, um ritual do povo enawene zawe, foi inscrito em 2011. De acordo com Hermano Queiroz, diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, a prática já não corre riscos tão graves e o Brasil deve pedir a retirada do Yaokaw da lista.
Também em 2011, duas iniciativas do país foram selecionadas como Programas, projetos e atividades para a salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial que melhor refletem os princípios e objetivos da Convenção. São elas a Chamada pública de projetos do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, do próprio Iphan, e o Museu vivo do Fandango, que reforça a divulgação dessa dança típica das regiões costeiras dos estados do Sul do Brasil.