Capital do violino, na Itália, está se recuperando pela música após ser assolada pela pandemia
Conhecida por seus fabricantes de violinos, Cremona irá inaugurar um conservatório de instrumentos de corda.
O fabricante de violinos Daniele Tonarelli, é um dos mais de 150 luthiers de Cremona. Embora a pandemia de covid-19 tenha atingido duramente a cidade italiana, um novo conservatório pode ajudar a revitalizar a economia e trazer os turistas de volta à cidade.
Há mais de 450 anos, Andrea Amati inventou o violino moderno na cidade italiana de Cremona. A cidade é conhecida há séculos como a capital mundial dos fabricantes de violinos. Conhecidos como luthiers, esses artesãos agora estão ajudando a a cidade de Cremona a se reerguer. No ano passado, ela foi dizimada pelo surto de covid-19.
Enquanto a pandemia calava a Itália, doces melodias continuavam ressoando em Cremona. Os luthiers tiveram de suspender muitas atividades, mas não cederam. Os violinos promoveram uma paisagem sonora melancólica para uma cidade silenciada. Durante o período de restrições rígidas, esses instrumentos eram produzidos e tocados nos estúdios dos luthiers, ecoando nas ruas e praças desertas da antiga cidade.
A cidade de Cremona tem 2,2 mil anos. Ela sobreviveu a invasões, rebeliões e doenças infecciosas ainda mais perigosas do que a covid-19. Cremona já foi governada, ocupada ou saqueada por romanos, lombardos, godos, hunos, espanhóis e austríacos. Mais recentemente, ela foi dominada pelos luthiers. Mais de 150 fabricantes de violino residem nessa pequena cidade com cerca de 70 mil habitantes, que fica a aproximadamente 69 quilômetros a sudeste de Milão, na região da Lombardia, no norte da Itália.
O novo conservatório chamado Stauffer Center for Strings será inaugurado em outubro de 2021. A escola de música e o centro cultural estarão localizados em um palácio restaurado do século 17.
Com a chegada da covid-19 à Europa no ano passado, a Lombardia foi o epicentro. Uma das primeiras mortes decorrentes do novo coronavírus do continente ocorreu em Cremona, que rapidamente se tornou uma das cidades mais afetadas do planeta. Milhões de pessoas em todo o mundo viram imagens perturbadoras de hospitais lotados em Cremona, profissionais da área da saúde desesperados e necrotérios cheios.
Mas agora Cremona está se reerguendo, junto com sua famosa exportação musical. A Itália pode em breve impor novamente restrições de viagem para norte-americanos, mas, por enquanto, o país reabriu as portas para turistas vacinados de muitos países. Eles vêm para admirar as graciosas igrejas de Cremona, saborear seus pratos de carne, como o Gran Bollito Cremonese, e subir a torre de relógio mais alta do país, o Torrazzo de Cremona, de mais de 111 metros.
Enquanto isso, a comunidade de violinistas de Cremona está se recuperando, em razão do retorno da feira de música da cidade, que ocorrerá em 24 de setembro, e à inauguração de uma grande escola dedicada a instrumentos de cordas, que será realizada em outubro. Com a participação de músicos de renome mundial, o Stauffer Center for Strings oferecerá aulas para violinistas, violistas, violoncelistas e contrabaixistas. Alguns desses alunos talentosos poderão até mesmo tocar instrumentos fabricados em Cremona durante o período de quarentena.
O legado de Stradivari
Um dos perseverantes luthiers de Cremona foi Fernando Lima. No auge do surto de covid-19 na cidade, o luthier português de 59 anos não pôde sair de casa, abraçar seus familiares ou apreciar a luz do sol por muito tempo. Mas ele podia raspar lascas de madeira de bordo do corpo de um violino até que ficasse perfeito para ser tocado com precisão.
Quando visitei a oficina de Lima antes da pandemia, ele me disse que modelar cuidadosamente um violino o deixava em um estado quase meditativo. Recentemente, Lima descreveu como esse aspecto terapêutico de sua arte o ajudou durante os dias mais sombrios da pandemia.
“Foi um momento assustador, era possível ouvir sons de ambulâncias o dia todo”, relembra Lima. “Eu podia ouvi-los como se estivessem dentro da minha loja. Fui trabalhar todos os dias e ficava o dia inteiro lá, só voltava para casa para dormir. Mas aproveitei para aprimorar minha arte, experimentar coisas que em outros momentos não consegui, e foi produtivo.”
