Por dentro das cerimônias de candomblé em Salvador

Com raro acesso, o fotógrafo Mauricio Susin revelou a beleza das tradições afro-brasileiras na Bahia.

Por Mauricio Susin
Publicado 8 de nov. de 2017, 20:36 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
candomble-salvador
Mauricio Susin foi até Salvador e presenciou alguns dos rituais praticados do candomblé. "As filhas e filhos de santo dançavam em transe. Me vi em meio a uma atmosfera eletrizante. Os orixás estavam 'baixados'", disse ele.
Foto de Mauricio Susin

Dos terraços de Santo Antônio Além do Carmo, antigo bairro de Salvador, via-se a noite cair na Baía de Todos os Santos, enquanto pequenas embarcações retornavam à segurança do porto numa silenciosa procissão. O som de atabaques despertava os ânimos da vizinhança. Era festa de Ogum. O terreiro de candomblé Ilê Axé Oyá Ogum Silé Omin iniciava os festejos ao orixá, símbolo do ferro e da guerra.

Atraído pela batucada, corri para a frente do terreiro, uma antiga casa de dois andares decorada com bandeirolas azuis e brancas – as cores de Ogum. Uma voz feminina, aos fundos, me convidou alegremente: “Entre, meu filho!”. Sob o olhar atento da imagem de Exu, o guardião do candomblé, percorri um longo corredor que conduzia ao “barracão” principal. A casa estava cheia e vibrante. Numa mesa grande ficavam as oferendas aos orixás. Tinha de tudo um pouco: canjica, acarajé, pirão de peixe, pimentas, doces e bebidas. Ao toque dos atabaques se uniam os agogôs, cabaças e chocalhos, enquanto as filhas-de-santo seguiam o ritmo dançando. O ritual estava na fase preparatória para a chegada dos orixás, que viriam mais tarde, no clímax da noite. Este era apenas um entre os mais de mil terreiros da capital baiana.

Salvador é uma cidade-templo, sincrética, morada de santos católicos e africanos. Pelas ruas em festas populares, nos antigos terreiros ou nas igrejas barrocas, a cidade, como nenhuma outra no mundo, sabe festejar seus santos e orixás. Basta ir à missa da Terça-Feira da Benção na igreja do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, ou na lavagem das escadarias da igreja do Bomfim. O sincretismo é parte central e indissociável da identidade da cidade. No terreiro do Gantois, da célebre Mãe Menininha do Gantois, fundando em 1849, conversei com a atual Ialorixá, a Mãe-de-Santo Carmen de Oxalá, de 86 anos, que disse: “O sincretismo veio em função de os negros não terem permissão para festejar seus deuses. No dia de Santa Bárbara, os negros da senzala faziam o culto a Iansã. O sincretismo é importante, pois une e manda um sinal de respeito entre as religiões”.

Até meados do século 19, estima-se que os portos de Salvador foram destino de 3,5 milhões de escravos negros, oriundos de diversas regiões da África, principalmente Angola, Nigéria e Benin. Embarcaram rumo ao desconhecido e deixaram para trás família, terras e sonhos. Os deuses e os costumes, no entanto, vieram a tiracolo. Foi assim, através da religião, que começou a resistência dos negros escravizados – antes mesmo de deixarem o continente africano.

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    Para Mãe Índia, líder do terreiro Bogum, “os sacrifícios devem ser entendidos dentro de um contexto ritualístico, ancestral, que além de ofertar o sangue do animal aos orixás, provê alimento às pessoas, sem desperdícios. Acredito que a indústria de produção intensiva de carne seja o maior problema aos direitos dos animais”.
    Foto de Mauricio Susin

    Os diferentes grupos étnicos africanos que chegaram na Bahia, como yorubás, fons e bantus, formariam diferentes nações do candomblé. Atualmente, as três principais são Ketu, Angola e Jeje. Quando visitei terreiros das diferentes nações, em todos ouvi a mesma coisa – o convívio entre elas é harmonioso e de respeito mútuo. A distinção se dá pelo conjunto de divindades veneradas, pelos idiomas falados nas celebrações, pelas músicas e pelas vestimentas.

    No Brasil, as religiões africanas tiveram que se adaptar à nova realidade e elementos locais foram agregados, formando uma religião genuinamente brasileira. “Muitas coisas não existiam na África. Os escravos trouxeram a base e aqui se desenvolveu a religião afro-brasileira, o candomblé”, comentou Cícero, babalorixá do terreiro de Bate-Folha da nação de Angola, fundado em 1913. Além dos santos católicos, novas espécies de animais, plantas, temperos e alimentos foram introduzidos. As vestimentas e indumentárias também ganharam novos componentes, como, por exemplo, as saias e batas de origem portuguesa e o uso das chamadas “ferramentas de santo” – espadas, braceletes, escudos e arcos-e-flechas.

