Cantores mascarados mantém tradição natalina irlandesa

Durante séculos, na Irlanda, pessoas utilizando máscaras cobrindo todo o rosto apareciam inesperadamente nas casas, vestindo uma antiga fantasia típica do feriado. Agora, após um longo período em que deixaram a tradição de lado, o costume está de volta.

Por Ronan O’Connell
Publicado 17 de dez. de 2021, 07:00 BRT
No Condado de Leitrim, na Irlanda, um grupo de pessoas mascaradas, vestidas com fantasias feitas de ...

No Condado de Leitrim, na Irlanda, um grupo de pessoas mascaradas, vestidas com fantasias feitas de palha, preparam uma apresentação para a comunidade, às vésperas do Natal. O “mumming”, uma antiga tradição irlandesa, vem sendo praticada novamente em todo o país, por pessoas de todas as idades, como uma forma  de diversão e conexão durante a pandemia de covid-19.

Foto de Ronan O'Connell

Por pelo menos 400 anos durante a época de Natalirlandeses mascarados vestiam-se com roupas feitas de palha e visitavam casa por casa, encantando residentes com peças de teatro, rimas, canto, dança e música. Por volta da metade do século 20, esse costume praticamente desapareceu, em parte devido a rupturas na sociedade irlandesa. Agora, no entanto, a prática conhecida como mumming está ressurgindo.

Tudo isso devido a diversos clubes de mumming na Irlanda que se apresentam durante os dias que antecedem o Natal. Há sete anos, a artista Edwina Guckian iniciou um grande projeto no Condado de Leitrim.  A palha, colhida em fazendas locais, é transformada em máscaras e vestidos feitos à mão e usados por mais de 300 jovens mascarados que, reunidos em grupos, apresentam-se em frente às casas durante todo o mês de dezembro. O fim do evento em Leitrim é marcado pela queima dos trajes em uma fogueira festiva.

Mas não os chame de “Homens de Palha”. Acadêmicos afirmam que, embora acredite-se que a prática do mumming remonta aos tempos pagãos, evidências apontam que essa origem é uma crença popular, não um fato.

De qualquer maneira, a prática do mumming está ajudando a nova geração a criar vínculos com tradições antigas, afirma Guckian. Mesmo que, historicamente, grupos de mumming fossem formados por homens jovens, hoje eles representam o espectro completo da sociedade irlandesa.

Turistas que desejam assistir a uma apresentação podem dirigir-se a Leitrim, um condado bucólico localizado no noroeste da Irlanda, conhecido por suas florestas verdejantes, lagos cristalinos e comunidades rurais unidas.

A palavra mumming

A palavra mummer (mascarado, em português), cuja origem acredita-se ser germânica, é utilizada para se referir a um ator mascarado nos países onde essa tradição ganhou espaço, como Irlanda, InglaterraEscócia, e Canadá. O costume teve origem na Inglaterra e chegou à Irlanda em meados da década de 1600, explica Anne O’Dowd, curadora aposentada do Museu Nacional da Irlanda e autora do livro Straw, Hay and Rushes in Irish Folk Tradition (Palha, feno e junco na tradição folclórica irlandesa, em tradução livre). 

Durante séculos, o mumming foi comum na região norte da Irlanda e ao longo da costa leste. A prática ganhou um toque irlandês através de personagens e temas. Historicamente, cada grupo, composto apenas por homens, retratava heróis irlandeses, como São Patrício, figuras políticas controversas, como os britânicos Oliver Cromwell e o Rei George, personagens folclóricos, como Jack Straw e criaturas mitológicas, incluindo Belzebu.

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    Nesta foto de 1927, mascarados chegam a uma casa para cantar, dançar, tocar música e contar histórias. Historicamente, eram homens jovens e solicitavam pagamento a quem assistia as apresentações.

    Foto de SOTK2011, Alamy Stock Photo
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    Mascarados ganham uma bebida enquanto celebram o Dia de Santo Estêvão, em 26 de dezembro de 1955.

    Foto de George Pickow, Three Lions/Hulton Archive/Getty Images

    Uma luta entre dois destes personagens, um vilão e um campeão, poderia acabar em sangue. “Então, chega um médico e traz o personagem morto de volta à vida”, conta O’Dowd. “O tema das peças — vida e renascimento — é um evento recorrente todos os anos na natureza.”

    Com rostos cobertos, roupas esfarrapadas e um pedaço de pau nas mãos, os mascarados tradicionais tinham uma aparência violenta, conta Críostóir Mac Cárthaigh, diretor da Coleção do Folclore Nacional da Universidade de Dublin. Eles entravam nas casas sem serem convidados e pediam para se apresentar. Alguns residentes ofereciam uma recepção calorosa. Outros não, porque seus filhos ficavam assustados. Em ambos os casos, os mascarados geralmente eram pagos por sua presença.

