Maioria entre profissionais da saúde, mulheres são minoria em cargos de liderança
Elas formam um exército de enfermeiras, médicas, cuidadoras em casas de repouso e ativistas comunitárias, mas poucas ocupam posições de alta patente. Isso pode mudar?
Elizabeth Wanjiru, enfermeira da Cruz Vermelha, é apresentada em uma celebração dedicada aos profissionais de enfermagem no estádio Kenyatta, em Machakos, Quênia, onde um hospital de campanha foi montado para atender pacientes com covid-19.
Em meados de maio, Emma Robbins embarcou em um avião particular em Van Nuys, na Califórnia, com apenas três passageiros: ela, o vencedor do Oscar de melhor ator Sean Penn e o renomado diretor de cinema Sam Bayer. Penn e Bayer viajavam à Nação Navajo para uma reunião com o presidente Jonathan Nez para discutir como a organização de ajuda humanitária de Penn, Community Organized Relief Effort (Core), poderia prestar assistência à reserva durante a pandemia, incluindo testagem de covid-19. Eles convidaram Robbins para acompanhá-los na visita.
Emma Robbins, diretora do Navajo Water Project, trabalha na expansão do acesso à água encanada na Nação Navajo, um território indígena no sudoeste dos EUA. Ela e sua equipe (Robbins é a segunda da esquerda) posam para foto com tanques de água para as famílias.
A artista e ativista comunitária de 33 anos quase não aceitou o convite de última hora –seu escritório em Los Angeles estava abarrotado de trabalho. Mas ela não podia deixar passar a chance de uma rápida viagem ao local onde cresceu e atua como diretora do Navajo Water Project, da DigDeep, uma organização sem fins lucrativos que busca expandir o acesso à água limpa nos Estados Unidos.
Um terço das pessoas que vivem na Nação Navajo não tem acesso a água limpa e encanamento doméstico — uma situação de saúde pública problemática que se tornou catastrófica devido à pandemia. Na semana em que Robbins viajou com as estrelas de cinema, as taxas de infecção pela covid-19 na reserva haviam superado as de Nova York e Nova Jersey, tornando-se as mais altas do país. O governo federal destinou US$ 600 milhões à Nação Navajo, fruto da Lei de Auxílio ao Coronavírus, Socorro e Segurança Econômica (Cares).
“Todo mundo tem uma opinião sobre o que fazer com o dinheiro,” conta Robbins. “Mas pense: por que taxa de infecção é tão alta? Porque as pessoas não têm acesso a água limpa. Elas precisam se deslocar, precisam lavar as mãos, não há saneamento básico. É algo que está desgastando as pessoas mentalmente. Eu sabia que, se participasse da conversa, poderia causar um impacto."
Um terço dos residentes da Nação Navajo não tem água limpa ou encanamento doméstico, o que dificulta seguir as medidas preventivas mais básicas, como lavar as mãos.
Uma fila de carros se estende ao longo da estrada em um ponto de distribuição de água e suprimentos.
A abordagem prática de Robbins no combate à covid-19 é semelhante à de muitas mulheres diretamente envolvidas na resposta à pandemia ao redor do mundo. Independentemente de atuar na linha de frente como profissionais da saúde, cuidadoras em casas de repouso ou ativistas comunitárias, as mulheres estão dedicando longas horas para lidar com as consequências da covid-19, ao mesmo tempo em que fazem malabarismos com suas responsabilidades familiares e de cuidado dos filhos.
No entanto, no que diz respeito à tomada de decisões e aos papéis de liderança durante essa emergência, há uma tremenda discrepância para as mulheres. Dados da Organização Mundial da Saúde estimam que, embora as mulheres representem 70% da força de trabalho na área da saúde no mundo, elas ocupam apenas 25% das posições de liderança. Uma foto de fevereiro da Força-Tarefa do Coronavírus dos Estados Unidos, liderada pelo vice-presidente Mike Pence, gerou polêmica porque mostrava apenas homens.
