Mulheres indígenas lideram esforços no combate à pandemia

Entre o luto e a luta, elas arrecadam e destinam doações, protegem aldeias, dão suporte espiritual e comandam importantes associações.

Por Gabi Di Bella
Publicado 2 de set. de 2020, 07:03 BRT
Waxy Yawanawa lidera o Centro Espiritual Mawa Yuxyn – Montanha dos Espíritos, às margens do rio ...

Waxy Yawanawa lidera o Centro Espiritual Mawa Yuxyn – Montanha dos Espíritos, às margens do rio Gregório, no Acre. Waxy e duas de suas irmãs foram as primeiras mulheres da etnia yawanawa a conseguirem permissão para passar por um rigoroso processo, que inclui dietas restritas, para tornar-se líderes espirituais.

Foto de Gabi di Bella

Em meio a uma pandemia provocada por um vírus que afeta a absorção do oxigênio pelos pulmões – e os vasos sanguíneos –, a covid-19 tem deixado as mulheres sem tempo para respirar. Tal como um exército em tempos de paz, elas são maioria entre profissionais de saúde, nas organizações de campanhas de conscientização, de doações e no cuidado com família e amigos. A Organização Mundial da Saúde já manifestou preocupação com a sobrecarga de trabalho para as mulheres, assim como uma pesquisa da Sempreviva Organização Feminista, que demonstrou que, durante a quarentena, metade das brasileiras passou a cuidar de alguém e 41% das mulheres com emprego afirmam que estão trabalhando mais do que antes.

A líder indígena Watatakalu Yawalapiti, 40 anos, faz parte desse batalhão. Coordenadora do departamento de mulheres da Associação da Terra Indígena do Xingu (Atix Mulher), ela conta que não consegue viver seu luto. “Estamos de luto e lutando. Luto, luta, luto, luta. E parece que a gente não descansa, não para nunca”, disse ele em entrevista à reportagem. Enquanto conversamos, ouço o choramingo de uma criança – era um dos seus três filhos, o mais novo, de quatro anos, de quem ela cuida mesmo durante a entrevista.

Watatakalu perdeu quatro familiares para o novo vírus e sua irmã estava muito doente no dia que conversamos. “Meu cacique [Aritana Yawalapiti, 71 anos] morreu e, na mesma hora, tinha parentes me ligando pedindo para enviar material para eles. Estou chorando e andando.” Ainda assim, ela não desiste e segue na batalha na cidade de Canarana, distante quatro horas de viagem de sua aldeia, onde fica a sede da associação.

A líder indígena decidiu se afastar do clã familiar para ajudar a administrar o recebimento e a distribuição de doações para todas as comunidades da Terra Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso. Com mais de 2 milhões de hectares, o parque abriga 16 etnias e mais de 114 aldeias. Watatakalu conta que, depois de 15 dias de quarentena, muitos parentes estavam utilizando a necessidade de ir comprar materiais na cidade como desculpa para sair das aldeias.

Foi então que as mulheres resolveram se unir e agir para evitar a movimentação. A Atix então criou uma vaquinha online. “Nos questionaram se íamos comprar somente produtos para as mulheres, respondemos que a vaquinha era para o Xingu, que não estamos em um momento de divisão de gênero, estamos aqui para apoiar o nosso povo”, diz.

A ideia deu certo. O dinheiro arrecadado, cerca de R$ 82 mil, está, aos poucos, sendo dividido proporcionalmente (de acordo com o número de habitantes de cada etnia) e aplicado conforme a determinação de cada povo. “Tem povos que, ao receberem cestas básicas, ficam até ofendidos. Afinal, eles produzem seu próprio alimento”, conta Watatakalu. “Ouvimos o que cada um precisa, alguns decidiram gastar tudo para comprar combustível, outros pediram para comprar legumes, outros precisavam de ferramentas para pesca.”

Entretanto, o trabalho muitas vezes é questionado, “especialmente pelos homens. Muitos não entendem que o site da vaquinha fica com uma parte do dinheiro, por exemplo”, conta. Mas, apesar de tudo, ela mantém o bom humor, “recebemos uma doação de 30 mil pares de chinelos. Um parente ficou insistindo, queria que a gente mandasse no mesmo dia, tentei explicar que estávamos separando e higienizando, mas não teve jeito, então enviamos. Quando chegou lá, ligaram para reclamar que eram todos femininos”, ri. Os chinelos foram uma reinvindicação das mulheres que queimam os pés ao ir trabalhar na roça. “Antes, não era assim, mas agora, com as mudanças climáticas, o solo queima nossos pés”, explica Watatakalu.

Lutando na mesma frente de Watatakalu, mas na região do Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, extremo noroeste do Amazonas, está Almerinda Ramos de Lima, 47 anos, da etnia tariana. Almerinda, que foi a primeira mulher a presidir a Federação das Organizações do Rio Negro (Foirn) – entre os anos de 2013 a 2016 –, ocupa hoje um cargo na diretoria executiva da entidade e sentiu os efeitos do vírus não só nas batalhas cotidianas, mas também no corpo.