    As apresentações eram divertidas, mas com aspectos de intimidação, escreveu Henry Glassie em seu livro lançado em 1977, All Silver and No Brass: An Irish Christmas Mumming (Só prata, sem latão: o mumming natalino irlandês, em tradução livre). Perto do fim de uma apresentação típica dos mascarados, apareciam dois personagens diabólicos. Se a o pagamento feito a eles não fosse suficiente, ameaçavam roubar os animais do proprietário da casa e “varrê-los para a sepultura”.

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      Para confeccionar os trajes dos mascarados, a palha é colhida em fazendas locais e as máscaras e os vestidos são feitos à mão. No Condado de Leitrim, uma prática de mumming é finalizada com uma fogueira festiva montada com as roupas de palha.

      Foto de Shawn Williams, Alamy Stock Photo

      “As rimas e atuações fazem com o que evento seja divertido, mas a mensagem é clara”, observa Glassie. “Há muitos homens jovens, armados com paus dentro da sua casa, que querem que as pessoas lhes deem dinheiro.”

      Em cada grupo de mumming, um personagem pedia dinheiro através de rimas. “Cá estou eu, o Zombeteiro, vim aqui receber o dinheiro. Somente prata, sem latão, dinheiro ruim eles não aceitarão”, dizia um dos versos clássicos. Os mascarados costumavam converter os lucros em festas regadas a álcool, conta Mac Cárthaigh. Atualmente, as doações recebidas pelos mascarados costumam ser destinadas à caridade e programas comunitários.

      O mumming também gerou impactos positivos em épocas passadas, continua Mac Cárthaigh. A tradição ajudou a reconectar algumas comunidades católicas e protestantes da Irlanda que estavam segregadas, ao reunir membros de cada religião no mesmo grupo. Mas, à medida que a divisão sectária do país aumentou durante o século 20, a prática do mumming desapareceu.

      Entre as décadas de 1950 e 1980, com a Irlanda cercada por instabilidade social, os mascarados precisavam de autorização para se apresentarem nos arredores da fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. Com o espectro iminente de unidades paramilitares nacionais que orquestraram muitos dos incidentes violentos que dividiram ainda mais a Irlanda, as pessoas ficaram compreensivelmente assustadas com grupos de homens disfarçados.

      Ânimo durante os isolamentos da pandemia

      Nos dias atuais, em uma Irlanda mais pacífica, a prática do mumming está livre daquele passado tão pesado, e passou a ser vista como uma atividade singular e aberta a todos. Os mascarados de Leitrim variam entre garotos com 2 anos de idade até mulheres com 70 anos. Muitos deles são excelentes músicos, que agradam os espectadores através da maestria no uso de instrumentos como violino, banjo, flauta irlandesa e bodhrán. Outros são dançarinos gaélicos, atores e cantores talentosos. Alguns são tão jovens que seus talentos se resumem a ficarem adoráveis em seus trajes de palha.

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        Os mascarados vão de casa em casa tocando tambores, banjos, violinos e flautas irlandesas.
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        Edwina Guckian, retratada com seu filho e marido, liderou o renascimento da prática de mumming no Condado de Leitrim.

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        Os mascarados vão de casa em casa tocando tambores, banjos, violinos e flautas irlandesas.

        fotos de Ronan O'Connell

        Separados em grupos de quatro a oito pessoas, muitas vezes adultos e crianças, percorrem o Condado de Leitrim batendo de porta em porta, dançando, cantando, rimando, tocando instrumentos ou fazendo pequenas encenações. Ao contrário dos mascarados antigos, eles não são pagos por suas apresentações. Em vez disso, a recompensa vem na forma de um convite para a celebração privada dos mascarados, que acontece logo após o Natal, quando a fogueira para queima dos trajes é acesa.

        A maioria dos fãs idosos já foram mascarados no passado. Guckian pensou exatamente nessas pessoas vulneráveis, obrigadas a permanecer dentro de suas casas durante os isolamentos provocados pela pandemia de covid-19 na Irlanda, quando decidiu reagir à situação através do mumming.

        Junto com Fionnuala Maxwell e Brian Mostyn, amigos e colegas músicos, Guckian se apresentou em cerca de 130 asilos e casas de repouso nos últimos 18 meses. A ameaça da covid-19 e as rígidas normas do governo fizeram com que o trio se apresentasse na porta das casas. Eles não puderam entrar nos ambientes, apesar dos apelos das pessoas ávidas por conversas e companhia.

        “As boas-vindas que recebemos foram muito comoventes”, relembra Guckian. “Algumas pessoas pegaram seus instrumentos e juntaram-se a nós. Outras só quiseram conversar, e algumas até perguntaram se podiam passar o dia conosco.”

        Para diversos membros da plateia, essas experiências joviais foram suas últimas na Terra. Como muitos dos milhares de idosos irlandeses que perderam a vida para a covid-19, cresceram em comunidades enriquecidas pela prática do mumming. Também presenciaram a tradição desaparecer.

        Mas, antes de falecerem, esses homens e mulheres do Condado de Leitrim receberam uma última visita emocionante. O som de um sino. O acorde de um banjo. O som de uma flauta. O barulho de passos de dança. E o brilho afetuoso de olhos irlandeses por trás de uma máscara de palha. Os mascarados voltaram.

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