“A pessoa se manifesta porque acredita ter uma resposta,” explica Winnie Byanyima, diretora executiva do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids. “Se organiza e busca uma solução.”
Mulheres de diversas áreas da saúde reconheceram a crise da covid-19 como o cenário que pode lhes permitir elevar esse número em posições de comando. Uma maior participação de mulheres na liderança das políticas globais de saúde e de resposta a emergências se traduzirá inevitavelmente em mudanças positivas, afirma Winnie Byanyima, diretora executiva do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (ONU/Aids).
“As pessoas que, historicamente, ficaram de lado podem transformar uma situação, pois trazem novas perspectivas, novas questões, novas necessidades”, observa Byanyima, ugandesa que passou toda a vida quebrando barreiras. Com diploma de engenheira aeroespacial, ela trabalhou na Uganda Airlines antes de se juntar ao Exército de Resistência Nacional na luta para destituir o então presidente ugandense Milton Obote. Mais tarde, atuou como diretora-executiva da OxFam International.
Décadas de ativismo político contribuíram para a ascensão de Byanyima a altos escalões da liderança global em saúde. “Minha história é como a de muitas outras mulheres que vivem em países pobres, que enfrentam crise após crise e exigem soluções”, ela comenta. “A pessoa se manifesta porque acredita ter uma resposta, se organiza e busca uma solução. Foi assim que desenvolvi minha liderança, desejando sempre fazer parte da busca de uma solução para enfrentar nossos maiores problemas.”
Em abril, a enfermeira Sasha Winslow se uniu a outros profissionais de saúde para protestar contra condições insalubres de trabalho nos hospitais da cidade de Nova York.
Em relação à covid-19, Byanyima afirma que, caso o mundo queira enxergar a importância das mulheres, é só olhar para o sucesso de países governados por mulheres. A Alemanha, a Noruega e a Nova Zelândia têm sido amplamente elogiados pelos altos índices de testagem, rastreamento de contatos e contenção da disseminação do coronavírus. Aliás, uma análise do grupo Open Democracy sobre as respostas à covid-19, constatou que países com mulheres em posições de liderança tiveram seis vezes menos mortes confirmadas por coronavírus do que os governos com líderes do gênero masculino. Os governos liderados por mulheres conseguiram achatar a curva do coronavírus e avançar para uma reabertura com segurança mais cedo.
“Consideremos alguém como Jacinda Ardern [primeira-ministra da Nova Zelândia]”, diz Byanyima. “Ela enfrentou grandes desafios em seu primeiro mandato. Passou por um terremoto, um ataque terrorista e agora enfrenta a covid-19. Mas ela é muito admirada pela abordagem fora do comum adotada em cada uma dessas situações. É uma abordagem empática, transformadora e multidisciplinar.”
Embora pesquisas mostrem que os homens são mais propensos a sofrer complicações graves da covid-19, as mulheres que trabalham na linha de frente da saúde correm um risco muito maior do que os homens de contrair a doença, conta Michelle McIsaac. Economista e especialista em profissionais da saúde na Organização Mundial da Saúde, McIsaac lidera um programa sobre gênero e igualdade na área da saúde em todo o mundo.
“Ouvimos dizer que as mulheres estão mais propensas a serem afetadas pela escassez de equipamentos de proteção individual ou pela falta de treinamento de uso de EPIs”, revela McIsaac. E o que é pior, grande parte dos EPIs disponíveis, incluindo equipamentos de corpo inteiro, é projetado para homens e, geralmente, não é adaptável ao corpo feminino, nem leva em consideração suas necessidades menstruais.
Profissionais de saúde chegam para o turno no hospital Grady Memorial, em Atlanta, Geórgia.
Diante da baixa remuneração, dos contratos inseguros e da violência e agressão contra os profissionais de saúde em geral, as mulheres que atuam na linha de frente do setor de saúde são inegavelmente mais vulneráveis. “Essa pandemia mostrou que as mulheres são os ‘amortecedores’ da sociedade”, afirma Roopa Dhatt, que ainda estava na faculdade de medicina quando fundou a organização Women in Global Health (mulheres na saúde global) para tratar da igualdade de gênero em cargos de liderança na saúde.
