Cansado do isolamento? Neste mosteiro carioca a clausura é regra desde o século 16

No Mosteiro de São Bento, no centro do Rio de Janeiro, monges passam a vida reclusos e se dedicam à meditação, à oração e aos estudos.

Por Mauricio Susin
Publicado 26 de abr. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Teto o mosteiro de São Bento

Dom Mauro Fragoso caminha entre as telhas do Mosteiro de São Bento. A ordem de São Bento foi fundada em 529 na Itália e tem como regra, desde então, as virtudes básicas da vida monástica: humildade, silêncio e obediência.

Foto de Mauricio Susin
Nota do editor: as fotos desta reportagem foram produzidas em fevereiro de 2020, antes da Organização Mundial da Saúde declarar a pandemia de coronavírus e dos governos adotarem medidas restritivas à circulação de pessoas.

Subimos lentamente a torre dos sinos da antiga igreja de Monserrat, no alto do morro do Mosteiro de São Bento, fundado por beneditinos em 1590, no centro do Rio de Janeiro (RJ). Era fevereiro e fazia um calor sufocante. Depois de vencer os últimos degraus e passar por uma pequena abertura no teto, chegamos, enfim, ao campanário, onde os sinos de ferro fundido, massivos, pareciam em um silêncio perpétuo – pelo menos assim esperávamos que ficassem, por ora.

O monge, historiador e diretor de patrimônio do mosteiro Dom Mauro Fragoso, vestindo o tradicional hábito beneditino, seguiu em frente e, com surpreendente agilidade, escalou os últimos metros por entre os sinos e vigas de sustentação para alcançar as janelas estreitas no alto da torre. Segui o monge até o telhado. Dom Mauro então apontou para a outra torre. “Lá está o maior sino, o Cristo Rei”. Avançamos ao lado das telhas por um pequeno caminho de blocos que serviam de degraus. A vista do telhado era belíssima – de um lado, a Baía de Guanabara se afunilando e, do outro, a ponte Rio-Niterói, no horizonte, costurando as duas cidades. A Ilha das Cobras estava logo à frente. Embaixo, emoldurado pelo antigo telhado colonial do mosteiro, o claustro, impassível, envolto em meios-tons de cinza e bege, mergulhava em sombras.

De cima do telhado do Mosteiro de São Bento, fundado em 1590 no centro do Rio de Janeiro (RJ), é possível ver a Baía de Guanabara e a ponte Rio-Niterói.

Foto de Mauricio Susin

Monges beneditinos durante procissão no claustro do Mosteiro. O acesso a tecnologias como telefones celulares e computadores é restrito aos monges em profissão perpétua e sob autorização do abade. 

Foto de Mauricio Susin

Cruzamos os últimos degraus e entramos na torre ocidental. Lá estava o imponente sino de fundição alemã, o Cristo Rei. Com boca de mais de dois metros de largura e pesando quase 6 toneladas, o sino é um objeto impressionante. À leve batida da mão, ele reverberava um som límpido, profundo, afinado na nota Sol. Do alto do telhado, se ouvia também uma música distante, com tambores e cantos, vinda da cidade. Era época de carnaval no Rio. Os blocos e cortejos se multiplicavam pela cidade, ocupando ruas e praças. Dois mundos se encontravam de maneira sutil – o da vida monástica, reservado, e o contemporâneo, caótico. “O monge é separado das coisas do século, do mundo, para ter um contato mais direto com Deus – soli deo – estar só com Deus”, comentou Dom Mauro. Fizemos o caminho de volta e retornamos ao mosteiro.

História de isolamento

A tradição da vida monástica não foi iniciada pelos beneditinos ou outra ordem cristã. Na verdade, ela remonta há pelo menos 500 anos antes de Cristo, com os monges orientais budistas e os Essênios em Qumran, na Palestina. Na era do cristianismo, os monges ortodoxos e os Maronitas, do Líbano, são exemplos de ordens cristãs mais antigas.

Celebração da missa dominical na igreja de Montserrat, anexa ao Mosteiro de São Bento, no centro do Rio de Janeiro. Devido à pandemia do coronavírus, todas as missas estão canceladas desde 20 de março. 

Foto de Mauricio Susin

Dom Mauro Fragoso no no coro alto da igreja de Montserrat.