    Devotos na Casa de Oxumarê, terreiro fundado no século 19, se preparam para iniciar os rituais. Salvador. 2016.
    Foto de Mauricio Susin

    O primeiro terreiro de Salvador, o Barroquinha, foi fundado no início do século 19, atrás da igreja de Nossa Senhora da Barroquinha, no centro da cidade. O terreiro foi forçado a deixar o local e se transferiu para uma região distante, se transformando no terreiro da Casa Branca. Deste, saíram as fundadoras de dois importantes terreiros: o Gantois e o Ilê Axé Opô Afonjá de Mãe Stela de Oxóssi, ambos ainda do século 19 e patrimônios da cidade.

    Como forma de resistência, os negros erguiam os terreiros em locais distantes dos centros urbanos e os chamavam de roças. Eram regiões de mata fechada de difícil acesso – a viagem desde o centro podia levar dias. A distância contribuiu não apenas para dar maior liberdade à prática da religião, mas também para fortalecer a ligação com a anima (alma) da natureza – base do candomblé. “O candomblé é bonito pela ligação elemental com a natureza. Aqui, lidamos com a terra, plantas, água e fogo. Pregamos o respeito à natureza. Essa é nossa riqueza”, afirmou Mãe Índia, líder do terreiro de Bogum, o mais antigo da nação Jeje. “Os orixás representam diferentes elementos da natureza e são a expressão máxima do divino, do sagrado”.

    Sobre as críticas em relação aos sacrifícios de animais, como galinhas e bodes, Mãe Índia argumenta: “Os sacrifícios devem ser entendidos dentro de um contexto ritualístico, ancestral, que além de ofertar o sangue do animal aos orixás, provê alimento às pessoas, sem desperdícios. Acredito que a indústria de produção intensiva de carne seja o maior problema aos direitos dos animais”.

    Dos 21 orixás que fazem parte do panteão dos deuses africanos, alguns são mais conhecidos do público em geral, como Iemanjá, Oxalá e Exu. Iemanjá – ou Janaína –, rainha do mar e protetora dos pescadores, atrai todos os anos milhares de devotos para a grande festa do dia 2 de fevereiro, quando pescadores prestam oferendas e pedem boa pesca e mar calmo. A maior festa de Salvador acontece na colônia de pescadores do Rio Vermelho, onde os mais antigos ainda relatam os causos misteriosos dos que se aventuraram ao mar e, atraídos por Janaína até o fundo, nunca mais voltaram. “O pescador que conhece as histórias do lugar morre de medo e vontade de encontrar Iemanjá”, cantou Dorival Caymmi sobre a relação de amor e de assombro dos pescadores.

    O tradicional terreiro do Gantois, fundado em 1849, é liderado pela Ialorixã Carmen e sua filha Angela. Salvador, 2016.
    Foto de Mauricio Susin

    Já Exu, protetor dos terreiros, é o que faz a ligação entre o mundo dos homens e o dos orixás. Ele é frequentemente associado pela religião cristã à figura do diabo, ou do mal. Exu, no entanto, deve ser entendido como a natureza humana, repleta de contradições e conflitos. Ele pode amar e odiar, promover a paz ou a guerra – é reflexo do caos presente no universo e no homem.

    As religiões afro-brasileiras sempre enfrentaram preconceitos. Quando perguntei aos líderes dos terreiros qual era o maior desafio do candomblé hoje, a resposta quase unânime foi intolerância religiosa. Apesar disso, o candomblé continua sendo um símbolo de resistência cultural e da identidade negra no Brasil. “Num mundo tão dinâmico e tão violento, o candomblé é uma referência aos jovens das comunidades mais pobres. É um grande útero onde todos podem ser filhos. É um refúgio da cultura e da identidade do nosso povo”, disse Mãe Carmen do Gantois.

    Já era tarde da noite em Santo Antônio Além do Carmo quando a festa de Ogum atingia o clímax. Os atabaques iniciaram o poderoso “toque de santo”, pedindo a presença dos orixás. As filhas e filhos de santo dançavam em transe. Me vi em meio a uma atmosfera eletrizante. Os orixás estavam “baixados”. As equedes e ogans, responsáveis por cuidar e vestir os orixás, conduziram os filhos de santo em transe para a camarinha, onde vestiriam as roupas características. Depois de uma pausa para os presentes respirarem fundo, os atabaques voltaram, cheios de energia. Alguns espiavam ansiosos as escadarias brancas no meio da casa, por onde desceriam os orixás. Eles não tardaram. Para o meu encantamento e assombro, desciam ali, em fila, Iansã, Oxalá e Ogum. Os orixás saudaram os presentes com gritos e danças, mostrando todo poder e divindade.

    Deixei o terreiro e desci pela rua silenciosa, voltando aos poucos à dimensão urbana e caótica da capital baiana. Com as luzes do festejo já distantes, lembrei dos versos de “Milagres do Povo”, de Caetano Veloso, inspirados no ceticismo que não resiste aos mistérios e à beleza do candomblé: "Quem é ateu e viu milagres como eu/ Sabe que os deuses sem Deus/ Não cessam de brotar/ Nem cansam de esperar".

     

    Mauricio Susin é fotógrafo baseado em Porto Alegre. Veja mais do seu trabalho no Instagram.

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