Elas escaparam do Boko Haram, e agora estão compartilhando suas histórias

Vítimas de sequestro e estupro na Nigéria, essas mulheres trabalham para evitar que outras meninas sofram os mesmos horrores nas mãos do grupo extremista islâmico.

Por Alexandra E. Petri
fotos de Stéphanie Sinclair
Publicado 16 de abr. de 2018, 12:03 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Hauwa conta sua história a membros da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos em um evento organizado pela congressista da Flórida Frederica Wilson. As meninas ficaram agradecidas pelo tempo com os legisladores. "Ninguém prestou atenção às nossas histórias em nosso país", diz a ex-prisioneira.
Foto de Stéphanie Sinclair

Em um local próximo ao Times Square, em Manhattan, Nova York, Ya Kaka e Hauwa divertem-se com uma caricatura feita por um artista de rua. Um tecido colorido sai de dentro de seus enormes casacos de inverno. Mas, ainda assim, as adolescentes misturam-se perfeitamente à multidão, aproveitando o momento de anonimato pelo qual lutaram desde que escaparam do cativeiro do temido grupo extremista islâmico na Nigéria, o Boko Haram.

“Nunca pensamos que poderíamos escapar e estar aqui hoje”, diz Ya Kaka, enquanto reflete sobre sua jornada para a América. Ela está usando um chapéu de inverno com as palavras "Washington, D.C." na parte inferior e um pompom branco no topo. “Eu nunca pensei que fosse sobreviver”.

Ya Kaka e Hauwa, identificadas apenas por seus primeiros nomes por razões de segurança, não se conheciam antes ou durante o tempo de cativeiro, mas os horrores que compartilham as uniram em defesa de outras sobreviventes e daquelas que ainda são mantidas pelo Boko Haram.

A jornada as trouxe da cidade nigeriana de Maiduguri para Manhattan e Washington, D.C. Trabalhando com a organização sem fins lucrativos Too Young to Wed, as meninas se reuniram com funcionários do governo e da ONU para aumentar a conscientização sobre a ameaça do Boko Haram e pedir à comunidade internacional para ajudar as pessoas afetadas.

"Sei que deixei milhares de pessoas na floresta e nas ruas de Maiduguri", diz Ya Kaka. “Agora, a melhor coisa que posso fazer para ajudar é tentar falar com o mundo.”

Duas entre milhares

O Boko Haram foi lançado às notícias em 2014, quando o grupo sequestrou 276 garotas de uma escola em Chibok, na Nigéria, provocando uma campanha mundial e a hashtag #BringBackOurGirls. Mas o grupo vem travando uma campanha brutal no nordeste da Nigéria desde 2009, forçando a saída de 2,5 milhões de pessoas de suas casas, matando mais de 20 mil pessoas e sequestrando milhares, usando mulheres e meninas como noivas e escravas sexuais, além de forçarem seus filhos a se tornarem a próxima onda de insurgentes do Boko Haram.

Em fevereiro de 2018, outro sequestro em massa foi notícia quando um grupo dissidente do Boko Haram sequestrou 110 estudantes da cidade de Dapchi.

Ya Kaka tinha 15 anos quando os combatentes do Boko Haram atacaram sua aldeia, Bama, em 2014. Ela foi sequestrada junto com seu irmão mais novo, de 6 anos, e sua irmã, de 5 anos. O paradeiro dos dois permanece desconhecido.

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    Ya Kaka é retratada aqui com suas irmãs Yagana, 21 (esquerda), e Falimata, 14 (direita). Todas as três foram sequestradas e mantidas em cativeiro pelo Boko Haram. O irmão mais novo e a irmã de Ya Kaka, na época com 6 e 5 anos, respectivamente, também foram sequestrados, mas seu paradeiro permanece desconhecido.
    Foto de Stéphanie Sinclair

    Hauwa tinha 14 anos quando os militantes invadiram a casa dela procurando por seu irmão mais velho. Quando não conseguiram encontrá-lo, exigiram que seu pai entregasse Hauwa como noiva. Quando seu pai se recusou, os insurgentes mataram ele e a madrasta antes de levar Hauwa embora.

    Tanto Hauwa quanto Ya Kaka acabaram sendo levadas para campos dentro da densa Floresta de Sambisa, na Nigéria, onde foram forçadas a se casar com insurgentes, estupradas repetidamente por seus maridos e outros homens nos campos e tratadas, como diz Ya Kaka, "como escravas comuns".

    Nem Ya Kaka nem Hauwa, agora com 19 e 18 anos, respectivamente, estão certas de quanto tempo exatamente foram mantidas em cativeiro. Ya Kaka acha que ela ficou detida por mais de um ano, enquanto Hauwa estima que ficou em cativeiro por pelo menos nove meses. Ao longo do período de terror, Ya Kaka diz que sentia falta dos pais e ansiava por uma boa refeição. Hauwa também pensava com frequência em sua família.