Foto de Mauricio Susin

A vida monástica era originalmente vivida no campo, no deserto, e os mosteiros eram construídos em zonas rurais. “Naquele tempo, a rotina dos monges estava diretamente relacionada à produção agrícola e à vida campesina. No século 16, a pedido do Papa, os beneditinos passaram a construir mosteiros na cidade”, conta o monge. “No campo via-se o dia amanhecer, o passar do sol até se por e, assim, a vida litúrgica, de consagração do tempo, estava diretamente relacionada à produção agrícola. Na cidade, perdeu-se o sentido disso e os monges urbanos não mais percebem, com tanta clareza, essa consagração do tempo. O modernismo trouxe o afastamento da vida campesina.”

Seguimos pelos corredores longos e escuros do mosteiro. A luz brilhante das janelas revelava antigos retratos de abades e quadros de cenas sacras. Desta vez, caminhávamos em direção ao antigo órgão de tubos. “A música sacra é formada pela combinação de diferentes elementos: o canto gregoriano – executado à capela –, o órgão de tubos e o sino”, explicou Dom Mauro. O canto gregoriano é praticado no Mosteiro de São Bento desde o final do século 16 e, atualmente, é tema de aulas semanais para os monges mais novos. A maior parte dos cantos é em latim, com parte dos salmos das missas mesclados com o português.

Monge beneditino na sacristia do Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro (RJ).

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Monges se reunem para comer no refeitório do Mosteiro de São Bento. Uma breve confraternização de 15 minutos é permitida depois do almoço e da janta.

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Uma das joias do mosteiro, o atual órgão de tubos foi montado na década de 1940 e possui um total de 3.600 tubos, sendo uma parcela destes remanescentes do ano 1770. O organeiro José Joaquim Marçal nos aguardava com um sorriso largo e amistoso. Como organeiro, ele é responsável pela conservação do instrumento, reparando e reconstruindo suas diferentes partes. Marçal começou na profissão ainda adolescente, educado pelos monges beneditinos, e a exerce há 40 anos. “A profissão de organeiro é cada vez mais rara e, aos poucos, vem desaparecendo. É preciso ter amor para se dedicar a essa atividade”, me contou Marçal. “Espero que as novas gerações possam manter viva a organeria.”

Os tubos são distribuídos em três grandes conjuntos – um central e dois laterais – na parte traseira da nave principal da igreja. Guiados pelo organeiro, passamos por uma estreita porta de acesso no conjunto lateral onde estavam centenas de tubos de diferentes tamanhos, alinhados verticalmente. Os maiores, do tamanho de pilares, produzem os sons graves e os menores, os agudos. Todos são confeccionados em madeira, zinco e uma liga de chumbo e estanho. O órgão funciona por um sistema eletropneumático com milhares de ramificações para conduzir o ar comprimido desde o console do instrumento – onde estão os quatro teclados, puxadores e pedaleiras – até os tubos para produzir o som. É um instrumento monumental. A sensação era de estar frente a um organismo vivo, uma antiga árvore que lançara raízes e ocupara lentamente os espaços.

Monge ajeita uma coruja taxidermizada na Casa da Livraria, uma das bibliotecas do Mosteiro de São Bento. Os animais empalhados foram trazidos ao Brasil por um monge alemão especialista em taxidermia no fim do século 19.

Foto de Mauricio Susin

Neste ateliê na Casa da Livraria os livros mais antigos são restaurados. O mosteiro guarda uma coleção valiosa de livros raros, alguns provenientes da coleção do rei Dom João VI.

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Os sinos anunciaram o início da missa dominical, que sempre atrai muitos fiéis e turistas. A igreja estava lotada. O cheiro amadeirado do incenso e o dourado das paredes barrocas evocavam uma atmosfera solene. A música do órgão de tubos se moldava, volumosa, à acústica da igreja, dando sustento ao canto gregoriano que vinha do coro. A missa seguiu cantada, sem palavras faladas, nem mesmo no sermão. Nas diversas religiões, o emprego da música tem o mesmo propósito – elevar as orações e o estado de espírito para se conectar com o Divino. No Mosteiro de São Bento, o papel da música na experiência religiosa é marcante – a austeridade da vida beneditina é exposta com uma sutileza lírica.