Um artesão manuseia um violino na oficina do mestre luthier Giorgio Grisales, na cidade de Cremona, em 9 de junho de 2020.
Um jovem luthier esculpe a voluta de um violino em Cremona, na oficina do mestre luthier Giorgio Grisales.
Um luthier encaixa a placa traseira de um violino durante uma oficina em Cremona, em setembro de 2017. As placas que identificam o fabricante do instrumento e o local onde foi fabricado, são motivo de orgulho para os luthiers.
Lima mora em Cremona há 16 anos e se formou na escola de fabricação de violinos Antonio Stradivari. Foi Stradivari quem fez com que Cremona obtivesse sua fama. Se Amati é o pai do violino, Stradivari é seu mestre. Nenhum luthier jamais refinou o tom do violino como Stradivari, que nasceu em Cremona em 1644, e morreu na cidade 93 anos depois. Durante esses anos, criou mais de mil violinos sofisticados, alguns dos quais foram vendidos por até US$ 16 milhões.
Um novo conservatório
Felizmente, os visitantes de Cremona não precisam ser ricos para ver ou ouvir uma das obras-primas de Stradivari. De frente para a arborizada Piazza Marconi, o impressionante Museu do Violino exibe instrumentos produzidos por Stradivari e tem um auditório onde solistas tocam seus violinos frequentemente.
O museu exibe as coleções do Município de Cremona e da Fundação Walter Stauffer, organização que está auxiliando na recuperação de Cremona por meio da inauguração do Stauffer Center for Strings no dia 1o de outubro. O diretor do conservatório, Paolo Petrocelli, afirma que todos os programas serão oferecidos aos alunos gratuitamente, por meio de bolsas integrais, como parte do objetivo de preservar o patrimônio musical de Cremona.
Apesar da tragédia causada pela pandemia, Petrocelli diz que a fundação nunca considerou construir o centro em outro lugar. “Este é o nosso lugar”, afirma Petrocelli. Ele se referia à cidade e ao prédio que abriga o conservatório, o majestoso Palazzo Stradiotti, uma mansão restaurada do século 17.
Durante os preparos para a inauguração do Stauffer Center, algumas das escolas de luthiers em Cremona têm a sorte de ainda estar em atividade. Quando visitei a cidade antes da pandemia, a Academia Cremonensis estava repleta de ansiosos alunos luthiers vindos de toda a Europa, Ásia e Américas. Seu cofundador, Massimo Lucchi, me guiou em um tour pelo grande campus enquanto explicava com entusiasmo seus planos de expansão. Neste mês, Lucchi me contou que a escola quase sucumbiu devido à pandemia.
A renda da escola despencou por causa da impossibilidade de muitos alunos viajarem para Cremona. Mas a academia permaneceu aberta durante a maior parte da pandemia, para que seus alunos estrangeiros não ficassem confinados sozinhos em seus apartamentos. “Foi bom ver nossos alunos de todo o mundo ajudando uns aos outros e criando uma pequena comunidade em uma Cremona deserta e fantasmagórica”, diz Lucchi.
Alunos praticam violino no Stauffer Center for Strings, um novo conservatório localizado em um palácio restaurado do século 17 em Cremona, Itália.
Outros membros da comunidade de violinistas da cidade não tiveram a mesma sorte. Lucchi conta que recebeu telefonemas angustiantes de violinistas desempregados pedindo-lhe que revendesse seus preciosos instrumentos para poderem sustentar suas famílias. Essas histórias de desespero pesaram na alma de Lucchi. Ele passou incontáveis dias construindo violinos enquanto a pandemia assolava a cidade.
Com a vacinação contra a covid-19 em alta na Itália, os cremonenses também estão se animando. Eles ficaram entusiasmados ao ver os turistas mais uma vez andando pelas ruas da cidade, afirma Lucchi.
Em setembro, a feira anual Cremona Musica estará de volta. Realizado de 24 a 26 de setembro no Centro de Exposições de Cremona, esse evento permite que os luthiers exibam seus instrumentos para consumidores e músicos de todo o mundo. No ano passado, o evento foi on-line e poucas vendas foram realizadas, comenta Lucchi.
Este ano, Lucchi diz que a comunidade violinista da cidade está animada, mas apreensiva em relação ao evento. “Estamos todos esperando para ver se o mundo ainda precisa de Cremona e seus violinos.”