Lavar as mãos ajuda a reduzir propagação do coronavírus, mas, na Índia, a água é escassa

Apenas um quinto de todas as residências do país de 1,3 bilhão de habitantes possui água encanada. Nesse cenário, lavar as mãos com frequência torna-se um desafio.

Por Nilanjana Bhowmick
Publicado 27 de abr. de 2020, 17:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Uma mulher toma banho perto de Bhubaneshwar, uma cidade no estado de Odisha, no leste da ...

Uma mulher toma banho perto de Bhubaneshwar, uma cidade no estado de Odisha, no leste da Índia. Até mesmo na zona urbana, a maioria das residências não possui água encanada; no interior, o número chega a 82%.

Foto de Andrea Bruce, Nat Geo Image Collection

DELHI, ÍNDIA No vilarejo de Kaithi, na região de Bundelkhand, no centro-norte da Índia, há uma torneira comunitária para cada cinco famílias. Bundelkhand passou por 13 secas nas últimas duas décadas. A escassez de água faz parte da vida desse lugar. E agora com a covid-19 que se dissemina rapidamente, as pessoas em Kaithi e outros vilarejos precisam fazer uma escolha desconcertante: lavar as mãos ou manter o distanciamento social, sendo que é difícil praticar os dois métodos ao mesmo tempo para evitar o contágio da doença.

“Não estamos permitindo que as pessoas se aglomerem ao redor das torneiras e estamos tentando lavar as mãos o máximo que conseguimos”, disse Mangal Singh, residente de Kaithi. Ele deixou seu emprego como motorista em Delhi para retornar à sua aldeia natal cerca de duas semanas atrás, pouco antes do primeiro-ministro Narendra Modi ordenar aos 1,3 bilhão de cidadãos da Índia que fiquem dentro de suas casas por pelo menos três semanas.

Em 31 de março, o Ministério dos Recursos Hídricos da Índia pediu aos governos estaduais que divulgassem uma segunda mensagem, consenso entre especialistas em todo o mundo: que é importante lavar as mãos com água e sabão por 20 segundos, repetidamente ao longo do dia. Mas na Índia e em muitos países em desenvolvimento, a mensagem ignora uma questão importante: e se não houver água limpa suficiente?

Se forem somadas todas as situações nas quais as autoridades internacionais, como a UNICEF, recomendam lavar as mãos durante esta pandemia — depois de visitar um espaço público ou tocar em uma superfície fora de casa, depois de tossir, espirrar ou assoar o nariz e, é claro, depois de usar o banheiro ou retirar o lixo e antes e após as refeições — facilmente se chega a pelo menos 10 vezes por dia.

Especialmente para esse país, isso significa lavar as mãos muitas vezes. Para lavar as mãos por 20 segundos, além do tempo que leva para umedecê-las e enxaguá-las, são necessários pelo menos dois litros de água. Para uma família de quatro pessoas na qual cada um lava as mãos 10 vezes ao dia, são 80 litros apenas para essa atividade — um luxo inimaginável em grande parte da área rural da Índia. (Em média, um norte-americano utiliza 379 litros de água por dia.)

No ano passado, Chennai, a sexta maior cidade da Índia, ficou sem água durante uma seca prolongada. O NITI Aayog, um grupo de reflexão sobre políticas do governo indiano, divulgou um relatório sobre a atual crise hídrica do país e constatou que 82% das residências rurais, 146 milhões no total, não possuem água encanada. Quase 60% das residências na zona urbana também não.

O problema na Índia não é apenas a falta de infraestrutura: de acordo com um relatório do Banco Mundial, mais da metade dos distritos da Índia estão ameaçados pelo esgotamento ou contaminação das águas subterrâneas. Este ano, mesmo antes do verão, quase 33% da Índia já está passando por secas ou condições de seca. As áreas afetadas, principalmente na zona rural da Índia, dependem de caminhões-tanque do governo que fornecem no máximo de 20 a 25 litros de água por pessoa por dia — o suficiente para lavar as mãos em tempos de covid-19, mas apenas se os moradores usarem a água somente para isso.