    "Eu vi meu pai ser morto e minha madrasta teve o mesmo destino", diz Hauwa. “[Muitas vezes me perguntei] onde estava minha mãe? Quem vai contar essa história a ela? Como ela irá se sentir?”

    Foi a maternidade que estimulou suas fugas milagrosas.

    Quando as mulheres davam à luz na aldeia natal de Ya Kaka, ficavam isentas de algumas das responsabilidades diárias, explica Ya Kaka. Mas esse não era o caso no campo dos militantes, onde ela diz que foi maltratada e tinha pouca comida. Depois de dar à luz, Ya Kaka sabia que precisava encontrar uma saída. Ela encontrou coragem em três mulheres que se aproximaram dela com um plano para fugir. "Elas disseram: 'Devemos correr, vamos correr'", diz Ya Kaka. “E então [dois ou três dias depois] nós corremos”.

    Enquanto isso, Hauwa diz que começou a pensar em um plano de fuga enquanto seu corpo sinalizava que ela estava chegando perto de dar à luz. Ela sabia que não poderia dar a luz a um bebê no acampamento, ela diz. Não havia ninguém para ajudá-la e ninguém para conversar.

    "Eu tinha certeza de que iria morrer", diz Hauwa. "Eu sabia que precisava fugir."

    Hauwa estava prestes a dar a luz quando decidiu escapar. O bebê recém-nascido não sobreviveu à fuga.
    Foto de Stéphanie Sinclair

    Segunda tragédia

    As duas garotas caminharam por semanas em busca de segurança; seus bebês não sobreviveram às viagens. Ao longo do caminho, Ya Kaka e Hauwa aprenderam que sobreviver nem sempre traz liberdade. Muitas garotas que escapam do Boko Haram são incapazes de se reunir com seus pais ou ficam desabrigadas e sozinhas, perambulando pelas cidades sem nada além de roupas esfarrapadas e sem meios de se reintegrar à sociedade. Os especialistas chamam isso de “segunda tragédia da estigmatização”, uma realidade que atingiu Hauwa quando finalmente chegou à cidade de Maiduguri.

    Ela diz que suas roupas desgrenhadas trouxeram discriminação nas ruas da cidade, incitando outros a chamarem ela de "esposa do Boko Haram" e insultá-la. As comunidades também tendem a evitar antigos prisioneiros, desconfiados de que podem ser homens-bomba ou que sofreram uma lavagem cerebral pelos insurgentes. Ya Kaka enfrentou uma estigmatização semelhante.

    Ambas dizem que a organização Too Young To Wed ajudou-as a restabelecer suas vidas, oferecendo apoio e assistência para se estabelecerem, fornecendo-lhes roupas e enviando-as para a escola.

    "Eu fui uma criança mimada pelos meus pais. A partir daí, fui reduzida a nada”, explica Ya Kaka. "Hoje, acredito que vou crescer muito”.

    Em busca de apoio

    Ao longo dos últimos anos, Ya Kaka e Hauwa se transformaram de sobreviventes a defensoras. Elas acreditam que, ao compartilhar suas experiências, podem motivar as pessoas a agirem e fornecer a assistência necessária para salvar as meninas do destino que enfrentaram. Ninguém escuta suas histórias no nosso país, diz Hauwa, mas nos Estados Unidos as coisas parecem diferentes. As garotas dizem que foram recebidas calorosamente pelas pessoas que conheceram, que simpatizavam com elas e estavam orgulhosas de sua jornada.

    Mulheres e crianças caminham pela rua em Maiduguri, na Nigéria.
    Foto de Stéphanie Sinclair

    Para as meninas, a mensagem é simples: algo tão pequeno quanto uma muda de roupa pode melhorar a recepção de um sobrevivente em sua comunidade. O apoio educacional também é importante. Se os sobreviventes tiverem acesso às escolas, "eles descobrirão como se alimentar", diz Ya KaKa. Too Young to Wed financia tanto a educação de Ya Kaka quanto a de Hauwa. Além de seu trabalho de defesa de direitos, as meninas esperam se tornar advogadas um dia.

    Até então, o último sequestro em Dapchi ressalta a quantidade de trabalho que ainda precisa ser feito, diz Ya Kaka. Tais eventos são apenas uma fração da guerra que destrói a Nigéria, particularmente o nordeste, e os países africanos vizinhos.

    "Muitas pessoas estão presas", diz Hauwa. "Algumas não sairão com vida."

    Ao longo de seu tempo nos EUA, as garotas foram inundadas com palavras como inspiradoras, corajosas e destemidas, essas palavras mostram seu poder.

    “[Ouvir essas coisas] nos torna muito fortes”, diz Hauwa. "Isso nos faz falar mais."

    Ya Kaka acrescenta: "Temos coragem porque acreditamos que o mundo virá em nosso auxílio".

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