Moradores de bairro autoconstruído em Portugal denunciam vida precária na pandemia
Com a colaboração da comunidade, o fotógrafo português José Sarmento Matos documentou a vida dos imigrantes e descendentes africanos e ciganos étnicos que vivem no Jamaica, na zona metropolitana de Lisboa.
Dois dos três prédios principais do bairro da Jamaica, no Seixal. Em 2018, as pessoas que viviam no lote 10 foram realojadas, e o edifício foi demolido em 2019. Nos prédios que restam, vivem ainda à volta de 700 pessoas em condições bastante precárias.
Esta reportagem foi produzida com apoio do Fundo Emergencial Covid-19 para Jornalistas, da National Geographic Society.
Numa capital europeia, ainda há pessoas a viver em situações precárias, com condições de habitação muito ruins. No século 21, a segregação e o racismo ainda são temas fraturantes.
Jamaica, no Seixal, zona metropolitana de Lisboa, em Portugal, é um bairro onde vivem maioritariamente pessoas de origem e descendência africana e de etnia cigana em prédios inacabados. Depois de uma das torres do Jamaica ser demolida em 2019, o processo de realojamento aparenta estar atrasado, e os edifícios restantes permanecem em condições muito difíceis para quem ainda os habita – condições que se agravam em tempos de pandemia.
Este é um bairro que está indefinido, com fronteiras pouco razoáveis. É um cenário dramático, com pouca ou nenhuma luz nas zonas comuns do prédio, em que chove dentro de algumas casas, onde o espaço já era demasiado apertado antes dos períodos de confinamento. Foi essa a causa que José Sarmento Matos elegeu documentar durante a pandemia, projeto financiado pela bolsa que recebeu do Fundo de Emergência Covid-19 para Jornalistas, da National Geographic Society, desenvolvido entre setembro de 2020 e março de 2021.
Como parte do projeto Jamaika, José Sarmento Matos distribuiu câmaras de filmar a alguns dos habitantes e pediu-lhes para assumir o papel de repórter e documentar a vivência local. Durante o trabalho, desafiou Kid Robinn, um rapper que nasceu e cresceu no bairro, para escrever a música que dá melodia e relato ao documentário. O projeto do fotojornalista teve como frutos uma coleção de retratos dos residentes; um ensaio fotográfico; um documentário e uma exposição no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa.
Existe um programa local do governo que tem previsto realojar os residentes do bairro até 2022, mas apenas um dos edifícios foi realojado até agora. Quezílias e um processo em tribunal contribuem para o atraso do processo. Cerca de 700 pessoas aguardam realojamento.
José Sarmento Matos sentou-se à conversa connosco numa esplanada à beira-rio e apresentou-nos o projeto.
À esquerda: Aurora, 30 anos, posa para um retrato na sua casa.
À direita: Asmir, 22 anos, namorado da Aurora, retratado na sua cama.
À esquerda: Adelaide Costa, 59 anos, posa para um retrato no seu café.
À direita: Alda e Lurdes Pontes, mãe e filha, posam para um retrato.
"Nos arredores de Lisboa, no Seixal, Jamaica é um bairro extremamente carenciado, composto por prédios inacabados onde vivem migrantes de África ou descendentes de africanos de Angola, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau e pessoas de etnia cigana. Faltam condições sanitárias básicas, chove dentro de algumas casas e as pessoas têm de subir as escadas às escuras porque não há eletricidade na maioria dos espaços comuns.”
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“A pandemia agravou a pobreza e o sentimento de isolamento desta comunidade, que sofre há muitos anos de segregação. A maioria dos residentes têm trabalhos não qualificados – o que torna a sua situação econômica ainda mais frágil durante a pandemia – e, dadas as condições de habitação, estão muito mais expostos à crise sanitária provocada pelo covid-19, especialmente nestes tempos em que o conforto do lar se tornou mais importante do que nunca. Até agora, a comunidade não recebeu qualquer apoio destinado a melhorar as condições habitacionais tendo em vista a luta contra o Sars-Cov2.”
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“Além de ser segregado há mais de 30 anos, o bairro da Jamaica é geralmente foco de notícias quando há intervenções da polícia, menosprezando-se sempre o fato de se tratar de um caso de grave injustiça social. É isto que este trabalho tenta salientar, aprofundando o dia-a-dia do bairro durante a atual crise, mas também reportar uma situação que não devia existir em Portugal no século 21. O projeto centra-se em histórias de vida com diferentes experiências de confronto com a ameaça do covid-19, contadas na perspetiva dos próprios moradores, mas também se foca em vivências e experiências que contam a história do bairro e das pessoas que lá vivem.”
À esquerda: Manuela Pedro, 35 anos.
À direita: Roberto Cravid, o Kid Robinn, 22 anos, rapper nascido e criado no bairro da Jamaica.
À esquerda: Lulu posa para um retrato no café da Ivete.
À direita: Cristiana Chaves, 55 anos, trata do cabelo da sua nora em frente à sua casa.
“Como fotógrafo documental e jornalista, decidi abordar este projeto de uma forma mais imersiva, não só para compreender melhor a realidade, mas também para expor à audiência uma perspetiva menos tradicional e mais íntima do que é viver num bairro como o Jamaica. Para além de ter feito o meu trabalho documental fotográfico mais convencional, emprestei câmaras digitais compactas a um grupo de residentes para serem eles a criar parte das suas narrativas. Também quis que as entrevistas fossem feitas de uma forma colaborativa, com amigos a entrevistarem-se mutuamente e crianças a entrevistarem as suas mães acerca do seu passado, as suas raízes e a vinda dos seus países de origem para Portugal, diretamente para o bairro da Jamaica. Embora tenham contado com a minha ajuda na construção de algumas perguntas e, também na filmagem das entrevistas, foram as pessoas que escolheram o que queriam contar sobre a pandemia e os seus impactos, o que mudou nas suas vidas pessoais e profissionais e que tipo de apoio necessitam, ou questões relacionadas com a chegada a Portugal quando imigraram.”
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Tive também a colaboração de um rapper local, Kid Robinn (22 anos), nascido e criado no bairro, que escreveu uma música/poema contextualizando a sua história de vida – desde que nasceu até à atual pandemia (a canção “perspetiva” faz parte do filme).
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O projeto pretende amplificar as vozes dos residentes no bairro da Jamaica de forma a melhorar a sua relação com a sociedade e expor uma situação que representa uma grave questão de desigualdade em Portugal, que deve ser posto em causa e mudado.