Na semana passada, quando a Índia iniciou sua paralisação, as fronteiras fecharam, o transporte interestadual foi interrompido e eu me abriguei em casa, em Delhi, liguei para algumas pessoas em outras partes da Índia, que conheci em viagens anteriores, para saber como estavam. Uma dessas pessoas foi Mangal Singh; a outra, Amar Habib, que lidera um movimento de produtores agrícolas locais no estado de Maharashtra, no oeste do país, um dos primeiros atingidos pela pandemia.

Milhares de vilarejos em Marathwada, a parte do estado onde Habib mora e trabalha, também foram afetados pela seca. Habib disse que muitas vezes os caminhões do governo nem aparecem nos vilarejos. A ideia de que as pessoas por lá devem lavar as mãos 10 vezes por dia por 20 segundos lhe pareceu absurda.

“A Índia rural não tem água suficiente para que a população fique lavando as mãos ao longo do dia”, afirmou Habib.

Vilarejos sequiosos

Comparando com a situação em geral, o vilarejo de Parwana, no estado de Bihar, no leste do país, tem sorte: a água encanada chegou há um mês. Mas a água fica disponível apenas três vezes ao dia por uma hora ou duas. Cada família acaba conseguindo uma quantidade que pode variar de 40 a 120 litros de água por dia.

“Depende do volume de água que conseguem armazenar”, contou Neeraj Singh, morador do vilarejo. A família de Singh que possui quatro integrantes — é menor e está em condições melhores que a maioria de seus vizinhos — tem dois baldes de 20 litros que utilizam para armazenar 40 litros de água. Famílias maiores com menos capacidade de armazenamento “armazenam o máximo que conseguem em utensílios domésticos, às vezes até copos e tigelas”, disse ele.

Em Bundelkhand, Mangal Singh voltou para casa em Kaithi e descobriu que seu pai, um fazendeiro local, não havia mudado muito seus hábitos. Ele certamente não estava lavando as mãos com frequência.

“Eu lavo o meu corpo inteiro — dos pés à testa — apenas uma vez, quando volto do campo”, me contou o homem mais velho.

Kesar Singh, organizador do Bundelkhand Water Forum, uma organização local sem fins lucrativos, disse que muitas pessoas na região nem sequer têm torneiras comunitárias. As mulheres nesses vilarejos normalmente caminham mais de um quilômetro e meio para conseguir água, depois de esperarem a vez em uma longa fila. Elas são obrigadas a priorizar o preparo de alimentos, a usar a água para beber e a dar água para o gado em vez de lavar as mãos.

A política de castas, que é especialmente rigorosa em Bundelkhand, agrava o problema: as pessoas da classe alta controlam a maior parte da água, explicou Kesar Singh. Cada vilarejo tem uma pequena colônia em uma extremidade para os dalits de castas mais baixas e essas colônias geralmente não têm instalações sanitárias. Na colônia de Kaithi, há uma torneira para 400 pessoas.

“Esperar que as pessoas nesta região pobre e sem água priorizem a lavagem das mãos em relação às demais necessidades da vida diária é uma incoerência cruel”, disse Kesar Singh. “Se a água é a única maneira de proteger-se contra esse vírus, então a verdade absoluta é a seguinte: Bundelkhand não possui esse recurso.”

A cultura tem seu papel

Os indianos que moram na zona rural são bastante sossegados em relação a lavar as mãos e não há dúvidas de que isso se deve à escassez de água. Cerca de 70% deles, de acordo com pesquisas do governo, lavam as mãos sem sabão antes das refeições, enquanto mais de 30% fazem o mesmo após defecar — o que geralmente ocorre ao ar livre. Areia, cinzas ou lama muitas vezes substituem o sabão.