A Women in Global Health firmou uma parceria com a Pathfinder International para estabelecer comitês em Burkina Faso, Etiópia, Níger, Nigéria e Paquistão. “Quem está liderando – seja nacionalmente ou em um sistema de saúde dentro de um hospital – importa não apenas por uma perspectiva de gênero, mas por uma perspectiva mais ampla de diversidade”, explica Dhatt. “As mulheres precisam influenciar os sistemas de saúde em todos os níveis.”
O fator gênero na remuneração das mulheres do setor da saúde é uma das questões mais importantes discutidas pela organização. “Abaixo da ótica do heroísmo feminino nas linhas de frente, está o fato de que, atualmente, metade do trabalho exercido por mulheres no setor da saúde não é remunerado – o que equivale a US$ 1,3 trilhão por ano”, conta Dhatt. “E, se considerarmos o trabalho de assistência social não remunerado, as estimativas chegam a até US$ 10 trilhões.”
Shaandiin Parrish, a atual Miss Nação Navajo, se prepara para distribuir comida, água e outros suprimentos em Huerfano, na Nação Navajo.
A promoção efetiva da igualdade de gênero em posições de liderança pode exigir uma abordagem mais sutil na coleta de dados, diz Shirin Heidari, presidente fundadora da Gendro, uma ONG sediada em Genebra que apoia a equidade de gênero por meio de pesquisas acadêmicas.
Para exemplificar, ela diz, “os países não estão produzindo dados suficientes relacionados ao gênero sobre taxas de infecção ou mortalidade entre os profissionais de saúde. Um estudo realizado no início da pandemia, na China, descobriu que as mulheres atuando na linha de frente enfrentam um risco maior de desenvolver graves problemas de saúde mental, depressão, insônia, ansiedade”, diz Heidari. “Realmente, precisamos entender melhor essa dinâmica.”
Lideranças femininas – inclusive Winnie Byanyima, da ONU – consideram que a presença delas no palco global é crucial na atual crise para garantir igualdade em todos os aspectos, à medida que são desenvolvidos tratamentos médicos e métodos de prevenção.
Uma profissional de saúde é iluminada, durante seu intervalo, pelos faróis de um táxi que leva um paciente a uma clínica na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.
“Ainda estou lutando por um compromisso de que, se surgir uma vacina, os primeiros a serem atendidos sejam as profissionais de saúde da linha de frente”, diz Byanyima. “Não é possível que, se uma vacina for desenvolvida, uma criança em um país rico como o Reino Unido seja vacinada e uma profissional da linha de frente em Burkina Faso esteja no fim da fila apenas por morar em um país pobre. Isso seria injusto demais.”
Às vezes, combater a injustiça significa aproveitar oportunidades improváveis, como voos em aviões particulares com estrelas de cinema. Quando Emma Robbins visitou a Nação Navajo e se reuniu com o presidente Jonathan Nez, ela foi direto ao assunto, enfatizando o acesso à água e as necessidades de encanamento doméstico para a Nação Navajo. Mais tarde, apresentou uma proposta para fortalecer a infraestrutura usando o financiamento da Lei Cares.
Desde abril, a DigDeep distribuiu 262 mil galões de água engarrafada e ajudou 300 famílias navajos a obter água corrente quente e fria. Cerca de 300 novos tanques de armazenamento de água já foram instalados.
Ocupar um lugar na mesa de decisões faz toda a diferença, assegura Robbins.
“É importante que as pessoas com poder não esqueçam o que eu represento, como navajo, para esses projetos e para minha equipe”, diz ela. “Essa é a lição que aprendi com as mulheres da minha família: cuidar da sua comunidade. Porque é muito mais do que cuidar de indivíduos – é cuidar da nossa cultura e garantir que todos sejam valorizados.”