Almerinda pegou covid-19, assim como várias colegas da associação. “Me considero agora 95% recuperada, faltam 5% pois perdi muito peso, mas a minha maior preocupação era com os familiares que moram comigo”, explica. Isso não a tirou da briga. Após duas semanas em isolamento, voltou ao trabalho com Elizangela da Silva, coordenadora do Departamento de Mulheres da Foirn, para articular a campanha Rio Negro Nós Cuidamos, idealizada pelas mulheres para distribuir insumos e materiais de proteção (máscaras, álcool em gel) para as 750 comunidades da região.

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    Matsini Vēna, filho de Waxy, contempla a floresta amazônica no Acre. Os indígenas têm sido especialmente afetados pela pandemia – até 1o de setembro, 29.070 indígenas de 156 povos tinham sido infectados, com 761 mortes, segundo a Apib.

    Foto de Gabi di Bella

    Esse esforço durante a pandemia as fez compreender que é possível ir mais longe. As duas perceberam um forte intercâmbio de conhecimento entre as mulheres, não só de receitas, mas na troca de plantas para que todas pudessem criar suas próprias medicinas. “Acho que o conhecimento sobre o benzimento é mais dos homens, assim como as rezas, mas o preparo dos remédios caseiros é das mulheres. Havia muita troca de informações sobre isso pelo Whatsapp, mas os homens quase não participavam, eram basicamente as mulheres”, diz Elizangela. Almerinda acredita que a pandemia fez despertar um conhecimento que já estava lá, mas adormecido. “Por incrível que pareça, esse conhecimento sobre o uso das plantas medicinais estava guardado no espírito das mulheres. Agora, queremos criar um projeto para compartilhar esse conhecimento pelos próximos anos.”

    Elizangela culpa a cultura machista pela dificuldade em conscientizar os homens. “Eles diziam que não era para se preocupar tanto. Já as mulheres estavam tomando muitos chás, tomando banho e dando banho nas crianças e jovens. Os homens até tomavam, mas só uma vez”, conta. Ela lamenta, pois o maior número de mortes acabou sendo entre os homens, inclusive de lideranças importantes para os povos indígenas.

    “Independente de ser homem ou mulher, enfrentamos essa pandemia com muita firmeza, indo além das funções da Foirn de articulações políticas”, explica Almerinda. “Pensamos no povo da floresta, mas também nos que estão nas cidades. Não se faz nada sozinho, houve uma união muito forte com entidades locais e isso foi muito importante.”

    Indígenas enfrentam o poder

    O enfrentamento político, mesmo que realizado virtualmente, não permitiu um dia de descanso para Sônia Guajajara, 46 anos. A líder indígena e coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) foi candidata a vice-presidente em 2018 e afirma que não sentiu a campanha acabar. “Desde que esse governo assumiu, nós não paramos de lutar um segundo pelos nossos direitos”, me disse em entrevista por videoconferência. “Mas, quando entramos em quarentena, até pensei que poderia tirar um tempo. Achei que iria conseguir ficar na aldeia produzindo artesanato junto a minha família, mas vi minha agenda se multiplicar por mil.”

    De sua casa, em Imperatriz, no Maranhão, Sônia viu seus compromissos aumentarem. “Desde março, eu estou aqui como você está me vendo, na rede, na frente do computador, lutando”, diz ela. A programação de eventos dos povos indígenas para 2020 teve que ser toda transferida para o mundo virtual. Um deles foi o Acampamento Terra Livre, que aconteceria presencialmente em abril. Realizado pela internet, o evento mobilizou mais de um milhão e meio de pessoas, número superior aos 5 a 6 mil presentes em edições anteriores. “O objetivo era manter o foco no nosso mote: demarcar terras e demarcar telas.”

    Guajajara entende que a crise atraiu o olhar de muitas pessoas para o modo de vida dos índios. “É um momento muito diferente do que a gente já viveu, ninguém nunca viu o mundo inteiro parar e isso foi resultado de uma reação às mudanças climáticas, essa paralisação reconstruiu muita coisa”, diz ela. “Quando você olha o benefício que os povos indígenas garantem para a humanidade, cuidando do meio ambiente, você tem que ser muito ignorante para não achar que esta luta tem que ser apoiada por todos.”

    Guajajara, Joênia Wapichana – a primeira mulher indígena a ser eleita deputada no Brasil – e outras lideranças passaram 35 dias articulando um projeto de enfrentamento indígena à pandemia. “O presidente vetou 16 pontos da matéria que foi aprovada na Câmara e no Senado, mas conseguimos apoio do Judiciário, o que acabou obrigando o governo a cumprir o que é função dele”, diz Sônia.