Essa falta de higiene das mãos torna as comunidades rurais vulneráveis a diversas doenças transmissíveis. Na Índia, quase 21% das doenças transmissíveis, incluindo cólera, disenteria, hepatite A e febre tifoide, são transmitidas pela água e podem ser evitadas, em parte, com melhor higienização das mãos — assim como doenças respiratórias, como a gripe e a covid-19.

Uma professora ilustra às crianças da escola no vilarejo de Gori Kothapally técnicas adequadas para lavagem das mãos.

Foto de Sanjit Das, Panos Pictures, Redux

Em todo o mundo, estima-se que 297 mil crianças com menos de 5 anos morram todos os anos de diarreia associada à falta de água potável e a instalações inadequadas de saneamento e higiene. Na Índia, representa a maior causa de mortalidade infantil. Estudos demonstraram que lavar as mãos pode reduzir o risco de diarreia em até 43%.

Além disso, um estudo divulgado em 24 de março por pesquisadores da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, documentou uma correlação entre a dimensão do surto de covid-19 de um país e a fragilidade de sua cultura de lavar as mãos, verificada pela porcentagem da população que informou aos pesquisadores que não lavam as mãos automaticamente após usar o banheiro. Com 40%, a Índia tem a décima cultura mais frágil entre os 63 países pesquisados. A China, onde a pandemia começou, tem a pontuação mais baixa de todas (77%).

Os norte-americanos têm melhor pontuação (23%) nesse quesito, mas é o país que enfrenta o maior impacto do surto de covid-19 porque outros fatores influenciam a propagação da doença. Ainda assim, a correlação entre lavar as mãos e propagar a doença é forte, disse Ganna Pogrebna, da Universidade de Birmingham. É preocupante não apenas para a Índia, mas também para outros lugares onde a pandemia ainda está em seus estágios iniciais, como a África Subsaariana.

“O fato de a cultura de lavar as mãos ser mais fraca em alguns países em desenvolvimento é uma grande preocupação”, disse Pogrebna. “A questão principal é que a cultura não envolve apenas a psicologia ou o hábito das pessoas, mas também fatores objetivos, como a escassez de água.”

A infraestrutura também tem seu papel

Um relatório divulgado no ano passado pela OMS e UNICEF descobriu que, em 2017, três bilhões de pessoas em todo o mundo, ou 40% da população global, careciam de instalações básicas em casa para lavar as mãos com água e sabão. Mais de 670 milhões de pessoas ainda defecavam a céu aberto e outras 700 milhões utilizavam instalações não sanitárias, sem nenhum tipo de melhoria.

Yusuf Kabir, especialista em água, saneamento e higiene da UNICEF em Maharashtra, disse que o pânico em relação à covid-19 apresenta “uma oportunidade única” de convencer as comunidades rurais, especialmente na Índia, a melhorarem seus hábitos de higiene.

“É possível manter uma boa rotina de lavagem das mãos com pouca água”, afirma Kabir. A UNICEF está trabalhando com o governo indiano para instalar estações de lavagem das mãos nos mercados rurais, escolas e centros de saúde.

O grande medo entre os especialistas do país é que, quando o verão chegar, a Índia poderá ver as severas secas e a escassez de água que assolaram grande parte do país no ano passado retornarem — mas desta vez no meio do enfrentamento de uma pandemia. Em resposta à crise de 2019, o primeiro-ministro Modi prometeu fornecer água encanada a todos os lares rurais, à uma taxa de 55 litros de água por pessoa por dia, até 2024.

A grande esperança, se é que se pode dizer que a emergência relacionada à covid-19 oferece alguma esperança, é que a situação incentive o governo indiano a cumprir essa promessa — e também incentive os próprios indianos a mudarem seu comportamento o máximo possível, de uma maneira que traga benefícios duradouros após o fim da pandemia.

“É provavelmente o único lado bom da doença”, disse V.K. Madhavan, CEO da WaterAid, na Índia. “A situação provavelmente incorporará a higiene das mãos ao comportamento das pessoas. Hoje, a mudança e a conscientização sobre o assunto, em comparação com algumas semanas atrás, foram espetaculares.”

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