Após a missa, os monges voltaram à clausura para o almoço. O refeitório tinha janelas amplas com vistas para a baía. Com a bênção do abade, a refeição teve início. Não é permitido conversar. De um pequeno púlpito no estilo rococó, elevado na parede lateral, um monge começou a ler passagens e parábolas bíblicas. A leitura era monódica, em “reto tom”, como um mantra – uma tradição medieval ainda mantida no mosteiro.

Do lado de fora, um bloco carnavalesco seguia em cortejo pela orla, ao pé do Morro de São Bento. A música da fanfarra invadiu o refeitório e criou um duelo dissonante. Alguns dos monges mais jovens disfarçaram um sorriso de surpresa, tímidos. Os mais velhos pareciam indiferentes ou pouco incomodados. Não obstante, o monge no púlpito seguiu a leitura. Ao fim do almoço, rezou-se o Pai Nosso em meio às batucadas e vozes dos foliões no bloco.

Orgão é tocado durante a missa dominical na igreja de Monteserrat, anexa ao Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro. O instrumento atual foi instalado em 1940, mas conta com alguns tubos do antigo orgão, construído no século 18.

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O organeiro José Joaquim Marçal – responsável pela conservação e manutenção do orgão da Igreja de Monteserrat, anexa ao Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, mostra alguns dos 3.600 tubos do instrumento.

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Dois mundos

Aos monges são permitidos breves momentos de confraternização após o almoço e a janta. Durante 15 minutos caminham pelo claustro e conversam sobre assuntos diversos como as notícias do dia, futebol ou tecnologia. Sobre o uso de tecnologia, Dom Mauro afirma ser “um mal necessário”. O uso de computadores e celulares é restrito durante os anos de formação dos noviços e postulantes. Somente os monges em profissão perpétua, e com a permissão do abade, podem utilizar os dispositivos. “São instrumentos importantes, sobretudo para quem trabalha no ramo da educação, da comunicação. São indispensáveis”, conta Dom Mauro. “Por outro lado, aquela maior intimidade com Deus, maior momento de lectio divina, da leitura das escrituras sagradas, pode ser, em parte, usurpado pela tecnologia. O ideal seria que não utilizássemos, mas estamos inseridos no mundo, no século 21, e temos que viver nossa realidade neste século.”

Em contraste, a Casa da Livraria, uma das bibliotecas do Mosteiro, abriga milhares de livros antigos e raros, alguns provenientes da coleção do rei português exilado Dom João VI. Além do valioso acervo, a Casa conta com uma oficina de restauração de livros. Dezenas de animais empalhados decoram os interiores da biblioteca. Os exemplares foram trazidos por um monge alemão taxidermista no final do século 19. Em meio a livros e móveis antigos, corujas, ornitorrincos, pequenos mamíferos, serpentes e até mesmo a cabeça de uma girafa formavam uma cena surreal – como suvenires bizarros vindos direto do Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch.

Ao longo da história, os mosteiros foram como cápsulas do tempo – guardiões da cultura e resistentes às mudanças externas, dos séculos. Talvez por isso eles sejam geralmente vistos como algo isolado, que não faz parte diretamente da sociedade contemporânea.

Monges beneditinos se preparam para a missa dominical na igreja de Monteserrat, no Mosteiro de São Bento, centro do Rio de Janeiro (RJ).

Foto de Mauricio Susin

Monge beneditino em capela da igreja de Montserrat, anexa ao Mosteiro de São Bento.

Foto de Mauricio Susin

Questionei Dom Mauro sobre a música do bloco carnavalesco durante o almoço, desse choque de mundos. “Apesar de, às vezes, incomodar, esse samba que vem pela janela também faz despertar, se faz sentir, e conecta o monge à sociedade. Se vivêssemos uma vida continuamente solitária, ela poderia se tornar um tanto sem sentido”, disse. “O Mosteiro está inserido no mundo, num espaço geográfico comum a toda a sociedade e o encontro do monge com essa sociedade, seja na missa ou na música que entra pela janela, reforça sua vocação.”

Da rua, onde o bloco acabara de passar, e em meio ao barulho da metrópole, os sinos da torre do mosteiro se faziam ouvir. Sentia-se, ali, uma sacralidade – um diálogo indireto, mas possível.

Mauricio Susin é fotógrafo colaborador da National Geographic. Conheça mais do seu trabalho no Instagram.

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