    Para ela, ações das mulheres indígenas em todas as esferas são importantes. “Algumas, como eu, tem a oportunidade de ter mais visibilidade, mas não quer dizer que tenha maior importância. Tem mulheres que fazem a luta política e tem as que fazem a luta pé no chão, e é esse conjunto que rompe barreiras e as imposições que nos foram colocadas.” Sônia, que mora com a mãe, o irmão e três filhos, sentiu uma maior aproximação dos povos e de sua família durante a quarentena. “Há muito tempo que a gente não ficava assim, juntos em casa, estamos aproveitando ao máximo.”

    Imagem onírica do pôr-do-sol visto do Centro Espiritual Mawa Yuxyn, no Acre, lar de indígenas yawanawa. Os sonhos são elementos importantes para a maioria das culturas ameríndias e Watatakalu Yawalapiti, da etnia yawalapiti, relata uma visão em cerimônia com ayhuasca em dezembro de 2019: "Eu vi o mundo pegando fogo, e minha aldeia virando uma favela. E, na minha cultura, fogo é febre, é doença."

    Foto de Gabi di Bella

    Para a líder espiritual Waxy Yawanawa, 52 anos, a quebra de paradigma e a luta pé no chão ganharam mais um capítulo com a pandemia. Em março, ela estava no interior de São Paulo com sua família quando o novo coronavírus parou o Brasil. Waxy não teve outra saída a não ser pedir apoio a amigos na cidade. Foram organizadas vaquinhas online, e o Instituto Socioambiental (ISA) doou as passagens para que a família pudesse voltar para casa no rio Gregório, no Acre, quase fronteira com o Peru.

    É lá, distante oito horas de barco do centro urbano mais próximo, onde ela constrói, desde 2018, o Centro Espiritual Mawa Yuxyn – Montanha dos Espíritos, com o objetivo de receber visitantes de fora e criar um intercâmbio de ensinamentos entre a cultura indígena e a dos brancos. O projeto só surgiu depois de uma mudança na cultura da etnia yawanawa. Antes, só aos homens era permitida a dieta de um ano que os tornam líderes espirituais. Waxy – e suas irmãs Putanny e Hushahu – foram as primeiras mulheres autorizadas a seguirem por esse caminho.

    Após uma quarentena de 15 dias em Rio Branco, Waxy estava de volta ao centro, mas enfrentava outro problema: a falta de comunicação. “Tivemos que continuar pedindo doações para instalar internet aqui”, conta. “Eu fiquei com muito medo que alguém passasse mal e a gente não tivesse como pedir ajuda. E também precisávamos saber o que está acontecendo lá fora.” Atualmente, ela lidera um grupo de 20 pessoas e um bebê que deve chegar em outubro.

    Waxy conta que esses meses isolados foram de muito trabalho para garantir a segurança alimentar de todos. “Aqui no Mawa Yuxyn, estamos começando a comer as bananas que a gente plantou, a mandioca. Temos o milho para fazer a caiçuma [bebida tradicional indígena], mas o rio Gregório está muito seco e com a pandemia ficou escasso o peixe.” Para Waxy, mesmo acordando às cinco da manhã, os dias estão curtos para tanto trabalho pois o mês de agosto é o último para plantar antes do início das chuvas na região. A comunidade também produz artesanato, que é enviado pelo correio para ser vendido no meio urbano – uma tentativa de arrecadar dinheiro para conseguir suprir as necessidades do centro, já que o turismo está proibido.

    A líder segue realizando trabalhos espirituais, pedindo proteção para o seu povo. “Tivemos alguns resfriados, mas não foi forte, e passou. Tratamos todos com a medicina indígena, fazendo temascal, tomando uni [outro me dado à ayahuasca], passando cepa [incenso] e pedindo ao grande espírito para que tudo isso de ruim que está acontecendo possa passar.” Waxy espera que o centro possa voltar a receber visitantes em janeiro de 2021. Para ela, a pandemia é um aviso para que a humanidade pare de desmatar e queimar a floresta. 

    Watatakalu acredita ter recebido esse mesmo aviso durante uma cerimônia com ayahuasca em dezembro do ano passado. “Eu vi o mundo pegando fogo, e minha aldeia virando uma favela. E, na minha cultura, fogo é febre, é doença. Vi dois caminhos e as pessoas estavam escolhendo para onde ir, eu não podia fazer nada quanto a isso. Desde então, me preparei para o que estava por vir”, conta. Para ela, cada um tem que fazer a sua parte na reconstrução do mundo pós-pandemia. “Quem passa muito tempo no Facebook, tem a pia cheia de louça e não está executando coisas, eu sei que lá na frente tudo isso vai passar”, disse ela. “Temos um caminho muito longo para reconstruir o mundo, tanto os povos indígenas como os não indígenas, mas temos que seguir lutando.”

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